fevereiro 20, 2015

American Sniper (2014)

American Sniper (2014)

American Sniper (2014) de Clint Eastwood, EUA 7/10
nomeado para Oscar de Melhor Filme

American Sniper passa a maior parte do tempo a construir a história de alguém considerado um herói pelos seus pares, mas é o retrato de alguém que parece perdido nesse papel e que dificilmente será visto como tal por grande parte do público. O filme ameaça tornar-se uma tábula rasa onde o espectador encontra um reflexo das próprias crenças, tal é o compromisso com uma visão despolitizada dos acontecimentos, aparentemente procurada por Eastwood, mas acaba por revelar-se mais complexo. Esta é a história de Chris Kyle, um letal franco-atirador no exército americano, com 160 mortes confirmadas durante a sua participação na ocupação do Iraque. Antes de mais, é a história de alguém que chega aos 30 anos sem encontrar o seu papel na sociedade, que passa os dias entre rodeos e cervejas, cujo falhanço como “homem” é sublinhado pela cena em que encontra a namorada na cama com outro – e nem se importa muito com isso. Kyle é o protótipo perfeito para um aspirante a soldado, um homem simples do interior, pronto a ser moldado e a seguir ordens sem questionar. O principal mérito de Bradley Cooper no filme é apresentar Kyle como alguém vazio de conflito interno, cujas acções se substituem às poucas palavras. Será no exército que encontrará o propósito e a disciplina que lhe faltam, para se tornar, ele próprio, uma folha em branco, numa procura de validação pessoal, de pertencer a algo importante. Acima de tudo, o filme, que é baseado na autobiografia de Chris Kyle, é um retrato subjectivo (daí não vermos a sua morte, porque ninguém escreve sobre a própria morte), logo tendencioso, reforçado pelas inúmeras sequências em que o espectador ocupa literalmente o lugar de Kyle por trás da espingarda através da mira, e que revela o empenho da personagem para com um sentido de honra e patriotismo, mesmo que definidos ingenuamente. 

Já inúmeros filmes abordaram, nos últimos anos, o envolvimento de soldados americanos na guerra do Iraque, com especial ênfase para o vazio do pós guerra e do regresso impossível a uma normalidade perdida. Desde Redacted, Stop-Loss, The Messenger, Hell and Back Again, a The Hurt Locker, é díficil perceber qual a mais-valia que Eastwood vê em American Sniper, especialmente em relação ao filme de Bigelow, depois do plano final à Sísifo. Mas Eastwood parece querer continuar no exacto momento em que The Hurt Locker acaba, interessado no tal vazio pós-guerra, ou na dificuldade de Kyle em abandonar os fantasmas da guerra quando está em casa, registada no magnífico plano de Kyle sentado a olhar para a tv desligada, mas com o seu reflexo e os sons da guerra presentes. A deterioração da sua vida familiar, provocada pelo constante abandono da família em detrimento da guerra, é representada através de pequenos momentos em casa, mas que colocam Kyle rapidamente de novo no campo da batalha. Mais do que um sentido de dever, é uma obsessão que comanda os regressos consecutivos, ilustrada no breve reencontro com o irmão que também se alistou na mesma guerra, a quem Kyle tinha perdido o rasto, e a quem volta a perder o rasto. Mais do que proteger os seus companheiros de armas, que vão desaparecendo ou desistindo da guerra, é a obsessão em seguir o papel que lhe foi destinado, como quando repete a um colega que não podem existir dúvidas sobre o que fazem porque estas são perigosas para um soldado. E é também a obsessão para com um sniper rival, um espelho da sua figura. Um sírio a combater pelos rebeldes, tal como Kyle, é um soldado em território estrangeiro a defender um ideal, também ele obcecado em atingir o rival, o seu oposto igual, irmãos em desfazer vidas. Esse paralelo entre os dois é estabelecido em poucos planos, quando o sírio é retratado com uma mulher e com um bebé em casa e uma arma em cima da mesa, imagem depois repetida com Kyle, também retratado em casa com uma arma perto dos filhos, que são também abandonados temporariamente para prosseguir a caça. É esta perseguição que comanda o filme, em que Kyle, sob o pretexto de proteger os seus companheiros acaba por colocar em perigo outros soldados, como vemos na sequência final.

American Sniper funciona melhor quando o filme se cinge à mecânica das sequências de acção, quando sedetém sobre o rosto de Kyle a olhar pela mira, e se aproxima da solidão deste no momento de apertar o gatilho. Como na sequência inicial do filme, em que o espectador é forçado a decidir sem contexto a moralidade das escolhas de Kyle, tal como este é subitamente tornado consciente do seu poder de Deus, logo na sua primeira missão. É uma situação que se repete no fim, com outra criança como alvo, e são sequências que evocam as imagens-memórias distantes de casa, como imagens que se sobrepõem constantemente umas sobre as outras, num dissolve mental contínuo. Esta indefinição torna-se literal numa fantástica sequência de batalha que decorre debaixo de uma tempestade de areia, onde deixa de se distinguir formas ou lados, todos iguais debaixo do nevoeiro de guerra.

Depois de alguns tiros ao lado, como Invictus (2009), Hereafter (2010) ou Jersey Boys (2014), American Sniper é o melhor filme de Eastwood dos últimos anos. É o regresso à desconstrução do mito, como tinha feito com Flags of our Fathers (2006), onde uma imagem celebrada como ícone patriota é rodeada das histórias paralelas das cicatrizes da guerra nos seus intervenientes, tal como acontece com a história de Kyle, cuja narrativa simplista de herói de guerra é aqui acrescida das suas consequências e da tragédia próxima de outros veteranos como Kyle. É o regresso às personagens em queda livre, tal como em Million Dollar Baby (2004), onde outra figura ordinária acaba por tornar-se extraordinária pelo que faz, pela sua obsessão trágica em provar a sua valia, pela crença de que a sua vida tem o direito a ter um significado, e que acaba por sofrer as consequências, castigada por essa obsessão. É outra vez a história de Unforgiven (1992), de um herói relutante, de uma procura de justiça definida em termos ambivalentes, da fronteira entre o heroísmo e o maníaco, do cão pastor transformado em lobo solitário.

O filme tem sido envolto em polémica, com figuras da esquerda americana (como Michael Moore ou Matt Taibi) a acusarem o filme de ser uma peça de propaganda e ignorar as acções criminosas da invasão americana, por não fazer uma declaração explícita de condenação daquela guerra. Ao fazer um filme cujo sentimento anti-guerra é tratado de forma subtil e complexa, Eastwood parece ter calculado mal a capacidade da audiência em ler entrelinhas. A maior tragédia disso é a apropriação pela direita americana (e figuras como Sarah Palin, que servem para sinalizar qual a escolha errada sobre um assunto) do filme como um hino patriota, e os relatos de pessoas a aplaudirem certos actos no filme – não só falham em reconhecer o problema dos veteranos, como tornam-se iguais a um qualquer terrorista fanático que odeiam.

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