depois da
primeira parte (20º a 11º), esta é a segunda parte da escolha dos melhores documentários da década, agora do 10º ao 1º:
À medida que o filme expõe a teoria Oil Peak através de depoimentos de autores que explicam os seus fundamentos, o quadro que é pintado é negro e viscoso como o próprio tema do filme: a produção americana de petróleo atingiu o máximo em 1971, o pico da produção mundial acontecerá à volta de 2010, a descoberta de novas reservas tem diminuido nos últimos 30 anos (e as existentes estão largamente sobreavaliadas), o consumo mundial continua a aumentar de ano para ano, a dependência do petróleo na agricultura, indústria transformadora e sector energético é insustentável a médio prazo, e quando os efeitos da dimuição da disponibilidade do petróleo começaram a ser sentidos na população funcionarão como descalabro exponencial. O documentário com o subtítulo “
Oil Depletion and the Collapse of the American Dream” procura abordar o paradigma de uma sociedade viciada em petróleo sob um vasto contexto político e social, não só expondo factos que sustentem as suas conclusões mas analisando as consequências e questionando como irá a sociedade reagir ao colapso de um modo de vida e que mudanças estará preparada para aceitar. É uma questão expandida também em “
A Crude Awakening: The Oil Crash” (2006), que se prende demasiado a pormenores técnicos sem explorar uma perspectiva generalista, e também em "
Collapse" (2009), que merece um visionamento.
9.
Zidane (2006) - Douglas Gordon & Philippe Parreno - França
- trailerÉ difícil enquadrar Zidane neste painel de documentários relativamente convencionais de exposição informativa, já que o filme se assemelha mais a uma instalação artística do que a algo que se aprecie numa sala de cinema – afinal a dupla inglesa é mais conhecida pelas suas intervenções em salas de museus de arte moderna. Durante noventa minutos em tempo real seguimos Zidane em mais uma provação no relvado, sem diálogos ou qualquer exposição excepto breves excertos do relato radiofónico do jogo, mas sempre com uma assombrosa banda-sonora da banda Mogwai que contribui para criar uma obra orgânica de caracter onírico, desfasado da realidade. É um olhar obsessivo sobre o jogador que revela através de pequenos gestos como lida com a batalha que vive no momento, numa criação de um moderno retrato, não fosse o subtítulo “un portrait du 21e siècle”, que revela a experiência solitária e o abandono no meio de 22 jogadores e debaixo do olhar de milhares. A dinâmica do próprio jogo acaba por proporcionar algum drama ao filme, e no fim Zidane desaparece, descendo às trevas, depois da desconstrução do mito, humanizado.
"Any violence by a large population is not because the people are more violent than any other. It's an alarm, it's a signal that something is wrong in the treatment of this population." Assim começa o filme sobre o conflicto israelo-palestino, procurando apresentar imagens e depoimentos que raramente chegam a público. Um estudo aprofundado sobre os acontecimentos na região durante o século XX que relata a expansão sionista com base no poderio militar, desde as guerras que serviram para estabelecer a soberania israelita com a ajuda britânica e americana, passando pelas deslocações massivas da população palestina até à criação do que são efectivamente dois campos de refugiados onde a população local é mantida sob controlo. Aborda também a origem da intifada e o processo de Oslo sem esquecer as verdadeiras consequências das políticas israelitas, especialmente na utilização dos colonatos como manobra de expansão contínua. É também um olhar incisivo sobre as condições de vida nos territórios ocupados e as agressões recorrentes de que são vítimas os seus residentes, sublinhado não só por declarações de habitantes locais mas também de pessoas ligadas a organizações humanitárias dedicadas a expor a situação mas frustrados com a falta de progresso e a falta de atenção internacional sobre o assunto. São comuns os relatos emocionados e as imagens violentíssimas incapazes de deixarem a maioria indiferente, especialmente um monólogo de uma criança palestina que captura o centro sentimental do filme.
O título do documentário tem origem em dois acontecimentos distintos que o filme procura interligar: a expressão “dark side” utilizada por Dick Cheney para justitificar a tortura efectuada pelo exército americano e um taxista afegão erradamente capturado como combatente terrorista, que acabou morto depois de seis dias de tortura, uma infeliz vítima colateral do tal . A partir deste exemplo somos levados numa viagem às prisões americanas como Guantanamo ou Abu Ghraib onde antigos soldados-interrogadores descrevem as
práticas comuns nesses locais, reflexo da degradação moral americana. Se não há uma decomposição analítica como em Standard Operation Procedure (2008) dos acontecimentos entretanto conhecidos, há uma procura de respostas que se extende para além dos soldados rasos no terreno ao incluir depoimentos de Cheney, Woo e Gonzalez que tentam desculpar o indefensàvel e acima de tudo há uma contextualização do clima político por detrás da adopção da tortura, reflectindo sobre a perda de identidade e autoridade moral americana resultante do abandono de princípios humanistas, colocando-os definitivamente ao lado dos terroristas que combatem. Isto é o que ninguém quer ver. Uma viagem aos confins da África negra, onde a miséria e a pobreza atingem níveis tais que é impossível desviar o olhar e esquecer as imagens desoladoras de uma realidade tão distante e no entanto tão perto. Até que ponto perto é o que o filme pocura explicar na extensão do seu âmbito geral: regularmente aviões russos voam para a Tanzânia para entregar armas e levantar carregamentos de um peixe (a perca), que foi introduzido no lago Vitória pela facilidade com que se reproduz e que está a canibalizar a fauna local num ciclo com um fim definido a curto prazo, destruindo a única fonte de sobrevivência de uma população dizimida por guerras constantes, população que vive as consequências das necessidades alimentares do resto do mundo, ao mesmo tempo que é obrigada a mendigar nos restos dos peixes que não estão em condições de serem enviados para a Europa. É a subjugação a interesses capitalistas de europeus que não tem consciência dos caminhos que levam ao aparecimento da perca à sua mesa que aqui o filme procura demonstrar. Além de todas as impressionantes imagens é ainda impossível assistir impávido a este pesadelo quando por exemplo alguém justifica a não utilização do preservativo com as políticas do Vaticano ou um guarda nocturno arrisca diariamente a sua vida para conseguir alimentar a sua família, ao mesmo tempo que o produto exportado para europeus prende a população da Tanzânia condenada a um ciclo inescapável e destino lúgubre.
Existiu um homem que queria fugir do mundo, e Herzog foi atrás do seu rasto. Da mesma forma que o Grizzly Man procura um regresso às origens, uma liberdade através duma ligação primitiva à natureza, Herzog procura encontrar algo neste homem que se desligava da sociedade mas filmava obsessivamente o que fazia, alguém paradoxalmente incapaz de seguir as rígidas normas sociais, mas que queria tanto comunicar ao resto do mundo os seus sentimentos-pensamentos. É um retrato emocionante e perturbador construído por Herzog, particularmente afectivo pela forma como Herzog analisa racionalmente as imagens capturadas por Timothy Treadwell e, colocando-se ao lado do espectador, tenta compreender os fundamentos das suas acções e do seu isolamento, mas nem sempre o consegue. Herzog questiona a possibilidade da relação entre o homem e animais selvagens, e a artificialidade de tudo isso vem à tona, exacerbado pela necessidade de atenção que parece motivar Treadwell. Na morte anunciada de Treadwell Herzog encontra alguém iludido na sua relação com a natureza, alguém que acreditava que a natureza precisava de si, que estes animais precisavam de si, mas a indiferença da natureza é demasiado pesada, e se Treadwell procura uma rendição à natureza, Herzog parece contrapor: será que a natureza precisa do homem?
O furacão Katrina foi um dos eventos definidores da década passada pela cobertura de inúmeras horas televisivas em directo a que foi sujeito e que melhor que o olhar crítico Spike Lee para revisitar e escrutinar os acontecimentos que abalaram a comunidade largamente negra de New Orleans. Neste documentário de quatro horas Lee é tenacioso na exaustão com que aborda o assunto e procura respostas para justificar o acontecido, sem deixar nada por questionar. É assustadora a normalidade com que ficamos estupefactos com o sucedido e com a sucessão de eventos e rapidamente constatamos que o abandono da população local encontra razões na sua condição de seres periféricos, e antes de incompetência na forma como nada foi feito para impedir o que aconteceu, e pouco foi feito durante ou depois, encontramos desumanidade. É por isso que este filme é notável, pela forma extraordinária como Lee procura a voz dos silenciados, dos que parecem não importar. Lee agarra-se aos depoimentos das pessoas que viveram a tragédia de New Orleans e cria empatia honesta e a longa duração do filme parece querer transmitir a relutância em abandonar de novo estas pessoas, porque se é verdade que com este documentário a sua história é contada, assim que termina o documentário voltam a ser esquecidas, voltam a ter que sobreviver em condições miseráveis mesmo todo este tempo depois, desaparecem de novo, a realidade da sua efemeridade gravada na eternidade.
Neste filme-sonho de Pedro Costa, que é também uma declaração de amor a Jeanne Balibar, apenas há a música, não existe mais nada. Nesta imersão sensorial dedicada à contemplação, cada composição é como que uma prenda para o espectador, sublimes momentos de perder qualquer ligação à realidade. A presença fantasmagórica e romantizada de Balibar arrasta-nos para um local de admiração através de uma cadência cénica que nos embala. Costa esquece tudo o resto e regressa ao preto e branco, num magnífico trabalho de tratamento do som e imagem, através de jogos de repetições rítmicas e planos estáticos recorrentes até se fixarem no nosso subconsciente. Filmado num estúdio durante os ensaios para a gravação de um álbum e preparação para espectáculos ao vivo, é um elogio desarmante ao processo de criação artística. Se apenas tudo se pudesse prolongar assim como durante esta hora e meia, que nada mude.
The Corporation é uma investigação em duas partes ao organismo mais perigoso e predatório do século XX: as corporações multinacionais. Fundamentado em depoimentos de críticos como Noam Chomsky, Howard Zinn, Naomi Klein, e insiders como antigos CEO destas empresas ou Milton Friedman, somos confrontados com a evolução destes organismos que ganham direitos equivalentes a uma pessoa mas que sem obrigações morais, na procura de aumentar os ganhos a curto prazo se comportam como parasitas na forma como colocam em causa a própria sustentabilidade da própria sociedade que os alimenta. Utilizando o mecanismo das corporações se equivalerem a pessoas em termos jurídicos, os realizadores deste documentário aproveitam para fazer um retrato psicológico deste organismo e o perfil obtido não é animador, pelo contrário - a lista de comportamentos desequilibrados acumula-se, entre a afinidade em explorar recursos naturais (chegando à privatização da água) ou mão de obra infantil (as fábricas na Ásia apropriadamente referidas como sweatshops) - e o diagnóstico mental chega a psicótico, mas acima de tudo perigoso para a evolução humana. O seu único modo de defesa é a manipulação da opinião pública através da difusão da ignorância e do adormecimento das massas, algo que este filme se propõe a combater – e numa altura em que as corporações ganharam o direito a apoiar candidatos políticos (enquanto as pretensões de se candidatarem a cargos políticos vão sendo negadas, por agora) é portanto também um pedaço de contra-guerrilha informativa: é definitivamente o documento informativo mais importante da década e um dos mais importantes de sempre - a sua inclusão nos programas escolares deveria ser mandatória.
Para uma década que pode ficar marcada pela percepção pela humanidade das consequências de anos de comportamentos irresponsáveis, marcados por guerras sem sentido, degradação dos direitos civis, catásfrofes ambientais ou exploração de recursos naturais finitos, não deixa de ser significativo que a Antárctida de Herzog funcione ao mesmo tempo como alegoria para um último reduto intacto e agora um refúgio com o futuro ameaçado pela acção humana.
As paisagens incríveis que Herzog utiliza magistralmente para incutir um sentimento de respeito e inferioridade perante o poder da natureza, que poderiam significar uma réstia de esperança no planeta e na humanidade, representar uma janela para a recuperação (através dos organismos que conseguem sobreviver em condições extremas), um exemplo inspirador do que merece ser salvo, para Herzog representam também algo que nunca mais será recuperado e necessita de ser documentado enquanto ainda é possível.
Herzog demonstra um fascínio admirável pelas pessoas que literalmente fogem para este continente estranho, cientistas que aqui podem desenvolver o seu trabalho longe de polémicas e campanhas de desinformação patrocinadas por multinacionais, ou simplesmente pessoas que preferem escapar da sociedade, viver no fim do mundo, o mais longe possível.
O tom derrotista e introspectivo de Herzog que domina o filme é maravilhosamente inquietante à medida que várias vezes pondera sobre a vida no planeta depois de os humanos desaparecerem, um momento que não contesta assumindo desde o inicio pouca esperança de uma mudança positiva no rumo humano.
Se em "An Inconvenient Truth" ficamos expostos a um caminho sem retorno se sem acção rápida, se em "When the Levees Broke" vemos a falta de compaixão para os deixados à sua sorte, se em "Darwin’s Nightmare" ou "Les Glaneurs et la Glaneuse" vemos a incapacidade de agir em conjunto para acabar com um sofrimento incontestado,
se em "Taxi to the Dark Side" ou "Fahrenheit 9/11" vemos a corrupção moral da política sob interesses pessoais,
se em "Jesus Camp" ou "Occupation 101" vemos os efeitos da divisão religiosa, se em "The End of Suburbia" ou "Food Inc." vemos o fim de um modelo sem substituto próximo,
se vemos os recorrentes cíclos económicos repressivos em "Enron: The Smartest Guys in the Room" ou "The Corporation" sem que isso funcione como aviso,
se em "The Corporation" vemos como os principais organismos mundiais não têm interesse em agir sozinhos sem pressão pública,
"Encounters at the End of the World" é o filme que junta isto tudo numa desoladora fuga para o último abrigo que está ele próprio a apagar-se, é a soma e o resumo da perda civilizacional que se prolonga nesta década, mas que também ganhou consciência do que está a acontecer, sem que isso pareça importunar muitas pessoas. Herzog parece deixar-nos com uma pergunta como conclusão: o que fizemos nós?
5 comentários:
Algumas sugestões que constariam no meu Top para além das que mencionaste:
The Sketches of Frank Gehry - Sydney Pollack
Um dos últimos filmes de Pollack, concebido na sequência de um convite feito por Gehry, amigo de longa data. Egocentrismos e psiquiatrias à parte, é nos dado um olhar sobre a obra deste arquitecto e sobre um processo de trabalho único. A inteligência da escolha de alguns planos de Pollack para retratar edifícios de elevada complexidade formal são de facto o ponto forte deste filme.
It Might Get Loud - Davis Guggenheim
Rock n' Roll rules! Jimmy Page e Jack White (ok, também lá está o The Edge) apresentam-nos uma outra dimensão ao som da guitarra eléctrica. Quando tocam juntos In My Time of Dying o documentário torna-se num momento inesquécivel da música. A ver.
The War Photographer - Christian Frei
Brilhante. Uma extraordinária viagem ao mundo do foto jornalismo e ao brilhantismo de James Nachtwey. Premiado e aclamado internacionalmente, as suas fotografias atravessam o mundo num fantástico testemunho da guerra, do mundo, da existência... O fotógrafo parece muito reservado, solitário, humilde, silencioso... As suas imagens são tratados ensaísticos sobre o Homem. Os planos sobre a objectiva são fabulosos. Obrigatório.
My Architect - Nathaniel Kahn
Um documentário fantástico sobre o recuperar das memórias e das referências que Nathaniel Kahn tinha do seu pai, Louis Kahn - um dos maiores arquitectos do século XX americanos. Entre o silêncio e a luz, visitamos os mais marcantes edifícios deste arquitecto. Uma visão apaixonada natural de Nathaniel que recupera o percurso do pai de forma muito emotiva... e de facto, quem vai a Dhaka ao Jatiyo Sangsad Bhaban já não volta o mesmo....
Arakimentari - Travis Klose
Araki revela-nos neste documentário um bocado do seu excêntrico universo e do seu único processo criativo. Por trás de polémicas e controvérsias, com Sentimental Journey fica provada a importância e a sensibilidade que residem no seu trabalho.
Bowling for Columbine - Michael Moore
Talvez um dos filmes mais fortes de Michael Moore e um dos pioneiros de uma certa crítica e análise das contradições e das características da sociedade americana. Mais do que uma documentação do massacre, é um documentário que mergulha profundamente nas motivações políticas e sociais dos EUA e revelam uma profundidade e pertinência ímpares.
Home - Yann Arthus-Bertrand
A par de "Inconvenient Truth", Home é um grande documentário que volta a chamar a atenção ao rumo que o mundo está a tomar, aos efeitos do descontrolo ambiental. Se as fotografias já nos ficavam na retina, com este filme a dimensão poética do olhar de Yann sobre a Terra não nos deixam indiferentes. Distribuído e passado gratuitamente, é um documentário que merece um lugar de destaque.
Já agora, vi ontem o Tapped (http://www.imdb.com/title/tt1344784)
É interessante e mostra um cenário que ainda é muito desconhecido pela maioria das pessoas...
O Taxi to the dark Side é mau.
Podes elaborar porque é que é mau?
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