janeiro 31, 2012

Sangue do meu Sangue


Sangue do meu sangue de João Canijo, 2011 Portugal, 8/10
Trabalho de actriz, trabalho de actor de João Canijo, 2011 Portugal, 9/10

"Sangue do meu sangue" é uma continuação linear na filmografia de Canijo depois da anormalidade não ficcional que foi Fantasia Lusitana. Este é um filme decorrente dos seus precedentes, mas vem com um objecto estranho apenso. Já tínhamos visto como temas: os limites de um amor incondicional e uma família a ruir, em "Ganhar a Vida", "Noite Escura" e "Mal Nascida", mas mulheres como fortalezas a tentar reparar  brechas de estragos emocionais ainda comove. O novo filme de Canijo continua a tradição do impacto visceral dos seus últimos filmes, pela forma íntima como nos coloca perto do seu centro de acção, a família nuclear em desintegração. O cenário é um bairro pobre na periferia de Lisboa e a história é suportada pelos habitantes de uma casa, reféns dos seus comportamentos. As duas figuras centrais dividem a família no que concerne a afectos e às consequências que daí advêm: a mãe, Márcia, por Rita Blanco, é próxima da filha, tenta  protegê-la de repetir o seu passado; a irmã de Márcia, por Anabela Moreira, é próxima e cúmplice do seu sobrinho, um delinquente intranquilo, a única coisa a que ela ainda dá importância. 

Os três filmes anteriores de Canijo eram adaptações de tragédias gregas, ancoradas em textos clássicos, e isso contagiava a estrutura do filme com um fatalismo vertiginoso, transpiravam tragédia. Este "Sangue do Meu Sangue" continua a ser fatalista, mesmo sendo uma tragédia portuguesa, e esse fatalismo bastante português. A estrutura mantém-se: primeiro, um cenário isolado do ambiente circundante, como uma pequena amostra ampliada de um todo, como a comunidade portuguesa em Paris, o bar de alterne no norte, a aldeia no interior do país e agora a periferia urbana - cenários semelhantes quanto à sua marginalidade, mas onde se projecta todo o país. Depois, assistimos ao desfiar de um drama de relações amorosas e familiares distorcidas com ligações que se confundem entre si, e aos sacrifícios necessários para pagar os pecados cometidos entretanto, na procura de uma redenção pírrica e sem esperança. Ainda que a construção da história tenha pontos em comum com os filmes anteriores, e o palco se mantenha parecido, é através de uma cuidadosa e ardente encenação que Canijo nos mostra o domínio do seu método de expiação comunitária. As cenas hipnóticas das refeições em família, e as inquietações antes de adormecer são coreografadas de forma a manobrar a geografia do espaço, até esta se tornar a geografia da família, enclausurada também pelas conversas que se ouvem sem querer. 

Num filme que tanto pertence também aos actores o elenco é algo desequilibrado. Beatriz Batarda é tão distante que é inexistente, Marcello Urgeghe é uma caricatura incapaz de expressão e Cleia Almeida continua presa ao sotaque e maneirismos infantis de "Noite Escura", perdida noutro filme. Por outro lado, Nuno Lopes é eficaz na economia de palavras, Rita Blanco é irrepreensível e segura com subtileza, mas Ana Almeida  faz esquecer tudo o resto com uma intimidade e entrega feroz. Este desequilíbrio entre os actores reflecte-se nas próprias personagens que revelam diferentes níveis de complexidade, talvez produto da liberdade concedida aos actores para as desenvolverem. Com cada um a partir numa direcção diferente, na procura de uma ideia autêntica, a multiplicidade de autores confunde e sente-se a falta de uma voz unificadora. Através do documentário "Trabalho de actriz, trabalho de actor" temos acesso ao  método de criação e preparação para este filme. É uma janela corajosa que permite observar o crescimento das personagens nos vários ensaios, ao sabor dos próprios actores, e o papel destes na recriação da realidade. O documentário mostra o processo de imaginação e idealização de uma certa realidade portuguesa marginal a outras pessoas, expondo assim outros atributos de uma identidade nacional, pela pesquisa efectuada e escolhas  dos actores para chegar à ideia do que é um português de periferia.

Há um interesse antropológico no cinema de Canijo que pode passar por perverso. O cinismo advém da observação repetida de personagens socialmente marginais em dificuldades e a consequente desumanização dessas personagens, através da sua redução a um animalismo comportamental do qual não conseguem escapar. Como Canijo não filma o real, mas um ideal recriado da realidade, uma ideia imaginada do que é um português de classe baixa, há o perigo desta caracterização parecer condescendente. O filme recorre a atalhos para caracterizar as personagens, como se fosse possível reduzir essa classe a um ideal de alguém brejeiro que ouve música pimba, bebe cerveja, procura sexo em todo o lugar, diz palavrões e vive do futebol. Esta caracterização recorre a facilitismos que correspondem a concessões para salvar o lado comercial do filme, que por exemplo Mike Leigh não tem de o fazer, mas que Canijo, ocupando um espaço próprio no cinema português na fronteira entre o autor e o comercial, tem de considerar. Lembremos a indiferença crítica e o falhanço comercial de "Mal Nascida", o último filme da trilogia grega, uma fábula negra e amarga como um soco impenitente no estômago, mas também um filme esquecido. Por ser o filme em que Canijo se preocupou menos em ser acessível, talvez tenha ido longe demais no seu cinema de autor, na sua alienação. À luz dessa experiência anterior, "Sangue do meu Sangue" apresenta-se como uma narrativa mais convencional, que tenta preencher os espaços vazios ao espectador para a mensagem ser mais imediata. Porém, o que resgata estes filmes da condescendência e do cinismo é o facto de, repetidamente, Canijo procurar dentro das suas personagens a excepção positiva, a prova da capacidade extraordinária, através de acções que deixam marcas profundas. Há uma paixão pelos erros dessas personagens, pela humanidade que contêm. É o sacrifício como exemplo positivo, como prova do tal amor inabalável, como ode à personagem que sobressai e consegue sobreviver no meio da lama.

Kiewlowksi começou por filmar documentários mas abandonou esse formato em detrimento da ficção, porque o documentário, apesar de ter essa pretensão, não é a realidade, é a realidade controlada, encenada e auto-censurada. A ficção permitia-lhe criar a sua representação da realidade e depois aproxima-la tanto quanto possível à Vida através de pequenos símbolos que apelam ao nosso subconsciente, através da nossa construção da realidade, sentindo-nos assim mais próximos do que vemos. Cedemos, então, à ilusão do filme, por tanto nos identificamos com o que estamos a ver, que acreditamos tratar-se da realidade*. Paradoxalmente, com "Fantasia Lusitana" e "Trabalho de actriz, trabalho de actor", Canijo chega mais perto de um retrato original, como uma realidade tangível. O documentário que acompanha o filme acaba por ser um documento ainda mais relevante que o próprio filme, revelador do que significa ser português e onde o cinema português consegue chegar. "Sangue do meu Sangue" não é a realidade encenada de Kiewlowski para substituir a realidade, mas Canijo não propõe distanciamento em relação ao que estamos a ver: o objectivo é entrarmos naquele campo, habitarmos o mesmo espaço que aquelas personagens, mesmo que seja por pouco tempo. "Trabalho de actriz, trabalho de actor" vai ainda mais longe ao permitir-nos habitar o processo de construção dessa realidade, perceber as limitações e escolhas da representação da realidade.

Slavoj Zizek in Lacrimae Rerum

janeiro 19, 2012

Beginners

Beginners de Mike Mills, EUA 2010, 6/10


Beginners é um drama que antes de ser romântico tem consciência das complexidades do romance. Ao ser sobre a fragilidade que entrar numa relação supõe, ao deter-se sobre essa vulnerabilidade íntima que assombra qualquer início, diferencia-se de outros filmes deste género. Ao assumir um derrotismo indiferente,  prepara-nos para um final infeliz. É um pessimismo assumido desde o início que fica bem à personagem principal Oliver, interpretada por Ewan McGregor. Oliver é um designer gráfico com problemas de integração (na sociedade) e falta de interesse (na sociedade). Já se envolveu em algumas relações mas acabou sempre com elas por iniciativa própria ao fim de alguns meses, por isso se tornar o mais natural, por ser a defesa contra a desilusão. Ela é Melanie (por Marrio Cotillard), uma actriz perdida entre cidades, que tem o mesmo historial romântico de relações abandonadas. Se calhar porque não sabem fazer mais nada do que as abandonar, têm medo em prosseguir. A felicidade extrema e as borboletas do início são assombradas pelo terror de ter algo e depois o perder, o sofrimento de estar sujeito a sofrimento ensombra o êxtase das possibilidades. Talvez por isso é que o estado inicial da relação é o ideal, arrasta-se durante algum tempo. Como não há diálogo, não há lugar a desinteresse, logo adia-se a descoberta que afinal são mais que a superfície e o interior pode não ser compatível. É algo de que os dois estão bem conscientes e não sabem bem como o dizer ao outro.

A verdade é que Oliver não se encontra num momento bom e não é só por causa do vazio no seu coração. Como iremos descobrir lentamente durante o filme, o seu pai acabou de morrer quando o encontramos pela primeira vez. Pequenos episódios da história do seu pai (Christopher Plummer a espreitar um Oscar), da sua luta com uma doença prolongada, acompanham o progresso de Oliver no dia-a-dia presente, interferindo com a linearidade do filme. Como não sabemos disso logo no início, é necessário procurar contexto nas acções de Oliver, perceber a depressão e letargia permanente que parecem afectá-lo. Mas à medida que aprendemos mais sobre o seu pai e sobre como este depois da morte da mãe de Oliver se assumiu como homossexual, Oliver vai perdendo o medo e a apatia, mostrando eficientemente a ligação com a coragem do pai, como ele funciona como inspiração para Oliver. A história do pai de Oliver é acima de tudo sobre descobrir a liberdade aos setenta e largos anos, perder o medo a essa idade. Uma parábola que ele conta sobre o jogo de expectativas vs o perigo de esperar demasiado tempo ajudam a explicar como, apesar de tudo, está contente: era bom encontrar o leão, mas se for tarde demais temos que nos contentar com a girafa. E funciona como um alerta para Oliver: ao contrário do seu pai ainda estará a tempo de encontrar o seu leão (e seria terrível deixá-lo escapar). A jovialidade e vontade de viver do seu pai perto do fim representam arrependimentos que são derradeiras lições de vida, numa ligação pouco original. Mas é a perspectiva da mortalidade do pai reflectida na sua própria que ajuda Oliver a ultrapassar a sua philophobia.

É desta forma que Beginners é também um amadurecimento da geração indie, um compromisso adulto. Thumbsucker, o filme anterior de Mike Mills inseria-se perfeitamente no tal movimento indie, com as suas personagens renegadas, situações bizarras e sentimentos adolescentes confrangedores. São filmes visualmente semelhantes a "Me and You and Everyone We Know" (2005, de Miranda July), "Juno" (2007, de Jason Reitman) e "Les Amours Imaginaires" (2010, de Xavier Dolan). Com os seus momentos videoclip e silêncios desajeitados de geeks, são construções simétricas de personagens que não interessam à sociedade e não se interessam pela sociedade. Beginners acaba por ser a mesma experiência mas com um distanciamento cáustico, como se observássemos a personagem de "500 Days of Summer" anos mais tarde, amargurado pela passagem do tempo. O filme é uma colagem de várias gags visuais que pretendem mostrar a inspiração visual e a singularidade inteligente da visão do realizador. Essas sequências, como a montagem "History of Sadness" ou os graffiti corrosivos, revelam um sentido estético aprimorado, bom gosto. Mas revelam também a necessidade de mostrar bom gosto e de mostrar trabalho óbvio, como forma de celebrar a sua inteligência, de criar ideias que se tornem consensuais. É algo característico deste tipo de filme, que parece ter uma necessidade de preencher o vazio de acção e de caracterização das personagens compensando com identidade visual, que acaba por se tornar esquizofrénica.  Há até espaço para algumas concessões convencionais, como o pequeno desvio formular da separação temporária na relação antes do último acto, que o filme tem quase vergonha em assumir. O resultado final provoca uma perspectiva cínica e sedada. É essa perspectiva que não ajuda ao envolvimento emocional com as personagens, como não ajuda o facto de serem gente bonita num local distante idealizado e pós-burguês, fechado sobre si mesmo, inalcançável. Beginners pode realmente representar o crescimento desta geração, mas continua sem encontrar o que dizer.

janeiro 16, 2012

Listas de 2011


Cahiers du Cinéma - top 2011
8. Super 8 de JJ Abrams
8. L'Apollonide de Bertrand Bonello
8. Meek's Cutoff de Kelly Reichardt
6. Un été brûlant de Philippe Garrel
6. Melancholia de Lars von Trier
4. Hors Satan de Bruno Dumont
4. Essential Killing de Jerzy Skolimowski
2. O Estranho Caso de Angélica de Manoel de Oliveira
2. The Tree of Life de Terrence Malick
1. Habemus Papam de Nanni Moretti

Sight and Sound - top 2011
10. Tinker Tailor Soldier Spy de Tomas Alfredson
10. This Is Not a Film de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmashb
9. Le Quattro Volte de Michelangelo Frammartino
8. We Need to Talk About Kevin de Lynne Ramsay
6. The Turin Horse de Béla Tarr
6. Once Upon a Time in Anatolia de Nuri Bilge Ceylan
5. The Artist de Michel Hazanavicius
4. Melancholia de Lars von Trier
3. Le gamin au vélo de Luc e Jean-Pierre Dardenne
2. A Separation de Asghar Farhadi
1. The Tree of Life de Terrence Malick

Slant - top 2011
10. Shi (Poetry) de Lee Chang-dong
9. Nostalgia de la Luz de Patricio Guzmán
8. Tuesday, After Christmas de Radu Muntean
7. Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives de Apichatpong Weerasethakul
6. Margaret de Kenneth Lonergan
5. A Separation de Asghar Farhadi
4. The Tree of Life de Terrence Malick
3. Mistérios de Lisboa de Raúl Ruiz
2. A Brighter Summer Day de Edward Yang
1. Copie Conforme de Abbas Kiarostami

Público - top 2011
10. Pina de Wim Wenders
10. Essential Killing de Jerzy Skolimowski
7. Road to Nowhere de Monte Hellman
7. Restless de Gus Van Sant
7.  Le Quattro Volte  de Michelangelo Frammartino
6. Film Socialisme de Jean-Luc Godard
5. 48 de Susana de Sousa Dias
4. Aurora de Cristi Puiu
3. The Autobiography of Nicolae Ceausescu de Andrei Ujica
2.  Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives de Apichatpong Weerasethakul
1. Sangue do Meu Sangue de João Canijo