dezembro 22, 2009

Hiroshima, mon amour

Hiroshima, mon amour - 10/10, de Alan Resnais, 1959

"Hiroshima, mon amour" é considerado um dos três filmes que estão na génese da Nouvelle Vague francesa, juntamente com "À Bout de Souffle" de Godard e "Les 400 Coups" de Truffaut. O seu contibuto original, para além da introdução de flashbacks abruptos e memórias recordadas através de recriações utilizadas de forma não linear (a procura de mimesis será um tema recorrente), é definitivamente pelo lado temático. A abordagem filosófica de tom existencialista domina as acções do filme, atormentadas por uma revisão do passado em confronto com o futuro (“Como eu já fui jovem!” grita a personagem feminina). É também uma evocação de um encontro romântico e melancólico entre uma parisiense de visita a Hiroshima para rodar um filme e um arquitecto japonês, ambos com cicatrizes emocionais da guerra na sua superfície humana.

Originalmente pensado para ser um documentário sobre os acontecimentos e sequelas em Hiroshima, ao modo de Nuit et Bruillard (1955, sobre os campos de concentração nazis), Resnais parece ter abandonado a perspectiva de uma reconstituição fiel e capaz de demonstrar o estupor causado por tais eventos. Ficamos apenas com as sequelas (no início com imagens dos sobreviventes), representadas pelas duas personagens do filme, que vivem assombradas pela ideia de escapar ao passado e pela forma como procuram encarar o futuro. Resnais adopta aqui uma ideia da impossibilidade de atingir algo perto do realismo ou cópia/recriação e afunda-se nas memórias e implicações a nível humano da tragédia da guerra, escolhendo acompanhar um dia na vida destas personagens, o dia em que se conhecem e eventualmente se abandonam.

Ele é Hiroshima, Ela é Nevers em França. Tudo isto é explicado ao longo do filme, em que assistimos ao confronto entre duas perspectivas filosóficas opostas, que são desenvolvidas e ilustradas com as acções e sobretudo palavras das duas personagens principais, num argumento de Marguerite Duras cheio de referências subtis mas devastadoras para as consequências emocionais das personagens. O que está em jogo é a examinação dos pólos antagónicos criados por Kierkegaard em Fear and Trembling: ambos aceitam a sua mortalidade, o temporal finito, mas de forma diferente: Ela é um item de resignação (ou Knight of Resignation no original) e Ele é um item de fé (ou Knight of Faith).

Ela (por Emmanuelle Riva) vive presa ao seu passado, vítima da sua tragédia pessoal causada pela guerra. Numa França ocupada pelos nazis apaixonou-se por um soldado alemão, o seu primeiro amor, que foi depois morto e não consegue imaginar felicidade depois dessa perda, não consegue ver mais nada além. Ela perdeu toda a esperança, abalada pela ideia que tudo é efémero, tudo tem o seu fim eventual, que tudo desaparecerá com a passagem do tempo. Isto leva a que se agarre à memória de felicidade anterior, memória que tenta honrar por não se esquecer, já que tudo apenas perdura enquanto existir na memória de alguém e morrerá quando for esquecido. Esta obsessão com o seu amor alemão que ela luta por não se esquecer (e por consequência, não se entregar definitivamente ao japonês) está patente em várias interacções com o seu antagonista no filme, chegando inclusive a suspirar por uma vida com ele que lhe permita abandonar a resignação (ou seja, está consciente que existe uma alternativa). Eventualmente ela sucumbe e fecha-se, incapaz de se deixar salvar. Ela não pode abandonar a memória do alemão, porque isso seria a prova definitiva que tudo é efémero, sem significado eterno, e ao prosseguir uma relação com o japonês esse primeiro amor estaria vazio de sentido. Essa primeira relação estaria perdida porque deixaria de viver na memória de alguém, e se ela se permitisse o abandono de tal memória isso era o que certamente iria acontecer à sua relação com o japonês, condenada logo à partida condenada a extinguir-se no tempo, desprovida de significado no futuro, e substituída consequentemente por outra relação com alguém no futuro e assim por diante. Para ela tudo apenas existe na nossa memória, e tudo o que é garantido é a evaporação de qualquer amor ou felicidade. Tudo eventualmente deixará de existir, toda a vida se extinguirá, tudo o tempo eliminará reduzido a cinzas, tal como ela e as suas memórias. A única forma dela poder escapar a isto é assumir que o seu estado de resignação não tinha razão e que toda a sua vida até aí foi um erro e é algo que a tenta, que ela combate todo o filme. Mas acaba por escolher sacrificar a sua vida temporal finita, para resguardar a memória da relação com o alemão, prefere sacrificar o presente e o futuro de modo a guardar a eternidade dessa memória (pelo menos enquanto ela viver), como prova de amor, resignada a que não encontrará igual, ou que pelo menos, teria que abandonar o seu primeiro amor.

Ele (por Eiji Okada) é um item de fé, na medida em que da tragédia renasce reforçado com sentido optimista, que acredita no futuro e na vida. Não é abalado pelo sentimento de negação temporal que atinge tudo, que torna tudo trivial porque eventualmente desaparecerá com a passagem do tempo – vive no presente, para o futuro. Raramente fala em detalhe de Hiroshima, do que aconteceu e de tudo que perdeu – apenas aconteceu, ficou para trás, mas é algo que está presente em todas as suas acções apesar de não ser discutido – ao contrário da francesa que examina pormenorizadamente os detalhes da sua tragédia. Como item de fé, por toda a perda que viveu, está mais consciente do que nunca do finito temporal, da sua mortalidade, e escolhe aproveitar a única oportunidade que tem de melhorar as coisas, de fazer a diferença, de procurar a felicidade, carpe diem. De facto, tudo o que a sua personagem é resulta do mundo que lhe foi destruído, e encara o desastre de modo a esquecê-lo, pela maneira como nunca fala em detalhe sobre o que aconteceu, mas encara o desastre também de modo a lembrar-se constantemente, pela forma como influência todas as suas acções, como define toda a sua personalidade.

É por tudo isto que Ela é Nevers e Ele é Hiroshima, numa alusão subtil ao simbolismo do filme. Nevers é um local frio, abandonado, congelado no passado, sem grande esperança para o futuro excepto vagas reminiscências sobre uma eventual prosperidade longínqua, mas no fundo incapaz de escapar do presente. Ele é Hiroshima, que tal como é retratado no filme é uma cidade em crescimento renovante, vibrante de esperança depois da tragédia, optimista num futuro melhor e possível. Dentro do simbolismo do filme é também importante notar que ela é uma actriz, dedicada a reviver e recriar o passado e ele é um arquitecto, consciente do seu papel na construção de uma nova Hiroshima, e é também um político, empenhado na construção de uma nova sociedade. Dentro deste jogo de referências o hotel onde ela fica hospedada é o “New Hiroshima” (o sinal de renovação) e o bar onde se encontram é “Casablanca” (referência a outro amor impossível, e a “We’ll always have Paris"). Aliás, neste notável jogo de referências as primeiras imagens são um espelho do que virá a seguir: dois corpos que se parecem diluir num só, planos fechados sobre mãos que percorrem a pele do outro, corpos que surgem cobertos de cinzas no primeiro plano do filme - o sofrimento de Hiroshima - cinzas que depois dão lugar a chuva renovadora - a nova Hiroshima - para finalmente se transformarem em gotas de suor fruto do calor da paixão - o calor de Hiroshima. Esta imagem de dois corpos que tanto não se querem separar, não se querem esquecer que parecem querer perder-se um no outro é o reflexo da dinâmica que vai pontuar a relação dos dois durante o filme, num combate entre o passado e o futuro, entre a resignação e a fé.

Logo no início do filme ela proclama a sua tristeza com o que aconteceu em Hiroshima, afirmando que sentiu toda a perda do que aconteceu – ao que ele contrapõe que ela não viu nada, não viveu nada de Hiroshima, que não conhece realmente essa perda, chegando ao ponto (mais tarde no filme) de lhe lembrar que estava um dia de sol em Paris quando aconteceu o ataque. É também o facto dele não acreditar que ela conheceu perda como Hiroshima que o leva a inquirir sobre o passado dela, até chegar a Nevers, até chegar à tragédia dela. Depois de ela aludir ao facto que nunca mais se vão ver depois do primeiro encontro, ele segue-a até às filmagens onde observam uma manifestação pela paz (“No more Hiroshima”) e acabam a noite num bar onde  depois de muita insistência wlw consegue finalmente que ela fale sobre o que lhe aconteceu em Nevers. Numa cena longuíssima (interrompida pela introdução de flashbacks) que ocupa a parte central do filme ela mergulha na sua perda, na cave onde se escondeu depois da morte do alemão, onde acaba por esfarrapar as mãos na parede até ver o seu sangue. No diálogo (ou monólogo) com o japonês ela revive o seu processo de luto, algo essencial para atingir um estado de resignação, chegando a alienar-se da presença do japonês à medida que revive mais uma vez a sua memória da relação com o alemão – abraçando o japonês declara “como é bom ter alguém”, mas pensa apenas no alemão. Ele no início não acredita que ela tenha conhecido a perda de Hiroshima, pelo menos até ele chegar a Nevers através dela, e de certa forma viver o que ela sentiu através da recriação dela dos acontecimentos em Nevers. Ela fala sobre estar em Hiroshima e ele responde que ela não esteve lá, que não viu nada – ela fala sobre Hiroshima mas na realidade está a pensar na sua própria tragédia e é apenas após a cena central do diálogo no bar que ele a percebe completamente. É nessa altura, após a confissão dela que ele sente maior desejo em salva-la da sua resignação, em puxa-la para a sua fé. A sua solução é propor-lhe um novo começo, que ela deixe tudo para trás, ou seja, que conheça realmente Hiroshima como ele. É após esse momento de confidência dela, em que ele partilha da sua dor pela primeira vez, que paradoxalmente estão mais perto e mais longe um do outro – o plano existencial de cada um completamente definido, sem mais ambiguidades.

A evocação que ela faz do que lhe aconteceu em Nevers é reveladora em vários sentidos. É uma revisitação dela ao seu passado que ela já não estava habituada a fazer, algo que ela já tinha deixado para trás na cave do seu luto em Nevers, de onde saiu apenas quando estava preparada para esconder a sua dor. Mas em vez de lhe permitir ganhar alguma distância emocional em relação ao que lhe aconteceu, ela acaba por se perder numa ideia romantizada do que aconteceu, do que sacrificou nessa cave, da saudade do ardor desse primeiro amor impossível. Ela confessa-se ao japonês mas quase não está consciente da sua presença, tal é o seu envolvimento com a recriação que faz (que é orquestrado soberbamente por Resnais com a introdução de breves flashbacks com a voz dela a narrar por cima a ilustrar as suas memórias intrusivas), mas no fim considera definitivamente a tentação e as implicações de ficar com o japônes. É uma das cenas seguintes que ajuda a compreender as suas dúvidas e eventualmente a sua decisão – no quarto de hotel, olhando-se ao espelho, num monólogo interior, constata devastada: “Ainda não estás exactamente morto, eu contei a nossa história. Enganei-te nesta noite com este desconhecido" e depois “Olha como me esqueço de ti”. Não é pois de estranhar que a cena principal da sequência final se desenrole sem troca de palavras entre os dois cúmplices, sentados lado a lado até ela desaparecer. Afinal, estava tudo dito: Ela é Nevers, Ele é Hiroshima.

* para uma análise mais detalhada das influências filosóficas sobre o filme, consultar as webcasts da Universidade de Berkeley - Existentialism in Literature and Film 

2 comentários:

Dioniso disse...

Mais uma vez premeias-nos com um fabuloso texto que apresenta uma astuta e interessantíssima perspectiva.

Apenas acrescento que também vejo muito Sartre neste filme. Obras como: “L'Existentialisme est un humanisme” (“a existência precede a essência”) (1946), “Morts sans sépulture” (1946) “Existentialism and Human Emotions” (1957), poderiam servir para dar subtítulos ao filme ou como introduções a temas que marcam profundamente a densidade e o conteúdo deste filme.

imartins disse...

Excelente comentário! Gostaria apenas de dar ênfase a um excerto da sinopse do argumento:
“This beginning, this official parade of already well-known horrors from Hiroshima, recalled in a hotel bed, this sacrilegious recollection is voluntary. One can talk about Hiroshima anywhere, even in a hotel bed, during a chance, an adulterous love affair. The bodies of both protagonists, who are really in love with each other, will remind us of this. What is really sacrilegious, if anything is, is Hiroshima itself. There's no point in being hypocritical and avoiding the issue.”

Seria interessante discutir (no contexto desta e doutras obras) como as preocupações de carácter existencialista têm evoluído de uma abordagem individual para uma escala civilizacional. Em “Hiroshima, mon amour” a sobreposição de dramas de dimensão completamente diferente estimula linhas de interpretação e de discussão bastante interessantes e actuais.