março 02, 2010

Precious

Precious: Based on the Novel 'Push' by Sapphire, de Lee Daniels, EUA 2009, 5/10

Precious parece-se com um OVNI a voar por entre o conjunto de filmes destacados na época de prémios, quer por uma sensibilidade social que mesmo que ambígua neste caso não é nada comum no panorama dos filmes premiados, quer pela natureza crude da história desconfortável que aborda: uma adolescente negra de 16 anos morbidamente obesa e com limitadas capacidades intelectuais, grávida pela segunda vez depois de repetidamente violada pelo pai (o primeiro filho nasceu com síndrome de down e tem aparições aflictivas durante o filme onde tem a alcunha de “mongolóide”), que é abusada mentalmente, fisicamente e sexualmente pelo monstro que é a sua mãe, abandonada à sua falta de sorte e de qualquer supervisão ou solidariedade adulta. Gabourey Sidibe, nomeada para o Óscar de Melhor Actriz, arrasta-se literalmente pelo filme tal é a dificuldade da personagem em fazer algo mais que estar sentada, numa exibição de apatia e sofridão que dura pelo menos até ao princípio do segundo acto do filme, quando é expulsa da escola depois da descoberta da sua segunda gravidez e indicada para uma outra escola para pessoas com “necessidades” especiais, onde conhece uma nova professora que finalmente demonstra algum interesse na sua condição e fé na sua capacidade de escapar a um destino fatalista – toda esta sequência é demasiado próxima de “Dangerous Minds” mas pelo menos tem a virtude de introduzir novas personagens e alguma evolução narrativa face à estagnação inicial.

O filme apresenta algumas escolhas pouco usuais na abordagem da execução da história e uma delas é a introdução de um voice-over constante narrado por Precious, revelador dos seus pensamentos desconexos e muitas vezes sem um fio condutor lógico, que não é utilizado para exposição da história mas como um artíficio para um vislumbre da personalidade da personagem. O grande problema do filme porém é a escolha do realizador de ao invés de apresentar esta história inquietante de um modo realista que possibilite uma identificação com os problemas da personagem, optar por uma estilização exagerada e demasiado consciente que por consequência distancia o espectador da acção: várias vezes Precious recorre a fugas fantasiosas como forma de fazer frente a situacções incómodas, imaginando por exemplo que é uma famosa autora quando escreve, ou que é uma esbelta rapariga branca quando se olha no espelho, emparelhado com inserções de planos rápidos de trivialidades quotidianas nauseadoras como a preparação do jantar, que apenas são distracções visuais (numa sequência de flashback em que Precious recorda a sua violação há uma estranha mistura de gordura,ovos fritos e vaselina); esta estilização forçada tem como resultado que nas últimas sequências do filme que se baseiam em longos diálogos confrontadores entre Precious, a sua mãe e uma assistante social (interpretada por Mariah Carey, num elenco que inclui também Lenny Kravitz) em que é utilizado um estilo de montagem naturalista - planos com a duração similar de alguns segundos, intercalados entre si sem chamar a atenção para os cortes, com ligeiros movimentos da camâra na aproximação a um estilo documental – essa escolha seja uma inversão tardia e mais uma vez, demasiado consciente em relação ao pretendido.

Por toda a admirável fúria de Precious contra o seu ostracismo e a negação em se render à sua condição, não deixam de ser preocupantes certos aspectos do filme: a forma como Precious fantasia com um mundo vápido de celebridades vazias demonstra que se tem apenas como objectivo atingir um materialismo típico americano que nada resolve em relação ao seu futuro muito menos resulta para lutar contra os obstáculos que lhe aparecem - se ela é julgada pela sua aparência e condição social apenas deseja uma fuga para fora do ghetto, contente em ser a excepção à regra - ao mesmo tempo que o filme perpétua certos estereótipos perigosos de tomar a parte pelo todo que fragilizam qualquer leitura social das intenções do filme: a mãe preguiçosa que vive à conta de fraude da segurança social, o pai abusivo... se as fantasias de Precious podem ser compreendidas tendo em conta o suposto conhecimento limitado da personagem, o mesmo não se pode dizer da escolha do filme de apropriar-se de uma cena do filme "La Ciociara" de Vittorio De Sica: se é completamente descabido que alguém como Precious utilize tal material, ainda é mais incrível a comparação pretensiosa que o filme tenta passar com o neorealismo italiano.

Se a história tem algum interesse humano e investimento no retrato de uma personagem esquecida pela sociedade e estrangeira aos filmes (não deixa de haver alguma ironia e comentário no facto de a personagem fantasiar com as personagens repletas de glamour que vê na televisão, o seu maior escape, onde não existem personagens como ela), esse retrato é minado pela escolha estílitistica de tangentes surrealistas e consequente falta de realismo para um drama que parece pedir uma atitude menos pedántica.

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