outubro 22, 2013

35 rhums (2008)

35 rhums

35 rhums (35 Shots de Rum, 2008) de Claire Denis
o texto sobre o filme pode ser lido no ÀPaladeWalsh

outubro 04, 2013

High School (1968)

Frederick Wiseman é um dos mais notáveis e influentes cineastas na área do documentário, responsável por criar uma linguagem própria, expandida ao longo de uma vasta obra com mais de quarenta anos. Apesar disso, apenas recentemente os seus filmes tiveram direito a estreia comercial nas salas portuguesas, com os filmes La danse (A Dança, 2009) e Crazy Horse (2011). High School (1968) é o segundo filme de Wiseman, e uma obra fundamental para compreender o apelo universal do seu cinema e conhecer o estilo que Wiseman ajudou a criar, que define o seu legado.

High School

O direct cinema é uma corrente do documentário que surgiu na década de 60, desenvolvida por Wiseman e outros realizadores, entre os quais os irmãos Maysles (Salesman, 1969 e Grey Gardens, 1975) e D.A. Pennebaker (Primary, 1960). Este movimento apareceu primeiro que tudo devido a dois avanços tecnológicos: a maior portabilidade das câmaras de filmar, e a capacidade de gravar som em directo, e assim reagir aos eventos sem ter que interromper a acção. Esta maior liberdade de movimentos e maior continuidade permitiram a um conjunto de realizadores responder a um dilema moral na área dos documentários. Desde Dziga Vertov e a kino-pravda (cinema-verdade) que existia a ambição de um retrato objectivo e fiel da realidade, em que o cinema teria um papel apenas testemunhal e não interveniente. Mas dada a falta de meios, a falta de capacidade de reagir à realidade à medida que esta se alterava, Vertov e outros tinham que recorrer a uma encenação, para criar a ilusão de uma imagem próxima da realidade, tinham que criar a ideia da não-presença do realizador.

Agora com o direct cinema, a preocupação em não interferir com o que se filmava, em não ser parte activa da acção mas mero espectador, é assim ultrapassada, através de uma presença reduzida, na procura de chegar a uma cópia mais exacta da realidade. Como que um cientista a tentar minimizar os factores exógenos em relação ao que observa, Wiseman, através de uma ocupação continuada do espaço onde filmava, esperava que os sujeitos filmados se habituassem à presença da câmara. Apesar de compreender que a sua simples presença influenciava as respostas e comportamentos das pessoas filmadas, esperava que estes eventualmente agissem naturalmente. Os filmes de Wiseman e do direct cinema acabariam assim, através de uma abordagem teórica e estruturada, por dar forma a um sistema rigoroso e uniforme, mas capaz de ser influenciado pelo que filma. Esta estética acabaria por influenciar o cinema fora do género documental, estendendo-se até aos filmes de Hollywood e à linguagem televisiva contemporânea.

O método de Wiseman envolvia um estudo prévio escasso sobre o tema proposto, de modo a não carregar ideias pré-concebidas, seguido de um longo período de filmagem, de várias semanas, junto dos locais que decide examinar. Wiseman percebia que apesar da abordagem minimal durante a filmagem, não apresenta uma visão neutra, mas antes o resultado subjectivo da sua observação. Esta subjectividade é revelada na escolha do tema e mesmo durante a filmagem, na escolha do que era filmado dentro do plano e de como este era filmado, durante quanto tempo, e para onde decidia apontar a câmara. Mas a subjectividade era visível sobretudo na edição dos filmes. Wiseman trabalhava as várias horas que tinha registado para criar uma narrativa dentro do filme, apelando a construções subjectivas, para definir as personagens principais. Estas funcionariam como guias de empatia, para o espectador formar o seu próprio quadro da realidade através do que via nas imagens. Wiseman consegue assim criar empatia com as personagens anónimas do filme, porque mostram-se parecidas com os espectadores anónimos do filme.

High School faz parte de um conjunto de filmes que marcaram o início de carreira de Wiseman e ajudaram a definir a sua abordagem, quer no plano visual quer no plano teórico. Se no plano visual é importante a estética da câmara ao ombro, disfarçada de observador contínuo, imparcial e quase voyeur, é a escolha do tema que permite perceber uma primeira impressão do realizador sobre o filme. Wiseman escolhe para estes filmes um conjunto de instituições americanas que simbolizam e encerram em si uma ordem própria, de modo a comentar sobre o seu papel como organização autoritária e reformadora.

Em Titicut Follies (1967), Wiseman debruça-se sobre o quotidiano num hospital psiquiátrico, registando as tentativas para normalizar os seus ocupantes, enquanto estes procuram sobreviver a diagnósticos e a sentimentos de alienação e esquecimento. É um quadro violento, quer pela brutalidade das imagens registadas da desumanização dos pacientes, quer pelo registo seco e sem narração ou contexto além do que vemos – é a banalização da violência. Em Law and Order (1969), segue de perto o trabalho da força policial local, revelando mais uma vez as tentativas por parte da autoridade em controlar uma parte da população; Hospital (1970), Basic Training (1971) e Juvenile Court (1973) continuam a tentativa de Wiseman de dar visibilidade às pessoas anónimas destas diferentes instituições, comentando as relações de poder entre eles. Há a necessidade de individualizar as pessoas anónimas, dar-lhes voz e atenção, e investigar o papel formativo de quem detém o poder – os médicos, os professores, os polícias, os agentes do estado.

Em High School, Wiseman consegue apurar o seu sentido de observação ao mesmo tempo que descobre uma linha narrativa adequada à sua visão política do funcionamento da escola como organismo formador de alunos homogéneos, de pensamento único. High School é portanto importante para perceber a desconstrução metódica que Wiseman faz sobre o tema escolhido. Através de uma série de sequências do quotidiano escolar, que revelam a organização hierárquica do poder na interacção entre professores e alunos, Wiseman vai construindo um quadro que permite questionar o funcionamento do sistema.

Dia após dia, mostra como é incutida aos alunos a necessidade de respeito pela autoridade para o bom funcionamento da sociedade, do que são comportamentos correctos e menos correctos, quais os papéis aceitáveis de cada sexo – exemplos que são símbolos de uma ordem retrógrada – quem não conformar-se à norma é ameaçado de exclusão e isolamento pela sociedade. Desta forma, Wiseman estabelece uma crítica à escola como uma instituição anacrónica, parada no tempo e hermética, numa altura de grande convulsão social. A crítica estende-se aos agentes que exercem a autoridade, pela forma como utilizam a responsabilidade que lhes é concedida.

Várias sequências ilustram a crítica de Wiseman apenas pela simples exposição do que observa, desde o que deverá ser a interpretação correcta de um poema, ou aulas de educação sexual separadas por género, onde fica claro o comportamento responsável que é esperado das raparigas perante a irresponsabilidade aceitável dos rapazes. Há também uma história de um rapaz condenado a um castigo sem ter feito nada, como que perdido no castelo kafkiano das regras da escola, que quando tenta explicar a sua inocência esbarra na necessidade de aceitar o que lhe é dito sem protestar. Mas é a cena final que melhor exemplifica o que Wiseman procura evidenciar. Num auditório cheio, uma professora lê com emoção uma carta de um antigo aluno da escola, acabado de ser destacado para o Vietname, orgulhoso dos valores aprendidos e em seguir ordens para defender o país – apenas um corpo a fazer um trabalho, diz ele – e a professora concluí que isto é a maior prova do sucesso do modelo da escola: Wiseman não mais tem a dizer.

Angel (1937)

Angel

Angel (1937) de Ernst Lubitsch
o texto sobre o filme pode ser lido no ÀpaladeWalsh

outubro 03, 2013

Junkie Awards 2012

os melhores filmes de 2012, na 15ª edição Junkie Awards.

menções honrosas:
Shame de Steve McQueen, Reino Unido
We Need to Talk About Kevin de Lynne Ramsay, EUA/Reino Unido
The Future de Miranda July, EUA
Bonsái de Cristián Jiménez, Chile
Holy Motors de Leos Carax, França

Kiseki
10. Kiseki de Hirokazu Koreeda, Japão

Filme herdeiro de Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) na forma como aborda a desintegração da família nuclear (ou antes, da normalização da sua fragmentação), continua a preocupação japonesa em olhar esse mundo desfeito através dos mais novos. No entanto, o vazio emocional é aqui preenchido por uma multitude de detalhes visuais, contrastando com os silêncios desesperados de Dare mo shiranai,  e por consequência, substituindo o lamento da perda de inocência com esperança na imaginação como escape. É porventura um Koreeda mais optimista, mesmo que momentaneamente.

Le Havre
9. Le Havre de Aki Kaurismäki, Finlândia

Kaurismaki disse certo dia que com cada novo filme que faz tenta fazer algo próximo do cinema de Ozu, mas que sabe que nunca chegará perto. Com este retrato de uma pequena comunidade portuária, que une-se para dar abrigo a um jovem emigrante perdido num país estranho, Kaurismaki atinge pelo menos muitos dos elementos dos filmes de Ozu. A unidade formal e um cuidado de enquadramento aliam-se a uma história agridoce, dividida entre a relação entre o rapaz imigrante e o velho que o ajuda, e a relação deste com a sua mulher, que entretanto se refugia num hospital para morrer. Ao estabelecer uma fórmula base, para depois dar espaço aos personagens e à história para crescerem na atenção do espectador, Le Havre acaba por não mais o abandonar.

Take Shelter
8. Take Shelter de Jeff Nichols, EUA

Há uma epidemia na América que está a infectar o seu cinema independente: o medo de perder a cabeça. Um retrato feroz da espiral depressiva em que entra um homem, é um sintoma do mau tempo que assola a América, assombrada pelos seus receios. Um afluente thriller psicológico que se resolve na cabeça da personagem principal, onde o maior mérito do filme é exactamente colocar-nos na sua pele, levar-nos a duvidar da realidade que ali é construída. Na dualidade entre acreditar se aquilo pode realmente acontecer ou se é apenas uma fabricação perigosa da mente, em que uma premonição para ser verdadeira exige fé, estabelece-se um paralelo com a religião. Mas é quando Nichols consegue conviver num simples plano de campo/contra-campo a insanidade e a lucidez, que o filme se torna notável na sua paranóia.

Wuthering Heights
7. Wuthering Heights de Andrea Arnold, Reino Unido

Andrea Arnold consegue aqui uma abordagem refrescante a material bem conhecido (nono filme sobre o livro), através da infusão de uma sensibilidade sensorial e intimista à história. Num estilo por vezes reminiscente do cinema de Malick, o resultado é uma aproximação à capacidade descritiva da literatura, do encanto em deter-se em pequenos pormenores, como o sussurro do vento ou o ocaso provocado pelo nevoeiro, contagiando os actores com os elementos naturais à sua volta. A recorrente explosão calma de impulsos visuais é desorientadora, mas no bom sentido, imitando a convulsão sentida pelas personagens. Os desencontros têm assim mais encanto.

Martha Marcy May Marlene
6. Martha Marcy May Marlene de Sean Durkin, EUA

Sean Durkin é o colega de Antonio Campos na produtora que nos ofereceu Afterschool, e se há uma nova linguagem no cinema americano, é nos filmes destes dois que tem ganho espaço para gestar. Com este filme, Durkin parece infectado pelo mesmo tema de Take Shelter, que desta vez é pintado através de uma rapariga foragida de um culto, que não consegue ter a certeza se o chão que pisa é seguro. Alternando entre sequências do tempo que passou numa comunidade rendida a um líder obscuro, e a sua recepção junto da própria família que não acredita na sua capacidade de recuperação, consegue navegar entre um surrealismo que nasce da quietude cénica e uma tensão constante que nasce da falta de contexto.

Oslo, 31. august
5. Oslo, 31. august de Joachim Trier, Noruega

Depois de um período longo de ausência após o aclamado Reprise, Trier retoma aqui o imaginário das personagens tombadas pelo seu destino. Se desta vez a escala é menos ambiciosa, ao filmar um último dia de verão em Oslo, permite ao mesmo tempo o gesto de um registo intimista e anestesiado. Desde o início, que mostra a tentativa de suicídio da personagem principal, depois deste aparecer em frente a uma janela como um fantasma, que Trier estabelece que este é um filme sobre alguém em desvanecimento, ou perigosamente próximo disso. O que se segue é um período de convalescença, à procura da esperança.

Tabu
4. Tabu de Miguel Gomes, Portugal

Parte filme mudo sobre um romance trágico numa África fantasmagórica, parte filme moderno sobre uma Lisboa de saudades, Tabu revela uma ambição intemporal. A teatralidade dos gestos despidos de palavras nos momentos sem diálogos, embalada por uma narração melancólica, ajuda a compor uma mitologia própria, numa terra imaginada mas não tão distante. Por contraste, a lentidão soturna na fase descendente da história filmada em Lisboa, revela uma expressividade reprimida, que reforça o sentimento de perda, e ao mesmo tempo o alcance na memória do que aconteceu antes.

Amour
3. Amour de Michael Haneke, Áustria/França

Amour mostra que apesar de Haneke ser frequentemente acusado de cinismo e calculismo nas suas abordagens, não falta humanismo no seu cinema. Este filme sobre os últimos tempos da vida de um casal, prova que a Haneke interessa também a luz da esperança que ilumina o espírito humano, mesmo que aqui sejam luzes de desvanecimento. Se a música é significante de conforto, não admira que aqui seja sempre interrompida - não há descanso em relação à realidade, não se pode desviar o olhar. Se o filme respira através das interpretações de outro mundo de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, é a encenação de Haneke que providencia uma chamada de inevitabilidade e empatia em relação às personagens. É impossível não fazer a ligação com o espectador, não ver no filme a vida que teima em fugir, e nos olhares, um espelho trágico.

A torinói ló
2. A torinói ló (O Cavalo de Turim) de Béla Tarr, Hungria

Reza a história que Nietzsche, certo dia, parou na rua para insurgir-se contra um homem que espancava um cavalo, colocando-se à frente do animal para o defender - no dia seguinte, cairia doente numa cama, para não voltar a falar. É a partir deste ponto de partida que Tarr constrói um lento fade out, um tratado destinado a alertar a humanidade sobre o perigo de cair na escuridão. Um filme-gesto, militante na forma como expande as suas ideias através de um longa analogia, que vive da repetição de gestos cada vez mais sem sentido, é também um filme-testamento da obra de Tarr. Inflexível, inamovível, mostra a peso insuportável da passagem do tempo como nenhum outro filme. [crítica completa aqui]

Bir zamanlar Anadolu'da
1. Bir zamanlar Anadolu'da (Era Uma Vez na Anatólia) de Nuri Bilge Ceylan, Turquia

O filme, que acompanha uma viagem pelo interior esquecido da Turquia na tentativa de solucionar um crime, é no fundo um  pretexto para um exercício existencialista. A dissecação da natureza humana que se segue, aliada a um ritmo lento, propício a divagações paralelas e introspecção onde, tal como o filme, nada parece ser possível solucionar, encontra no filme o espaço necessário. O vazio das personagens que se deslinda lentamente com pequenos gestos, é preenchido pela vastidão dos cenários que se repetem também sem fim à vista. A fotografia, e acima de tudo a iluminação e a falta dela, delimitam o que é possível pressentir. É no encoberto, no que se esconde imediatamente fora da luz, que se evoca a escuridão omnipresente. E no fim, a única ambição é fugir.