dezembro 17, 2010

Top10 2010: Slant

o top10 dos filmes de 2010, pelos críticos da Slant

(antes alguns filmes que ficaram de fora dos dez melhores mas que foram distinguidos com uma referência:
23. The Social Network - David Fincher
22. Our Beloved Month of August - Miguel Gomes
19. Hadewijch - Bruno Dumont
15. Eccentricities of a Blond Hair Girl - Manoel de Oliveira
12. Ne Change Rien - Pedro Costa
três filmes portugueses na escolha não deixa de ser uma curiosidade e uma anormalidade como amostra representativa do cinema português)

top10:
10. Let Me In - Matt Reeves
9. Carlos - Olivier Assayas
8. Les Herbes Folles - Alan Resnais
7. Vincere - Marco Bellocchio
6. Scott Pilgrim vs. the World - Edgar Wright
5. Mother - Bong Joon-ho
4. Everyone Else - Maren Ade
3. Lourdes - Jessica Hausner
2. The Ghost Writer - Roman Polanski
1. Dogtooth - Yorgos Lanthimos

dezembro 02, 2010

Les amours imaginaires

Les amours imaginaires de Xavier Dolan, Canadá 2010, 7/10


Se o filme debate-se com sentimentos difíceis de agarrar ou compreender, este "Les amours imaginaires", que lida com a rejeição e a solidão, é apropriadamente um retalho de momentos desconexos colados por momentos musicados, que emula de certa forma a confusão intrínseca e emocional das suas personagens. Misturando altos sensoriais como recortes de festas excessivas com baixos ressacados de solidão cortante e composto por sequências isoladas, a desconexidade não é exactamente algo mau porque ajuda a reproduzir o sentimento de desejo de afastamento em relação ao resto do mundo numa contraditória procura de uma qualquer ligação. É especialmente enebriante na sua cadência etérea, no sublinhar dos seus momentos efémeros, esta história de um triângulo amoroso dolorosamente indefinido em que os dois mandatários sentimentais do filme, um rapaz e uma rapariga desamparados, giram à volta de um outro rapaz que parece divertir-se a jogar com as suas expectativas. A personagem interpretada pelo realizador, Xavier Dolan, deambula à procura de identidade própria, à procura de ser encontrado antes de se encontrar, exprimido primariamente através da sua sexualidade reprimida (a referência à escala de Kinsey), acaba por rever-se não no rapaz que persegue mas na rapariga sua concorrente, pois é com ela que partilha afinidades existenciais, semelhanças numa auto-destruição de insegurança e procura de lugar no mundo de que ao mesmo tempo procuram fugir, num encontro entre desencontrados até chegarem a uma eventual resignação. A sua reacção-repulsa no final do filme é apenas natural, uma afirmação da impossibilidade de deter a sua marginalidade, de compromisso.

Toda a indefinição pessoal é espelhada estilisticamente na técnica explorada ao longo do filme. Pautado por breves interlúdios de depoimentos de desconhecidos num formato próximo do documentário, pequenos toques de perspectiva que ajudam a relançar as sequências seguintes da história e fortalecer o sentimento de confusão desligada. Dolan, que aos vinte e um anos assina aqui o seu segundo filme (ambos apresentados em Cannes e o primeiro, "J'ai tué ma mère", multi-premiado), aparenta uma vontade genuína de experimentar sem medo e sem preconceitos, à procura de luz e de voz própria, não tem receio em colar-se a diferentes inspirações. A câmara nas mãos de Dolan é livre e hipnótica e a utilização de zooms ou slow-motions extremos com músicas por cima (Fever Ray e uma versão estonteante de "my baby shot me down"  ficam na memória) são exemplos claros do recurso de Dolan a materiais reciclados, mas sem que tudo funcione para negar o interesse do resultado final. Apesar de tudo não é tão melodramático como poderia ser e a infusão de energia juvenil mas nada imatura de Dolan permite uma aproximação fresca a material vintage, construíndo um interessante exercício sentimental sobre as pulsações dos dois personagens diletantes, com  pequenos momentos polaroids gravados no tempo que ficarão para trás.

novembro 18, 2010

O Vazio em Ozu - Remix


No próximo sábado dia 20 de Novembro, pelas 18h, o cinemajunkie numa colaboração com a Kuri Kuri e Kanukanakina volta a apresentar no Quintal Bioshop a projecção de "O Vazio em Ozu (e outros)" - remix, um filme-concerto de sequências editadas de filmes de Yasujiro Ozu (e outros realizadores) pelo cinemajunkie que será musicado por Kanukanakina com o convidado Miguel Ramos. Uma versão ligeiramente diferente, mais curta de uma viagem ao cinema de Ozu e à sua influência no cinema japonês, a não perder.

Links associados:
Kuri Kuri: kurikurishop.com​
cinemajunkie: cinemadejunkie.blogspot.com
kanukanakina: youtube.com/​user/​comemelinhos
Quintal Bioshop: blogdoquintal.blogspot.com

outubro 21, 2010

Exit Through the Gift Shop

Exit Through the Gift Shop de Banksy, UK/EUA 2010, 9/10


texto também disponível no Ipsilon: http://ipsilon.publico.pt/Oscares/texto.aspx?id=277940

Um filme-demolição

Banksy, prolífero e incógnito artista de intervenção conhecido pela sua arte-terrorismo, atira-se a um novo formato neste auto-intitulado primeiro "street art disaster movie" da mesma forma que ataca uma parede em branco numa qualquer rua em Londres debaixo de uma câmara de segurança - é preciso agitar, provocar. É um portento golpe de estado em película a um certo panorama artístico contemporâneo este filme equivalente a um graffiti desafiador. De elevada acidez na forma como utiliza um novo registo para deixar a sua marca de desconstrução, Banksy ataca a crescente comercialização da street art e o excesso de promoção e hype de alguns artistas que utilizam a divulgação como substituição do talento. Criticando a apropriação desta arte por outras formas como a publicidade e a perda de pureza de algo que começou inocentemente por reclamar espaços públicos para si, acaba com uma fantástica declaração sobre o estado actual das coisas. Assumindo o lado artificial de qualquer filme, mesmo o de um inserido num género institucionalmente associado à verdade como o documentário, Banksy parte para uma exploração do subgénero mockumentary – um prankumentary na verdade - na forma como joga com expectativas e com a validade da informação apresentada. É realmente uma boratização de um género que é fabricada para através de um registo menos sério desarmar a audiência, mas sem deixar de apresentar uma mensagem-crítica importante que é capaz de passar despercebida no jogo de manipulação apresentado.

Depois da inebriante sequência inicial de créditos com o fabuloso hino de Richard Hawley ("Tonight the streets are ours") a pairar sobre uma montagem de imagens de graffiters em acção em cenas ridiculamente cool, o filme começa com a introdução do próprio Banksy (se é mesmo ele) que escondido na sombra se senta no seu trono para começar a dirigir-nos: "What is the film about?" Banksy: "The film is the story of what happened when this guy tried to make a documentary about me but he was actually a lot more interesting than I am, so now the film is kinda of about him."

Assim somos introduzidos a Thierry Guetta - depois de um segundo de desconfiança, mais interessante que Banksy? - vedeta fabricada por Banksy para representar de um modo mais ligeiro aquela pessoa que está sempre presente e acompanha qualquer graffiter nas suas acções para registar em vídeo as intervenções (qualquer artista-marca passa também pela sua auto-promoção) e de um modo mais cáustico os tipos de pessoas que se colam a estes artistas à procura de validação pessoal apesar da falta de trabalho original. Guetta é uma fabulosa construção numa caricatura tipificada, o francês excêntrico que apesar de viver há décadas na América ainda mal consegue articular-se em inglês e alguém que substitui a falta de talento com impertinência. Sempre de câmara em punho grava todos os momentos da sua vida, banalizando esse registo e efectivamente retirando importância aos momentos que deveria filmar. O seu propósito é mesmo a presença junto de artistas consagrados, uma espécie de stalker artístico - obviamente que guarda as cassetes em caixas para nunca mais rever o que filmou. Aliás, logo no início somos apresentados a uma pista para a mensagem séria do filme que aparecerá mais tarde: Guetta ganha a vida a vender roupa com defeitos que apelida de roupa de designer, permitindo-se assim aumentar o preço para pessoas crédulas desejosas de tal material.


A apresentação da personagem de Guetta, o veículo narrativo do filme, permite-nos entrar no submundo destes artistas que reclamam as ruas como suas para espaço de manifestação contra-cultural e chegar perto de Shepard Fairey, Space Invader, Monsiuer A, Borf e Swoon entre outros, para um olhar íntimo aos nomes mais icónicos deste vibrante movimento que é aqui apresentado. É esta rara aproximação que nos permite assistir de perto a estes artistas furtivos em acção a manipular a escuridão à procura do local-delito certo e é a própria natureza ilícita dos seus actos que provoca uma maior curiosidade - quase que queremos absorver um pouco daquela adrenalina. Através de alegadas filmagens de Guetta temos acesso a momentos inesquecíveis como Banksy disfarçado a colocar uma moldura sua num museu em NY, ou Fairey a subir a um telhado na Praça da Concórdia em Paris para colocar furtivamente um dos seus gigantes de marca, ou Invader a espalhar os seus desenhos no sinal de Hollywood, ou a fantástica aparição de Banksy no muro da Palestina - um olhar ao modus operandi outrora inacessível destes fora-da-lei mediáticos. Uma exposição de Banksy em LA é desculpa para mostrar toda a relevância que o movimento street art obteve atingindo o mainstream. As obras de Banksy passam a ser vistas como uma comodidade valiosa para ser coleccionada e não é surpresa que a sua exposição seja visitada por celebridades vápidas de Hollywood, incapazes de lidar com o elefante colocado na sala por Banksy para desarmar a própria importância daquela exposição na capital da vaidade e aparências, algo que será exposto na parte final do filme.

É no último acto do filme que Banksy parte para a ruptura com uma tradicional celebração-exposição do movimento. Num processo de comentário sardónico em relação a tudo que agora rodeia esse movimento começa por expor o pretensiosismo de Guetta com a apresentação da versão final do documentário que este supostamente editou: “Life Remote Control”. É mais uma construção exagerada que funciona como uma crítica a filmes que se levam demasiado a sério na sua inovação abstracta e experimentalismo e ao mesmo tempo como uma defesa de Banksy contra críticas ao convencionalismo formal que escolheu para apresentar a sua história. Banksy propõe a Guetta que este se dedique a fazer a sua própria arte que ele se encarregará do rumo do documentário dando mais tarde origem à melhor frase do filme: "Eu costumava incentivar toda a gente a fazer arte. Agora nem por isso".

Inspirado pelas palavras de apoio Guetta adopta o pseudónimo Mr Brainwash e prepara uma exposição em L.A., imitando Banksy. É aqui que o filme descarrila num rodopio de mensagens críticas sobre o paradigma artístico aqui questionado. A curiosidade em volta de um artista completamente desconhecido mas patrocinado pelos maiores nomes atinge níveis absurdos e o hype à volta do evento-bomba leva a que esgotem rapidamente as entradas para a inauguração. Guetta chega a vender obras no valor de 1 milhão de dólares mesmo antes de alguém conhecer o seu trabalho. As palavras de apoio de Banksy e Fairey abrem as portas do mundo artístico a Guetta e permitem-lhe saltar etapas, efectivamente validando-o como artista apenas através de auto-promoção, mesmo sem apresentar qualquer trabalho. É a forma de Banksy questionar como é que a sociedade elege os seus autores de eleição, quem e como é que se fabricam as opiniões que depois são seguidas pelas massas, sempre num jogo subjugado a interesses económicos no que é uma demonstração factual da mercantilização da street art. Deixou de ser algo puro que apenas existia nas ruas e era de todos para poder ser comprado em uma qualquer gift shop e especialmente algo que deixa de ter valor intrínseco mas valor que lhe é atribuído por outros. O gesto anti-autoritário passou a conformismo simples e neste caso ninguém sabe porque é que o trabalho de Mr Brainwash é valioso, apenas o é porque alguém disse que sim, que é o gracejo do filme. Porque parece existir um conjunto de pessoas que seguem  sem espírito crítico a opinião geral instituída através dos media, com medo de serem excluídas de uma parte da sociedade, porque senão apreciam é porque não percebem, então têm que gostar para pertencer. Têm tanto que pertencer, especialmente em L.A., que até derrubam as barreiras de segurança para poderem entrar na exposição.


Guetta, elevado quase da noite para o dia a figura líder do movimento que tenta infiltrar, é então mais um caso de um imperador que vai nu já que o próprio trabalho apresentado por si não tem qualquer carácter de crítica política (ao invés de Banksy e Fairey) e as suas obras são pouco mais que cópias desinspiradas e derivativas do trabalho de outros. A facilidade com que conquista a crítica e a população geral parece deixar Banksy confuso mas pouco surpreendido e acima de tudo divertido com a vitória do absurdismo. A própria rapidez da ascensão de Guetta parece deixa-lo perdido dentro da sua megalomania. Com a aproximação da data de inauguração da sua exposição vemo-lo a "criar" obras em rápida sucessão, efectivamente dependendo de assistentes que sucumbem ao seu novo estatuto ditatorial para criarem algo a partir das suas vagas linhas de orientação. A falta de intervenção artística de Guetta nas obras que serão criadas em série pelos seus assistentes não poderia ser mais explícita (a única vez que o vemos perto de uma lata de tinta é quando entorna uma na mala de um jipe). É mais uma crítica de Banksy à forma como os assistentes são utilizados e se entregam ao que parece ser uma fábrica de manufacturação de réplicas fáceis e desprovidas de qualquer fio de autor, como publicitários que entregam o seu talento a outros, aqui meros peões nas mãos de Guetta. Banksy numa vertiginosa sucessão de golpes leva a casa abaixo e arrasa tudo e todos neste filme-demolição. Será o equivalente a colocar uma peça no British Museum mas menos arriscado.

Banksy e Fairey surgem nesta colaboração como uma versão moderna de Duchamp e Picabia na forma como extravasam a forma que começaram por explorar para partir para um registo mais ambicioso. Parodiando todo o espectáculo à volta da street art enfiada numa galeria e que com a subida de popularidade  abandonou o subterrâneo e passou a fazer parte da cultura consumista, questionam assim o papel da arte nessa sociedade. A realidade é que Guetta pode não ser uma criação artística dos dois, apesar de todas as pistas que apontam para isso e que são deixadas ao longo do filme (e de outras opiniões nesse sentido*), mas isso não deixaria de ser cómico-trágico se fosse verdade. E Banksy é extremamente seco nas palavras com que fecha o filme: "maybe it means art is a bit of a joke".

*
Here's Why the Banksy Movie Is a Banksy Prank
Is Banksy’s ‘Exit Through the Giftshop’ a hoax too far?


outubro 18, 2010

Sally Menke

em discurso directo:

"The thing with Tarantino is the mix-and-match. We do study other films and other scenes but only to get the vibe we need for our scene – like in Kill Bill when Uma [Thurman]'s facing off the 5.6.7.8's and we looked at some Sergio Leone close-ups, to see how we wanted to cut that scene. Our style is to mimic, not homage, but it's all about recontextualising the film language to make it fresh within the new genre. It's incredibly detailed. There's nothing laissez-faire about Quentin's approach, but I know his film voice, always have done.

Music is one of his obsessions, so I've cut a lot of great scenes to music. He's very specific and will play music on set all day to get everyone in the mood. I think he goes to sleep with his iPod on when we're filming, because the music becomes the rhythm of his directing. Oddly, I don't cut to music. I just make the scene work emotionally and dramatically, and then Quentin will come in and lay the track over it and we'll tweak it to the beats."

outubro 14, 2010

Manoro

Manoro de Brillante Mendoza, Filipinas 2006 – 6/10


Manoro começa por ser um um registo puramente documental, com a câmara estacionada a capturar momentos da realidade para mais tarde deixar-se infiltrar por um registo ficcionado que ajuda a compor a carta de intenções do filme. Logo no início somos confrontados com um cartão que refere o problema de analfabetização nas Filipinas e vemos o trabalho de uma ONG em tentar expandir a educação a crianças desfavorecidas e a primeira sequência mostra-nos um grupo dessas crianças no último dia de aulas num caos trivializado pela sua habituação. É quando Mendoza segue estas crianças quando são transportadas para as suas aldeias remotas que somos confrontados com a dura realidade da sua existência, aldeias onde mesmo assim a sua educação revela importância pela forma como lhes vai permitir ensinar os familiares mais velhos a escrever o nome de forma a poder votarem nas próximas eleições presidenciais. As crianças tornam-se o professor para o resto da aldeia, ganham um próposito, mas não é muito claro se é um esforço útil para aquela população.

É portanto acima de tudo uma notação documental - reforçado pelo uso de actores não profissionais - da importância da educação e das consequências directas no quotidiano filipino desta demonstração do poder de um pequeno gesto que representa uma evolução mínima mas que tem efeitos directos sobre a vida das pessoas pela eliminação de barreiras socias. Mas Mendoza entra num registo ficcionado para através do quotidiano dessas aldeias gravar a distância em relação ao resto do mundo, do ritmo parco e da lentidão de ensinar aos mais velhos como podem votar, e se é enternecedor pela forma como estes prestam atenção ao comando dos mais novos e como os mais novos ganham uma aplicação prática para a educação que tiveram – o acto democrático adquire para eles a ideia de algo relevante, o que nem sempre é compartilhada pelos mais velhos – é a entrada no seu dia a dia exógeno e de pobreza que permite compreender a tese do filme que reside no facto de uma educação e de uma participação democrática quando confrontados com esta realidade exposta e alongada no filme se tornar quase numa noção estrangeira às vidas das pessoas que esta tentativa de ajuda de alfabetização tenta atingir, que apenas o filme consegue atingir na intimidade dos gestos das suas vidas.

Logo o contraste criado por Mendoza acaba por revelar um tom amargo, dividido entre as composições contemplativas das dificuldades quotidianas e da perturbação que a educação traz a estas populações momentaneamente: o progresso frugal que esta educação permite acaba por ter resultados mistos. Se a educação permite a integração desta população quase esquecida no acto democrático, acaba por ficar um sentimento de irrelevância dessa mesma participação tal é a distância em relação ao mundo em que tentam entrar, algo que acaba no fim por se revelar nalguma desilusão dos mais novos e que é ilustrada num exemplo: depois de ter aprendido a escrever o nome em letra cursiva os mais velhos quando confrontados com o seu nome escrito a letra de impressa bloqueiam porque é algo que desconhecem. O conflito entre o progresso da educação e o distúrbio do isolamento é apenas resolvido na última sequência do filme quando no fim do dia todos se juntam no centro da aldeia e enquanto os que não votaram e os que votaram concordam sobre a pouca importância disso, celebram a comunidade que ali vivem através do esforço de alguém pouco interessado em votar que acompanhamos durante o dia inteiro à caça de um javali, que depois oferece esse fruto ao resto da aldeia, junta no seu isolamento e abandono e fica óbvio que o importante para eles é a partilha e convivência naquele círculo fechado independemente do que acontece a uma distância consíderavel - é uma distância já demasiada entranhada. É uma imagem que Mendoza chega no fim deste filme para expor a sua mensagem legítima mas sempre pouco fracturante, de uma forma quase reprimida no seu realismo social, longe do tom que iria explorar mais tarde.

setembro 23, 2010

Filmografia de Ozu (e outros)

Lista de filmes utilizados em "O vazio em Ozu (e outros)":

Yasujiro Ozu (1903-1963)
Tokyo no korasu / Tokyo Chorus (1931)
Umarete wa mita keredo / I Was Born, But... (1932)
Dekigoro / Passing Fancy (1933)
Banshun / Late Spring (1949)
The Munekata Sisters (1950)
Tokyo monogatari / Tokyo Story (1953)

Akira Kurosawa (1910-1998)
Drunken Angel (1948)
Rashomon (1950)
Yojimbo (1961)

Kenji Mizoguchi (1898-1956)
Five Women Around Utamaro (1946)
Ugetsu monogatari (1953)

Kon Ichikawa (1915-2008)
Nobi / Fires on the Plain (1959)

Seijun Suzuki (1923-)
Shunpu den / Story of a Prostitute (1965)


Andrei Tarkovsky (1932-1986)
Solaris (1972)

Wim Wenders (1945-)
Tokyo-Ga (1985)

Hirokazu Koreeda (1962-)
Dare mo shiranai / Nobody Knows (2004)

Fotografias de Ana Cancela e Margarida Ribeiro.

Agradecimento especial ao Quintal Bioshop pela cedência do local para exibição.
uma colaboração :

http://o-vazio-em-ozu.blogspot.com/

setembro 15, 2010

18 Setembro 18h30


O Vazio em Ozu (e outros) from jnky on Vimeo.

música: kanukanakina
imagem: cinemajunkie

As próximas inaugurações simultâneas em Miguel Bombarda, no Porto, a 18 de Setembro, contarão com a projecção do filme-concerto "O Vazio em Ozu", apresentado pela loja japonesa Kuri Kuri.
O filme resulta de uma edição de filmes de Yasujiro Ozu (e outros realizadores) realizada pelo cinemajunkie e musicado pelo kanukanakina. Pelas 18h30, no Quintal Bioshop.

Links associados:

Kuri Kuri: kurikurishop.com​
cinemajunkie: cinemadejunkie.blogspot.com
kanukanakina: youtube.com/​user/​comemelinhos
Quintal Bioshop: blogdoquintal.blogspot.com

setembro 11, 2010

O Vazio em Ozu

As próximas inaugurações simultâneas em Miguel Bombarda (Porto), no sábado de 18 de Setembro, serão mais especiais. A Kuri Kuri apresenta o filme-concerto "O Vazio em Ozu", uma edição de filmes de Yasujiro Ozu (e outros) realizada pelo cinemajunkie e musicado pelo kanukanakina. É com todo o prazer que convidamos todos a aparecerem, pelas 18h30, no Quintal Bioshop.

julho 27, 2010

Documentário [2000-2009] (parte dois)

depois da primeira parte (20º a 11º), esta é a segunda parte da escolha dos melhores documentários da década, agora do 10º ao 1º:


10. The End of Suburbia (2004) de Gregory Greene – EUA - trailer
À medida que o filme expõe a teoria Oil Peak através de depoimentos de autores que explicam os seus fundamentos, o quadro que é pintado é negro e viscoso como o próprio tema do filme: a produção americana de petróleo atingiu o máximo em 1971, o pico da produção mundial acontecerá à volta de 2010, a descoberta de novas reservas tem diminuido nos últimos 30 anos (e as existentes estão largamente sobreavaliadas), o consumo mundial continua a aumentar de ano para ano, a dependência do petróleo na agricultura, indústria transformadora e sector energético é insustentável a médio prazo, e quando os efeitos da dimuição da disponibilidade do petróleo começaram a ser sentidos na população funcionarão como descalabro exponencial. O documentário com o subtítulo “Oil Depletion and the Collapse of the American Dream” procura abordar o paradigma de uma sociedade viciada em petróleo sob um vasto contexto político e social, não só expondo factos que sustentem as suas conclusões mas analisando as consequências e questionando como irá a sociedade reagir ao colapso de um modo de vida e que mudanças estará preparada para aceitar. É uma questão expandida também em “A Crude Awakening: The Oil Crash” (2006), que se prende demasiado a pormenores técnicos sem explorar uma perspectiva generalista, e também em "Collapse" (2009), que merece um visionamento.


9. Zidane (2006) - Douglas Gordon & Philippe Parreno - França - trailer
É difícil enquadrar Zidane neste painel de documentários relativamente convencionais de exposição informativa, já que o filme se assemelha mais a uma instalação artística do que a algo que se aprecie numa sala de cinema – afinal a dupla inglesa é mais conhecida pelas suas intervenções em salas de museus de arte moderna. Durante noventa minutos em tempo real seguimos Zidane em mais uma provação no relvado, sem diálogos ou qualquer exposição excepto breves excertos do relato radiofónico do jogo, mas sempre com uma assombrosa banda-sonora da banda Mogwai que contribui para criar uma obra orgânica de caracter onírico, desfasado da realidade. É um olhar obsessivo sobre o jogador que revela através de pequenos gestos como lida com a batalha que vive no momento, numa criação de um moderno retrato, não fosse o subtítulo “un portrait du 21e siècle”, que revela a experiência solitária e o abandono no meio de 22 jogadores e debaixo do olhar de milhares. A dinâmica do próprio jogo acaba por proporcionar algum drama ao filme, e no fim Zidane desaparece, descendo às trevas, depois da desconstrução do mito, humanizado.



8. Occupation 101 (2006) - Abdallah Omeish & Sufyan Omeish – EUA - trailer
"Any violence by a large population is not because the people are more violent than any other. It's an alarm, it's a signal that something is wrong in the treatment of this population." Assim começa o filme sobre o conflicto israelo-palestino, procurando apresentar imagens e depoimentos que raramente chegam a público. Um estudo aprofundado sobre os acontecimentos na região durante o século XX que relata a expansão sionista com base no poderio militar, desde as guerras que serviram para estabelecer a soberania israelita com a ajuda britânica e americana, passando pelas deslocações massivas da população palestina até à criação do que são efectivamente dois campos de refugiados onde a população local é mantida sob controlo. Aborda também a origem da intifada e o processo de Oslo sem esquecer as verdadeiras consequências das políticas israelitas, especialmente na utilização dos colonatos como manobra de expansão contínua. É também um olhar incisivo sobre as condições de vida nos territórios ocupados e as agressões recorrentes de que são vítimas os seus residentes, sublinhado não só por declarações de habitantes locais mas também de pessoas ligadas a organizações humanitárias dedicadas a expor a situação mas frustrados com a falta de progresso e a falta de atenção internacional sobre o assunto. São comuns os relatos emocionados e as imagens violentíssimas incapazes de deixarem a maioria indiferente, especialmente um monólogo de uma criança palestina que captura o centro sentimental do filme.



7. Taxi to the Dark Side (2007) - Alex Gibney - EUA - trailer
O título do documentário tem origem em dois acontecimentos distintos que o filme procura interligar: a expressão “dark side” utilizada por Dick Cheney para justitificar a tortura efectuada pelo exército americano e um taxista afegão erradamente capturado como combatente terrorista, que acabou morto depois de seis dias de tortura, uma infeliz vítima colateral do tal
“dark side”
. A partir deste exemplo somos levados numa viagem às prisões americanas como Guantanamo ou Abu Ghraib onde antigos soldados-interrogadores descrevem as
bárbares
práticas comuns nesses locais, reflexo da degradação moral americana. Se não há uma decomposição analítica como em Standard Operation Procedure (2008) dos acontecimentos entretanto conhecidos, há uma procura de respostas que se extende para além dos soldados rasos no terreno ao incluir depoimentos de Cheney, Woo e Gonzalez que tentam desculpar o indefensàvel e acima de tudo há uma contextualização do clima político por detrás da adopção da tortura, reflectindo sobre a perda de identidade e autoridade moral americana resultante do abandono de princípios humanistas, colocando-os definitivamente ao lado dos terroristas que combatem.



6. Darwin's Nightmare (2004) - Hubert Sauper - Austria/França - trailer
Isto é o que ninguém quer ver. Uma viagem aos confins da África negra, onde a miséria e a pobreza atingem níveis tais que é impossível desviar o olhar e esquecer as imagens desoladoras de uma realidade tão distante e no entanto tão perto. Até que ponto perto é o que o filme pocura explicar na extensão do seu âmbito geral: regularmente aviões russos voam para a Tanzânia para entregar armas e levantar carregamentos de um peixe (a perca), que foi introduzido no lago Vitória pela facilidade com que se reproduz e que está a canibalizar a fauna local num ciclo com um fim definido a curto prazo, destruindo a única fonte de sobrevivência de uma população dizimida por guerras constantes, população que vive as consequências das necessidades alimentares do resto do mundo, ao mesmo tempo que é obrigada a mendigar nos restos dos peixes que não estão em condições de serem enviados para a Europa.
É a subjugação a interesses capitalistas de europeus que não tem consciência dos caminhos que levam ao aparecimento da perca à sua mesa que aqui o filme procura demonstrar. Além de todas as impressionantes imagens é ainda impossível assistir impávido a este pesadelo quando por exemplo alguém justifica a não utilização do preservativo com as políticas do Vaticano ou um guarda nocturno arrisca diariamente a sua vida para conseguir alimentar a sua família, ao mesmo tempo que o produto exportado para europeus prende a população da Tanzânia condenada a um ciclo inescapável e destino lúgubre.



5. Grizzly Man (2005) - Werner Herzog – EUA - trailer
Existiu um homem que queria fugir do mundo, e Herzog foi atrás do seu rasto. Da mesma forma que o Grizzly Man procura um regresso às origens, uma liberdade através duma ligação primitiva à natureza, Herzog procura encontrar algo neste homem que se desligava da sociedade mas filmava obsessivamente o que fazia, alguém paradoxalmente incapaz de seguir as rígidas normas sociais, mas que queria tanto comunicar ao resto do mundo os seus sentimentos-pensamentos. É um retrato emocionante e perturbador construído por Herzog, particularmente afectivo pela forma como Herzog analisa racionalmente as imagens capturadas por Timothy Treadwell e, colocando-se ao lado do espectador, tenta compreender os fundamentos das suas acções e do seu isolamento, mas nem sempre o consegue. Herzog questiona a possibilidade da relação entre o homem e animais selvagens, e a artificialidade de tudo isso vem à tona, exacerbado pela necessidade de atenção que parece motivar Treadwell. Na morte anunciada de Treadwell Herzog encontra
alguém iludido na sua relação com a natureza, alguém que acreditava que a natureza precisava de si, que estes animais precisavam de si, mas a indiferença da natureza é demasiado pesada, e se Treadwell procura uma rendição à natureza, Herzog parece contrapor: será que a natureza precisa do homem?



4. When The Levees Broke (2006) - Spike Lee – EUA
O furacão Katrina foi um dos eventos definidores da década passada pela cobertura de inúmeras horas televisivas em directo a que foi sujeito e que melhor que o olhar crítico Spike Lee para revisitar e escrutinar os acontecimentos que abalaram a comunidade largamente negra de New Orleans. Neste documentário de quatro horas Lee é tenacioso na exaustão com que aborda o assunto e procura respostas para justificar o acontecido, sem deixar nada por questionar. É assustadora a normalidade com que ficamos estupefactos com o sucedido e com a sucessão de eventos e rapidamente constatamos que o abandono da população local encontra razões na sua condição de seres periféricos, e antes de incompetência na forma como nada foi feito para impedir o que aconteceu, e pouco foi feito durante ou depois, encontramos desumanidade. É por isso que este filme é notável, pela forma extraordinária como Lee procura a voz dos silenciados, dos que parecem não importar. Lee agarra-se aos depoimentos das pessoas que viveram a tragédia de New Orleans e cria empatia honesta e a longa duração do filme parece querer transmitir a relutância em abandonar de novo estas pessoas, porque se é verdade que com este documentário a sua história é contada, assim que termina o documentário voltam a ser esquecidas, voltam a ter que sobreviver em condições miseráveis mesmo todo este tempo depois, desaparecem de novo, a realidade da sua efemeridade gravada na eternidade.



3. Ne Change Rien (2009) - Pedro Costa - Portugal/França - trailer
Neste filme-sonho de Pedro Costa, que é também uma declaração de amor a Jeanne Balibar, apenas há a música, não existe mais nada. Nesta imersão sensorial dedicada à contemplação, cada composição é como que uma prenda para o espectador, sublimes momentos de perder qualquer ligação à realidade. A presença fantasmagórica e romantizada de Balibar arrasta-nos para um local de admiração através de uma cadência cénica que nos embala. Costa esquece tudo o resto e regressa ao preto e branco, num magnífico trabalho de tratamento do som e imagem, através de jogos de repetições rítmicas e planos estáticos recorrentes até se fixarem no nosso subconsciente.
Filmado num estúdio durante os ensaios para a gravação de um álbum e preparação para espectáculos ao vivo, é um elogio desarmante ao processo de criação artística.
Se apenas tudo se pudesse prolongar assim como durante esta hora e meia, que nada mude.


2. The Corporation (2003) - Mark Achbar & Jennifer Abbott & Joel Bakan – EUA - trailer
The Corporation é uma investigação em duas partes ao organismo mais perigoso e predatório do século XX: as corporações multinacionais. Fundamentado em depoimentos de críticos como Noam Chomsky, Howard Zinn, Naomi Klein, e insiders como antigos CEO destas empresas ou Milton Friedman, somos confrontados com a evolução destes organismos que ganham direitos equivalentes a uma pessoa mas que sem obrigações morais, na procura de aumentar os ganhos a curto prazo se comportam como parasitas na forma como colocam em causa a própria sustentabilidade da própria sociedade que os alimenta. Utilizando o mecanismo das corporações se equivalerem a pessoas em termos jurídicos, os realizadores deste documentário aproveitam para fazer um retrato psicológico deste organismo e o perfil obtido não é animador, pelo contrário - a lista de comportamentos desequilibrados acumula-se, entre a afinidade em explorar recursos naturais (chegando à privatização da água) ou mão de obra infantil (as fábricas na Ásia apropriadamente referidas como sweatshops) - e o diagnóstico mental chega a psicótico, mas acima de tudo perigoso para a evolução humana.
O seu único modo de defesa é a manipulação da opinião pública através da difusão da ignorância e do adormecimento das massas, algo que este filme se propõe a combater – e numa altura em que as corporações ganharam o direito a apoiar candidatos políticos (enquanto as pretensões de se candidatarem a cargos políticos vão sendo negadas, por agora) é portanto também um pedaço de contra-guerrilha informativa: é definitivamente o documento informativo mais importante da década e um dos mais importantes de sempre - a sua inclusão nos programas escolares deveria ser mandatória.



1. Encounters at the End of the World (2007) - Werner Herzog – EUA
Para uma década que pode ficar marcada pela percepção pela humanidade das consequências de anos de comportamentos irresponsáveis, marcados por guerras sem sentido, degradação dos direitos civis, catásfrofes ambientais ou exploração de recursos naturais finitos, não deixa de ser significativo que a Antárctida de Herzog funcione ao mesmo tempo como alegoria para um último reduto intacto e agora um refúgio com o futuro ameaçado pela acção humana.
As paisagens incríveis que Herzog utiliza magistralmente para incutir um sentimento de respeito e inferioridade perante o poder da natureza, que poderiam significar uma réstia de esperança no planeta e na humanidade, representar uma janela para a recuperação (através dos organismos que conseguem sobreviver em condições extremas), um exemplo inspirador do que merece ser salvo,
para Herzog representam também algo que nunca mais será recuperado e necessita de ser documentado enquanto ainda é possível.
Herzog demonstra um fascínio admirável pelas pessoas que literalmente fogem para este continente estranho, cientistas que aqui podem desenvolver o seu trabalho longe de polémicas e campanhas de desinformação patrocinadas por multinacionais, ou simplesmente pessoas que preferem escapar da sociedade, viver no fim do mundo, o mais longe possível.
O tom derrotista e introspectivo de Herzog que domina o filme é maravilhosamente inquietante à medida que várias vezes pondera sobre a vida no planeta depois de os humanos desaparecerem, um momento que não contesta assumindo desde o inicio pouca esperança de uma mudança positiva no rumo humano.

Se em "An Inconvenient Truth" ficamos expostos a um caminho sem retorno se sem acção rápida, se em "When the Levees Broke" vemos a falta de compaixão para os deixados à sua sorte, se em "Darwin’s Nightmare" ou "Les Glaneurs et la Glaneuse" vemos a incapacidade de agir em conjunto para acabar com um sofrimento incontestado,

se em "Taxi to the Dark Side" ou "Fahrenheit 9/11" vemos a corrupção moral da política sob interesses pessoais,

se em "Jesus Camp" ou "Occupation 101" vemos os efeitos da divisão religiosa, se em "The End of Suburbia" ou "Food Inc." vemos o fim de um modelo sem substituto próximo,

se vemos os recorrentes cíclos económicos repressivos em "Enron: The Smartest Guys in the Room" ou "The Corporation" sem que isso funcione como aviso,

se em "The Corporation" vemos como os principais organismos mundiais não têm interesse em agir sozinhos sem pressão pública,

"Encounters at the End of the World" é o filme que junta isto tudo numa desoladora fuga para o último abrigo que está ele próprio a apagar-se, é a soma e o resumo da perda civilizacional que se prolonga nesta década, mas que também ganhou consciência do que está a acontecer, sem que isso pareça importunar muitas pessoas. Herzog parece deixar-nos com uma pergunta como conclusão: o que fizemos nós?

julho 14, 2010

Documentário [2000-2009] (parte um)

Numa época marcada pela democratização da informação e pela difusão da acessibilidade de meios visuais nunca o documentário foi um género tão popular e nunca apareceram tantos filmes a estrear como na última década, originando uma abundância de diferentes títulos e temas ao mesmo tempo que um certo cinema de intervenção ganhava mais espaço, aproveitando a popularidade recente do documentário para levar às massas mensagens de temas sensíveis que anteriormente não teriam tamanha divulgação. Seria portanto injusto não fazer uma referência a filmes que se aproveitaram das novas potencialidades tecnológicas para produzir documentários de baixo orçamento, mesmo trabalhando fora do sistema, sem que isso significasse perda de clareza. "Loose Change" ou "Zeitgeist" são exemplos disso, e mesmo que perdidos nas próprias premissas marcaram uma janela para o futuro na evolução do género, tal como o americano Robert Greenwald que atráves da produção de documentarios em série (Outfoxed, Unprecedented, Iraq For Sale) de menor duração e produção barata sobre assuntos políticos constituem uma espécie de guerrilha contra-informativa às visões da cultura dominante. Aqui fica a primeira parte de uma selecção muito subjectiva dos melhores títulos da década:


20. Enron: The Smartest Guys in the Room (2005) - Alex Gibney – EUA
É a história da primeira crise económica da década e francamente premonitória em relação ao que acontece quando se confia a supervisão de empresas multinacionais como a Enron entregues a si próprias: a corrupção moral e ganância reflexo do sistema desregulatório capitalista acabam por canibalizar tudo à sua volta, e como que assistindo ao desmoronar de um castelo de cartas, é uma exposição da irresponsabilidade corporativista com consequências directas sobre a população, e é acima de tudo uma lição recente de um embuste já esquecido.


19. Les glaneurs et la glaneuse (2000) – Agnès Varda - França
É preciso alguém que sobrevive na exploração das margens do cinema como Varda para ir à procura destas pessoas que habitam um lugar subterrâneo na sociedade, sobrevivendo através dos restos não aproveitados de outros para quem são invisíveis. Um retrato emocionalmente devastador mas ao mesmo tempo enternecedor pela forma como Varda coloca estas pessoas no centro do filme, é também a história pessoal de como Varda se interessa pelo que o resto da sociedade tenta esquecer.




18. Jesus Camp (2006) - Heidi Ewing & Rachel Grady – EUA
É provavelmente um dos mais aterrorizadores filmes da última década e o pior é que é tudo real. O filme mostra-nos Jesus Camp, um campo de férias para crianças idealizado por evangelistas americanos onde as crianças são expostas aos perigos do aborto ou de ser demasiado tolerante ou pouco activo na defesa da sua igreja e a necessidade de introduzir pessoas no governo para influenciar políticas. É na verdade um campo de doutrinação, em que estas crianças são sujeitas a uma lavagem ao cérebro por pessoas que em entrevistas no filme não tem pejo em afirmar que se revêem como equivalentes a extremistas muçulmanos que ensinam os filhos a sacrificar a vida como soldados de deus, mas com a mensagem “certa”. As imagens de crianças a lamentarem-se por supostos pecados que cometeram são suficientes para deixar qualquer um com violentos calafrios.


17. Food Inc. (2008) - Robert Kenner - EUA - crítica
É um relato incriminador da indústria alimentar americana e da forma como esta tem sucessivamente e progressivamente deteriorado as condições de produção e qualidade dos produtos alimentares numa lógica de ganância-lucro máximo que beneficia também da desinformação do público: ora é exactamente contrariar esse estado e contribuir para uma exposição das práticas generalizadas na indústria que o filme propõe. Durante o documentário somos expostos a uma evolução cronológica dos métodos das corporações que dominam o mercado como fornecedores das grandes cadeias de fast-food e supermercados e das consequentes necessidades em aumentar a oferta para baixar os custos de produção: os animais deixaram de crescer ao ar livre para serem enclausurados em jaulas para colheita em série e são injectados com hormonas de crescimento artificial para reduzir o tempo que demoram a desenvolver-se, com claro declínio em termos de qualidade de vida dos animais. É uma importante chamada de atenção para algo que embora não seja novidade, apresenta uma evolução desoladora nos últimos anos à medida que a conjectura económica afecta as escolhas alimentares.


16. De fem benspænd (The Five Obstructions) (2003) - Jørgen Leth – Dinamarca
Nesta colaboração entre Lars von Trier e Jorgen Leth cabe todo o papel do cinema como catarse emocional e a criação artística como veículo de introspecção pessoal. Von Trier orquestra um plano para obrigar Leth a filmar cinco diferentes versões da mesma história, e além de confirmar o papel necessário dos limites na criação artística como motivo para procurar novas respostas, sujeita igualmente Leth a auto-examinar-se na forma como reage perante estas obstrucções, resultando num dos mais importantes tratados sobre a (de)construção do cinema.


15. Fahrenheit 9/11 (2004) - Michael Moore - EUA
Michael Moore teve uma década em cheio que o catapultou para o centro do movimento do cinema documental contemporâneo, como figura central de um conjunto de filmes que atingiu enorme popularidade e com Bowling for Columbine (2002), Fahrenheit 9/11 (2004), e Sicko (2007) atingiu a sua trilogia fundamental. Mas o filme mais importante será este fervoroso Fahrenheit, como obra de contra-poder e exposição do aproveitamento político do 11 de Setembro pela administração Bush para atacar liberdades cívicas e impingir uma guerra ao resto do mundo sob falsos pretextos, sem esquecer a eleição roubada de 2000. E se Moore é realmente exígio em criar pequenos momentos acusatórios que contaminam o imaginário popular como o confronto com Heston ou as gravações inéditas de Columbine, neste filme consegue descobrir uma das imagens icónicas desta década que quem tenha visto o documentário dificilmente se esquecerá: Bush algures numa escola na Florida, a receber as notícias do segundo ataque ao WTC e ficar sete infindáveis minutos sem reagir, sem saber o que fazer.


14. An Inconvenient Truth (2006) - Davis Guggenheim – EUA
Se visualmente é pouco apelativo por afinal não passar de uma simples conferência ou sequência de gráficos, este documentário é indubitalvente um dos mais importantes documentos da última década por toda a informação essencial que compendia e que compensa completamente o lado visual. É toda uma revelação assustadora e um alerta para uma contagem decrescente, um apelo à acção que definiu um ponto sem retorno no movimento ecológico e um assunto que deveria ser prioritário para todos, que aqui é fundamentado neste instrumento educativo de inestimável valor. Se o culto à figura de Al Gore é aqui exagerado é preciso contextualizar que este é o homem que apenas não substituiu Bush e o seu domínio de 8 anos devido a uma decisão do tribunal supremo americano.




13. The Cove (2009) - Louie Psihoyos – EUA - crítica
"A baía da vergonha” em português é uma inflamadora obra extremamente bem executada naquilo que um documentário deve ser como obra de informação, divulgação de matéria sensível e até como documento político: o filme incide sobre a cidade japonesa de Taiji e a sua baía secreta onde todos os anos são massacrados cerca de 23.000 golfinhos numa demonstração de crueldade inimaginável, ao mesmo tempo que esta brutalidade é escondida do resto do mundo. De uma forma concisa e persuaviva, o documentário demonstra claramente o ponto que pretende passar, e a confrontação com a realidade não deixa espaço para o espectador olhar para o lado: como diz alguém no filme ”Ou se é um activista, ou se é um inactivista”. Porém, acima de tudo o filme tem o mérito de apresentar uma mensagem inspiradora na forma como mostra que através do activismo e da acção de um pequeno grupo de pessoas empenhadas é possivel mudar algo, deixando um apelo sentido contra o conformismo.


12. The Take – Avi Lewis - Canadá
Não é um filme que se destaque pela encenação mas que vive sobretudo da história que conta e da sua importância actual. Naomi Klein, entre escrever “No Logo” e “The Shock Doctrine” viajou para a Argentina com Lewis para acompanhar de perto as repercussões do descalabro da moeda nacional e uma das mais graves crises económicas dos últimos 40 anos. Dois anos depois da crise de 2001 encontramos um país em ruptura com o modelo ultra-liberal adoptado pelo antigo presidente Medem baseado no pacote de medidas sugeridas pelo FMI, mas o filme não vale apenas por recordar o que aconteceu mas também por documentar o que se passa nessa altura nas ruas e fábricas argentinas em que desponta um novo movimento de união entre trabalhadores solidificado num novo modelo de cooperativa a partir das fábricas encerradas no seguimento da crise, que aqui é testado ao mesmo tempo que se decide o futuro do país nas eleições presidenciais, com Medem a tentar regressar ao poder.


11. No End in Sight (2007) - Charles Ferguson - EUA
O mais completo documentário sobre a guerra no Iraque é uma crítica devastadora para as justificações políticas da invasão e para as decisões de condução da guerra no terreno. Incidindo sobre os primeiros dois anos da guerra, isto é, até à ao ponto de quase guerra civil em 2004, o filme mostra a sequência de erros em cadeia que levaram à deterioração insustentável da situação no Iraque e a falta de preparação antes da guerra torna-se completamente transparente e reveladora de uma arrogância desesperante. O filme é especialmente pungente na forma como entrevista pessoas no terreno, militares ou civis experientes, que rapidamente viram a sua vida em perigo devido a decisões que se revelam mais políticas do que baseadas em qualquer conhecimento da situação ou do contexto, e que são muitas vezes instauradas por jovens sem experiência prática escolhidos para o seu posto pela filiação partidária - apenas um exemplo entre muitos que ajudam a compreender o que aconteceu no Iraque e ter uma visão geral de uma ocupação, que para todos os efeitos, ainda não terminou.

julho 06, 2010

Kairo

Kairo de Kiyoshi Kurosawa, 2001 (8/10)
Horror em japonês, mas sobretudo num silêncio fantasmagórico.

junho 22, 2010

A Single Man

A Single Man de Tom Ford, EUA 2009, 6/10


No primeiro filme de Tom Ford o que interessa é a história, mas não tanto como é contada. Pode parecer um paradoxo que um filme de alguém tão ligado ao lado visual se destaque principalmente pelo conteúdo narrativo mas a escolha de Ford em adaptar o livro de Christopher Isherwood é o grande trunfo de “A Single Man”, além obviamente de Colin Firth e Julianne Moore. Através duma descrição fúnebre e construção sóbria somos apresentados a um professor de literatura que cada vez mais não consegue encontrar razões para se levantar da cama de manhã: depois da morte do seu amante num acidente de viação está a desaparecer aos poucos no seu luto como processo de despedida do mundo, sobrevivendo apenas nos rituais impecavelmente ponderados com que prepara o quotidiano que ainda o sustentam por um fio frágil num todo rito cerimonial que parece desenhado para afogar o ruído da sua mágoa, até ao ponto em que percebemos que está efectivamente a cortar amarras soltas para se suicidar. É nesta altura que como numa partida cruel da vida tudo começa a correr mal no seu desejo de se desligar do mundo, com pequenos vislumbres de esperança para o futuro como o cigarro partilhado com um aspirante a actor ou um jovem que desafia o seu desespero-derrotismo.

É portanto sob toda uma pesada carga dramática que o filme se desenrola mas que nas acções da personagem é mais sugerida do que explicita, com a personagem de Firth preocupada em manter aparências e pormenores de requinte sofisticado que perpetuem para o exterior que tudo corre bem, uma fachada intransponível que suporta um longo lamento interior que proporciona imagens-quadros fantasmagóricos como a praia à noite, o parque de estacionamento ou cenas no apartamento agora demasiado vazio e preenchido de memórias. Mas o tom minimalista da história acaba por ser atraiçoado por algumas escolhas de Ford, não contente em deixar o registo reservado da personagem e a performance low-key de Firth contagiar as composições. Se por momentos Ford é ultra-comedido na sua exposição visual, deixando as palavras e as reacções dos actores como encenadores primários, como em duas cenas exemplares - um único plano em que Firth recebe o trágico telefonema com a notícia do acidente, um momento de intimidade partilhado no sofá - noutros momentos recorre a artifícios deslocados que baralham o equilíbrio do filme como um slow-motion debaixo da chuva logo a seguir ao telefonema anterior, cortes rápidos e planos aproximados sobre um jogador de ténis, imagens repetidas de um corpo a flutuar debaixo de água, mecanismos utilizados para forçar simbologia sobre o filme... além de que a utilização do voice-over é sempre problemática, especialmente numa adaptação literária, remetendo para a narração sentimentos que o filme não consegue replicar visualmente sem a ajuda da voz. Se Ford é exímio no modo como consegue caracterizar uma personagem através de um par de óculos ou escolha de sapatos, é desapontante que sinta necessidade de compensar a contemplação com exposição visual. É precisamente pela determinação em manter uma consistência minimalista de acordo com a natureza do argumento mesmo em cenas de elevada tensão dramática que um filme como "Far from Heaven" de Todd Haynes consegue uma inquietação arrepiante, que aqui é apenas difusa.

junho 17, 2010

Somewhere, Sofia Coppola

Lebanon

Lebanon de Samuel Maoz, Israel 2009, 8/10
l'enfer, c'est les autres

É um filme-experiência claustrofóbico, de imersão sensória total na desorientação própria de um cenário estranho de uma guerra estranha. Durante noventa minutos somos captivos do filme dentro de um tanque israelita junto com os seus quatro habitantes nas primeiras horas da guerra do Líbano em 1982.

O filme visualmente funciona em duas dimensões: a dentro do tanque, espaço físico limitador como mecanismo de tensão, e fora do tanque, através apenas da mira telescópica operada por um dos soldados, como janela para os horrores proporcionados pelo avanço do tanque. Esta divisão visual não é estanque, e se a dimensão interior apenas oferece uma segurança ilusória é rapidamente contaminada pelo que se desenrola no exterior, que à medida que germina uma dessensibilização crescente, uma inevitabilidade do cerco da morte à sua volta, desperta um sentimento de auto-preservação e de procura de justificação de uma desresponsabilização pelo que acontece – a certo ponto a única preocupação é abandonar o posto, ser substituído ou abortar a missão, o que apenas funciona para aumentar a pressão emocional cada vez que isso não sucede.

Mais do que uma qualquer ruminação como procura de sentido profundo sobre a psicologia dos soldados, o filme funciona melhor como pequena alegoria da situação extrema de guerra retratada como representativo da reacção humana frente a adversidade, numa abordagem de âmbito existencialista, numa ligação entre os actos de cada um e das suas consequências, da escolha ou falta dela como consideração reveladora da verdadeira natureza humana - isto é atingido através do retrato seco dos acontecimentos e na exasperação visível no rosto suado e chamuscado dos soldados, perdidos num estado de transe - com o tom minimalista e redutor das imagens o impacto visual primitivo tem primazia sobre tudo o resto: no tanque as personagens são definidas pelas suas acções, são como telas vazias sem passado que vão sendo preenchidas com as suas escolhas.

A dicotomia entre opções e consequências das acções, da possibilidade limitada de intervenção no exterior, da separação entre as duas dimensões é melhor exemplificada em duas sequências chaves para o próprio filme: na chegada a uma vila, a destruição e a morte já estão por todo o lado e a mira apenas consegue ver bocados desligados que apenas nos proporcionam uma realidade fragmentada, incapaz de se suster a si própria ou fornecer um quadro geral - as lágrimas de um cavalo abatido mas ainda vivo, um rapaz que escapa uma loja onde todos foram mortos, um velho sentado à porta de um café destruído. Esta separação-impotência é ainda mais exarcebada na sequência de ataque a um prédio, onde somos colocados na pele do atirador do tanque, que assiste congelado ao sequenciar dos eventos, testemunha activa da destruição duma família pela guerra – quando o único sobrevivente, uma mulher, deambula para a rua como que colocada no centro da calamidade, como significante vítima da crueldade humana, nua porque não há mais nada além do que vemos naquele momento, ninguém é capaz de mostrar a empatia necessária, e é aqui que a natureza voyeur do filme se define sem qualquer ambiguidade, estremecendo qualquer possibilidade de redenção, sem recuperação possível. A separação em relação ao resto do mundo, quebrada intermitentemente com a entrada do soldado superior no tanque para os meter em ordem e trazer notícias da outra realidade, vai ampliar as tensões entre os quatro soldados e defini-los, serão ao mesmo tempo torturadores e companheiros uns dos outros na travessia pelo inferno. É como se existisse uma intenção do filme em personificar através das personagens a deterioração causada pela guerra e que a introdução de um soldado sírio capturado e um mercenário ajudam habilmente a evidenciar. E é claro, com o avanço do tanque, com a proximidade do fim, aumenta o isolamento.

Lebanon como experiência sensorial primitiva que é pelo impacto primordial dos acontecimentos e retrato crescente de desesperação que vai construindo, funciona acima de tudo pela catarse visceral da experiência e confinamento dos soldados, do que por qualquer procura de intelectualizar ou necessidade de encontrar profundeza emocional nas acções das personagens – as tentativas de conferir personalidades próprias fora do contexto em que se encontram, como a tentativa de um deles contactar os pais ou a história de outro sobre uma professora, podem ser lidas como tentativas surreais de humanizar as personagens num contexto de saturação de dessensibilização, de absurdo emocional. É um dos problemas do filme: se o desgaste a partir de um certo momento atinge quase um estado de fadiga mental, um ponto a partir do qual já não parece fazer diferença ou afectar os soldados, o filme cai numa certa estagnação visual, recorrendo demasiadas vezes aos olhares em branco dos actores, planos que dependem em demasia de inferirmos algum significado próprio a esses olhares, de lhes atribuir alguma profundidade emocional em vez de se contentar com o horror do vazio. Porém tudo é compensado com a imagem final do filme, que justifica a repetição anterior como modo de exaustão até atingir o fim daquele huis clos.

junho 05, 2010

Top10: Bernardo Bertolucci


10. Touch of Evil de Orson Welles
9. Accattone de Pier Paolo Pasolini
8. Marnie de Alfred Hitchcock
7. City Lights de Charlie Chaplin
6. Blue Velvet de David Lynch
5. Stagecoach de John Ford
4. À bout de souffle de Jean-Luc Godard
3. Germania anno zero de Roberto Rossellini
2. Sansho Dayu de Kenji Mizoguchi
1. La Règle du jeu de Jean Renoir

I vinti (1953)

I vinti (Os vencidos) de Michelangelo Antonioni, 1953, 6/10

I venti é Antonioni com o indicador de cinismo e amargor no máximo, logo no início de carreira. Um ataque incriminador à geração a viver a adolescência no periodo pós-guerra, é também um exercício experimentalista na estrutura do filme. Com um prólogo violentíssimo em tom documental, que sob um voice-over acusatório destila imagens de protestos e recortes de jornais com notícias sobre crimes para estabelecer o ponto de partida, uma reflexão-manifesto sobre o descarrilamento moral de uma parte dessa geração, que depois da miséria da guerra vive agora em segurança económica e vê a partir disso uma atracção pelo hedonismo e fascínio mediático na procura de afirmação individual, tudo abordado e desmascarado no discurso inicial:

"Estas histórias são os feitos daquela que foi chamada de geração queimada, daqueles que no tempo da guerra eram crianças e que quando abriram os olhos viram no mundo um espectáculo de violência. E tão imponente e invasor era esse espectáculo que parecia velar qualquer outro valor como a bondade, a generosidade, a inteligência e o sacrifício. Aquela violência parecia triunfante, segura de si, a sua lei era o desprezo de cada lei, a sua característica social era o desprezo de cada sociedade, no triunfo do indivíduo audaz, cínico, destituído de remorsos, que dá origem a um novo tipo de violência, bem diferente daquele que nasce da miséria e desigualdades socias. Não era um qualquer complexo de inferioridade social que os impelia ao delito, mas o desejo de praticar gestos excepcionais, de emergir. Tudo se unia num só ideal: a celebração da violência como triunfo pessoal. (..) contamos as nossas histórias, não as embelezaremos, nem enriqueceremos de um fascínio que na realidade não têm. Contaremos sem colori-las, sem ênfase porque vista a sua realidade observada sem ornamentos é uma realidade triste e incapaz de seduzir alguém."

O filme é dividido em três capítulos estanques que contam a mesma história em contextos sociais semelhantes e diferenciam-se essencialmente pelos personagens e pela localização: França, Itália e Inglaterra. O capítulo francês é talvez o melhor conseguido: acompanhamos um grupo de jovens numa viagem ao campo que parece à primeira vista uma escapadela às aulas mas que tem contornos mais sinistros. A construção do segmento estabelece a linha narrativa que será seguida nos 3 capítulos: depois de introduzir as várias personagens à saída de casa e sublinhar o alheamento por parte dos pais, e estabelecer que as personagens são todos filhos da classe média longe da miséria pós-guerra, o filme introduz logo algumas pistas para o que se vai desenrolar a seguir – neste caso um dos rapazes surropia uma pistola do armário do pai e outro prepara as falsas aparências que vai tentar sustentar. É este personagem que estará no centro desta história: um rapaz com pretensões a playboy que engana os seus colegas mantendo uma ar de riqueza imunda e que se vangloria disso à frente dos outros, acendendo cigarros em notas a arder – é a inveja que provoca nos outros ainda dependentes dos seus pais que vai ser a sua condenação. É criado um painel de personagens com diferentes motivações: uma lânguida rapariga é provavelmente a mais inteligente do grupo pela forma como manipula os corações dos outros rapazes, sem realmente estar interessada em alguém, apenas procura uma forma de sair dali, uma aventura, e enquanto que um dos rapazes vai tomar a acção responsável pelo seu descalabro colectivo apenas para agradar a essa rapariga, o seu irmão acaba por o abandonar e entrega-lo no fim. Apesar do cinismo pretendido existe ainda algum fascínio sentimental pelo destino destas personagens, o distanciamento ainda não é total, existe algum interesse em explorar as motivações das personagens e uma ligação ao seu inevitável destino trágico, em investigar a perda de inocência e acção irreflectida, espelho da imaturidade e impulsividade dos envolvidos.

Se o segmento francês funciona precisamente pela réstia de compaixão e cinismo bem medido, os capítulos seguintes relevam um maior distanciamento, que embora funcione como manifesto crítico, não acompanham o capítulo francês na exploração das personagens e da sua queda no abismo. O capítulo italiano é marcado por uma secura emocional, uma exposição-constatação dos factos sem preocupação de empatia, abandonando as personagens às suas escolhas e mostrando actos violentos sem grande comiseração ou surpresa pelos mesmos, algo explorado também por Bertolucci na sua primeira obra “La commare secca” (1962) baseado num argumento áspero de Pasolini. Aqui acompanhamos um jovem, que apesar de bem na vida, procura ainda mais para se afirmar indivualmente, neste caso recorrendo ao crime, que é exemplificado pela forma como assassina a sangue frio e sem escrúpulos um guarda nocturno – no dia seguinte confessa-se à namorada, mas confessa-se sobretudo sem arrependimento, perdido num mar de narcisismo, incapaz ele próprio de empatia, sem se aperceber da sua ruína até ser tarde demais. É talvez o capítulo mais convencional, com tangentes a um cinema noir mas efectivo na construção de um desespero reprimido. O capítulo inglês é sobretudo fruto do carácter estranho da personagem principal e da sua carência mórbida e demanda por recognição mediática do seu génio auto-proclamado, numa exploração mais directa do papel dos jornais na afirmação dos indíviduos que procuram a glória através do crime certos da atenção sobre eles próprios que se seguirá - acompanhamos um repórter cansado do mundo à medida que investiga um homicídio e é apresentado ao protagonista deste segmento, uma testemunha do crime que acaba por confessar o crime a troco de uma coluna no jornal, insanidade apenas comparável ao sorriso com que ouve o relato do seu feito em tribunal. Antonioni usa aqui o velho jornalista para contrapor desilusão à imaturidade do assassino e porventura reverberar também o seu estado de espírito.

Antonioni recorre sistemáticamente a uma estrutura de composição que utiliza durante este filme, que é ainda reflexo de um formalismo clássico – a delinquência aqui é apenas na história escolhida. Uma composição normal consiste em 3 momentos definidos durante o plano de cerca de um minuto de duração: 1) a introdução ou preparação, em que escolhe a colocação da câmara e estabelece o fundo de acção, fundamentado essencialmente na localização escolhida para a cena 2) o desenvolvimento, em que as personagens caminham entre marcas pré-definidas até chegaram ao centro da composição e atingir o momento definidor da cena em que o seu objectivo é atingido 3) o epílogo ou conclusão, em que a duração se arrasta alguns segundos depois do objectivo central de cada cena, normalmente observando as personagens à medida que abandonam o enquadramento, proporcionando espaço livre para a reflexão. É um método utilizado consistentemente, quase de forma rígida, sem grandes desvios excepto no capítulo italiano onde durante uma cena de acção há por momentos uma montagem dinâmica e com enquadramentos mais livres, e é uma escolha deliberada que foca a atenção apenas na história e personagens, que serve o propósito enunciado de não embelezar as histórias, filmando sem ornamentos para chamar a atenção para o essencial – recorrendo mais uma vez ao prólogo:
"Derramar sangue tinha para eles o único objectivo de afirmar o vitorioso culto de si mesmo. Quando estes protagonistas se apercebem da sua miséria de e de serem vencedores na mais inútil das batalhas, já é tarde."