junho 28, 2012

Dare mo shiranai / Nobody Knows

Dare mo shiranai / Nobody Knows de Hirokazu Koreeda, Japão 2004, 10/10
 

"I don't think the film has a grammar. I don't think film has but one form. If a good film results, then that film has created its own grammar." Yasujiro Ozu

Hirokazu Koreeda começou a sua carreira a filmar documentários, depois de trabalhar como assistente de realização na televisão. Depois de três documentários, em 1995 realizou o seu primeiro filme de ficção, Maborosi, a que se seguiram After Life (1998) e Distance (2001), antes de Dare mo shiranai (2004).

O filme de Koreeda é um gendaigeki moderno, o sub-género japonês sobre as pessoas comuns, sobre a sua integração na sociedade contemporânea. Faz parte de um conjunto de obras que obtiveram reconhecimento junto do público ocidental e em festivais internacionais, no fim da década de 90. Filmes como A Enguia (1997) de Imamura, Hana-Bi (1997) de Kitano ou Kairo (2001) de Kiyoshi Kurosawa, são obras que procuraram uma renovação da tradição do gendaigeki. É uma nova internacionalização, por oposição à primeira exportação do cinema japonês para o ocidente, que surgiu durante os anos 50, no período dourado do jidaigeki, os filmes de época e samurais (Rashomon, Gate of Hell, Ugetsu).

Dare mo shiranai é baseado em eventos verídicos que aconteceram em Tóquio em 1988, quando quatro crianças foram abandonadas pela sua mãe durante nove meses à sua sorte sem que ninguém interviesse. Desde logo é possível compreender o interesse de Koreeda na história: um humanismo cáustico e amargo e a possibilidade de, partindo de uma história verídica, explorar os limites da fronteira entre o documentário e a ficção, e confundir um género com o outro. Não é desprovido de significado que Koreeda tenha decidido filmar segundo a ordem cronológica da história, num processo que demorou um ano, uma história para o qual ele já tinha desenvolvido um argumento quinze anos antes, quando teve contacto com o acontecimento pela primeira vez.

O resultado é um drama sombrio em que por vezes sobressaem alguns raios de luz. O humanismo com que Koreeda trata o material, longe de assumir um carácter miserabilista, é compassivo e desenvolve uma empatia delicada para com as personagens que apresenta. À medida que o abandono pela mãe exacerba as dificuldades da vida quotidiana e por entre consecutivos contratempos, surgem elementos surpreendentes da união entre irmãos que resultam em pequenos gestos mas cheios de significado e intenção. Especialmente comovente é o retrato do irmão mais velho, a quem cabe involuntariamente assumir o papel de figura parental, ora mostrando maturidade surpreendente para a sua idade, ora desespero perante a incapacidade de tomar conta dos seus irmãos mais novos. É uma interpretação de Yûya Yagira, que valeu-lhe o prémio de melhor actor em Cannes em 2004. É através do seu olhar subjectivo, que o filme apropria, que Koreeda vai compondo a narrativa à volta do dia-a-dia deste bando abandonado à sua sorte. Os acontecimentos vão sucedendo-se, expondo a fragilidade da sua situação e anunciando a tragédia final: desde a chegada clandestina ao novo apartamento, às aparições cada vez mais furtivas e desconcertantes da mãe, as conversas com outros adultos (um dos pais da criança?), até à escassez de comida e aos conflitos fraternais e a inevitável desilusão. O filme nunca assume explicitamente os eventos que retrata, antes procurando um retrato naturalista, servindo-se muitas vezes de pistas subtis e encenações menos óbvias para aludir ao que está a acontecer. O recurso a elipses ou outros elementos reveladores da passagem do tempo são exemplos que denotam a sensibilidade de Koreeda, um dos seus traços autorais.

Outros traços visíveis nas escolhas estilísticas confluem para dotar o filme de um aspecto próximo de um certo tipo de documentário. O objectivo de Koreeda será aproximar-se da noção que algum cinema documental procura veracidade através de um registo meramente presencial, em que a câmara é neutra, no sentido de uma observação invisível e não de manipulação ou interferência. A veracidade que esse estilo infere, apelando ao legado de Albert Maysles ou Frederick Wiseman (pioneiros do direct cinema), é confirmado pelo naturalismo com que Koreeda filma. Recursos como planos estáticos filmados com alguma distância, alternados com grandes planos aproximados de detalhe a mãos ou olhos que denotam uma câmara em movimento, são alguns dos artifícios utilizados, por serem comuns a esse tipo de cinema documental. A profundidade de campo obtida através da manipulação do foco da imagem é outro exemplo através do qual Koreeda dirige a nossa atenção de forma subtil, quase sem nos apercebermos.

Koreeda não cria uma gramática própria, como por exemplo o fez Yasujiro Ozu, que através de relações intrínsecas entre planos e composições procurou criar normas que definissem uma linguagem cinematográfica, uma codificação única. Ozu procurou o naturalismo através da normalização da linguagem utilizada, da repetição das mesmas escolhas. Koreeda no entanto, além de inspirar-se no estilo de Ozu, apropria-se de várias influências, com vista a aproximar-se de um híbrido documentário-ficção. É impossível não pensar em Les quatre cents coups e do papel da nouvelle vague ao ver o filme, quer pela inocência dos protagonistas, quer pela fluidez com que a acção decorre e a sua aproximação a um realismo lírico. Também as preocupações sociais dos filmes dos belgas Dardenne (especialmente no filme Rosetta), conjugadas com a subjectividade visual e obsessão em seguir as personagens de perto desse cinema, encontra paralelos com Dare mo shiranai.

O papel central da família foi sempre um tema fulcral na cultura japonesa e também no seu cinema. A evolução dessa estrutura nuclear, a sua configuração e flutuação como organismo definidor de relações sociais foi abordado de infinitésimas formas. Se Koreeda utiliza as crianças como representativo de futuros comportamentos adultos, ninguém mais que Ozu, na história do cinema japonês, explorou o tema da família recorrendo várias vezes aos olhares subjectivos das crianças. Em filmes como I Was Born, But... (1932) e Ohayo (1959), as crianças servem como mandatários para examinar o mundo adulto. O mesmo acontece em Dare mo shiranai, onde Koreeda recupera a tradição de ceder o protagonismo aos mais jovens, cujo comportamento pode ser contraposto à passividade dos adultos. É possível desvendar no tratamento do autor em relação à história de abandono destas crianças um comentário ao declínio da estrutura familiar como base de segurança, e um exemplo da confirmação da desagregação familiar.

As sequências finais do filme e a revelação da tragédia antecipada, confirmam a subjugação à efemeridade, o conceito que David Bordwell* escolheu para caracterizar a obra de Ozu. O sentimento de evanescência, de que tudo é efémero e de pouca duração, é uma percepção única e um destino inescapável integral à cultura japonesa. Se todos os filmes japoneses são sobre o passado, são também um olhar para o futuro. Nesse contexto, Dare mo shiranai é memorável.

* Ozu and the Poetics of Cinema, David Bordwell