março 28, 2010

So far...

2008: There Will Be Blood - Paul Thomas Anderson - EUA
2007: Letters from Iwo Jima - Clint Eastwood - EUA
2006: Dare mo shiranai (Nobody Knows) - Hirokazu Koreeda - Japão
2005: Million Dollar Baby - Clint Eastwood - EUA
2004: Lost in Translation - Sofia Coppola - EUA
2003: Dogville - Lars von Trier - Dinamarca
2002: Mulholland Drive - David Lynch - EUA
2001: La Pianiste - Michael Haneke - Austria/França
2000: Rosetta - Jean-Pierre & Luc Dardenne - Bélgica
1999: The Thin Red Line - Terence Malick - EUA
1998: Ponette - Jacques Doillon - França

Top da década: Slant


A Slant publicou o seu top100 dos melhores filmes da última década, resultado da escolha dos seus 11 escritores. Uma selecção que revela a inclinação do site para uma perspectiva de apreciação do cinema de autor (afinal, Claire Denis é a autora com mais nomeações), com algumas boas surpresas pelo destaque dado a certos filmes algo esquecidos e sempre com inúmeras obras a descobrir. Se a escolha para nº1 é de certa maneira consensual (tem aparecido em outras listas do género), o nº2 não deixa de ser uma surpresa que é explicada pelo pequeno texto que o acompanha; destaque positivo também para o 9º e 6º escolhidos, mas é algo desapontante verificar a não inclusão de nenhum filme de Eastwood ou Haneke na lista.
A lista completa está disponível aqui

surpresas:
99. Time Out - Laurent Cantet
90. Revanche - Götz Spielmann
87. Wendy and Lucy - Kelly Reichardt
84. Russian Ark - Aleksandr Sokurov
75. Still Life - Jia Zhangke
72. The House of Mirth - Terence Davies
63. Memories of Murder - Bong Joon-ho
61. Wolf Creek - Greg McLean
59. War of the Worlds - Steven Spielberg
55. The Wind Will Carry Us - Abbas Kiarostami
45. Before Sunset - Richard Linklater
38. Twentynine Palms - Bruno Dumont 
32. Platform - Jia Zhangke
29. Gerry - Gus van Sant
22. Fat Girl - Catherine Breillat
15. L'Enfant - Jean-Pierre & Luc Dardenne

a descobrir:
57. La Commune - Peter Watkins
53. Kings and Queen - Arnaud Desplechin
49. Unknown Pleasures - Jia Zhangke
48. In the City of Sylvia - José Luis Guerin
36. What Time Is It There? - Tsai Ming-liang
34. Syndromes and a Century - Apichatpong Weerasethakul
28. The Best of Youth - Marco Tullio Giordana
27. Son Frère - Patrice Chéreau
13. George Washington - David Gordon Green
12. Pulse - In Kiyoshi Kurosawa
7. Werckmeister Harmonies - Béla Tarr

março 23, 2010

Top10 Shots of the Year 2009

Kristopher Tapley do site incontention.com escreveu um artigo em que elege os melhores 10 planos de 2009, um interessante exercício, mesmo que demasiado subjectivo. A inclusão de "Precious", "Up in the Air" ou "Paranormal Activity" faz pouco sentido num âmbito de premiar excelência ou inovação visual, mas as escolhas daquele plano de Public Enemies, de "The Road" ou "The Cove" são meritórias por todo o papel que têm na construcção do ambiente dos filmes. De qualquer o modo o verdadeiro interesse do artigo está nas declarações obtidas junto dos cinematógrafos envolvidos, que permite perceber algumas das escolhas: parte 1, parte 2. Em complemento, 5 frames alternativos à lista, de filmes estreados no ano passado:







Março 2010


março 12, 2010

Entretanto, no outro lado do mundo...

Jafar Panahi, realizador iraniano de filmes como "Crimson Gold" (2003), "The Mirror" (1997) e "The White Balloon" (1995), e que no dia 16 de Fevereiro tinha sido impedido de sair do país para participar numa conferência do Festival de Berlim (onde tinha ganho o Urso de Prata com "Offside" em 2006), foi preso no passado dia 2 de Março.

The Iranian director Jafar Panahi has reportedly been detained by security forces in his homeland. Panahi, 49, is a vocal supporter of the opposition leader Mir Hossein Mousavi and has long been regarded as a pariah by the Iranian establishment. He is currently believed to be being held at an undisclosed location.

Mousavi's website Kaleme quotes Panahi's son, who claims that the film-maker was arrested at his home on Monday night, together with his wife, daughter and 15 dinner guests. Security forces allegedly searched the house and seized belongings. The official Iranian media is not reporting the story.

Panahi's productions are largely funded by European money as a means of bypassing what he sees as government interference. His films are banned in Iran, where the authorities regard them as implicitly critical of the current regime. "[The authorities] think that anyone who is independent or not following their views is a spy of the west," Panahi told the Guardian at the time of Crimson Gold's release. "Paid by the west. Spreading western propaganda."

Abbas Kiarostami, a celebrated Iranian filmmaker who has won numerous international awards for films like “ Close-Up” and “ Through The Olive Trees,” published an open letter in a Tehran newspaper on Tuesday calling for the release of Jafar Panahi and Mahmoud Rasoulof, two directors recently detained by the authorities.

According to The International Campaign for Human Rights in Iran, a source close to him said: “Over the past years, Ministry of Intelligence authorities have summoned Jafar Panahi to different investigation offices of the Ministry in different locations and have questioned him. In one of these meetings he was told, ‘Just because you are a famous filmmaker, you mustn’t think that we are unable to arrest you. We can arrest you whenever we decide.’”

Here is the complete text of Mr. Kiarostami’s open letter, written in response to that arrest:

Oscar: 1990-2010

Num exercício algo fútil, considerando a aleatoriedade das nomeações espalhadas pelos diferentes anos (The Shawshank Redemption ou Secrets & Lies são superiores a Good Will Hunting ou The Sixth Sense, mas a exiguidade da escolha em certos anos obriga a uma outra selecção), é curioso verificar o interesse desta última edição dos Óscares, estritamente de um ponto de vista pessoal:

Oscar: 1990-2010
(vencedor / favorito pessoal)

2010: The Hurt Locker / The Hurt Locker
2009: Slumdog Millionaire / Milk
2008: No Country for Old Men / There Will Be Blood
2007: The Departed / Letters from Iwo Jima
2006: Crash / Brokeback Mountain
2005: Million Dollar Baby / Million Dollar Baby
2004: The Lord of the Rings III / Lost in Translation
2003: Chicago / The Pianist
2002: A Beautiful Mind / Gosford Park
2001: Gladiator / Crouching Tiger, Hidden Dragon
2000: American Beauty / The Sixth Sense
1999: Shakespeare in Love / The Thin Red Line
1998: Titanic / Good Will Hunting
1997: The English Patient / Fargo
1996: Braveheart / Braveheart
1995: Forrest Gump / Pulp Fiction
1994: Schindler's List / ?
1993: Unforgiven / Unforgiven
1992: The Silence of the Lambs / ?
1991: Dances with Wolves / Goodfellas
1990: Driving Miss Daisy / Dead Poets Society

ou seja, 4 em 21 (? em 2 anos que não vi filmes suficientes entre os nomeados para escolher). De notar também que apenas 9 filmes dos 110 nomeados (8%) não são produções americanas, mas apenas 3 não são falados em inglês (dos outros 6, 4 são britânicos e 2 australianos) - são eles "La Vitta è Bella", "Il Postino", "O Tigre E o Dragão", muito pouco para 21 anos.

março 08, 2010

Extraordinário(a)




março 07, 2010

Oscar 2010

(comentário & previsões )
Melhor Filme

The Hurt Locker - 9/10
Inglourious Basterds - 8/10
A Serious Man - 7/10
An Education - 6/10
Avatar - 6/10
Precious - 5/10
The Blind Side - 4/10
District 9 - 4/10
Up - 4/10
Up in the Air - 3/10

A alteração da academia para 10 nomeados, de forma a introduzir filmes mais populares entre os nomeados parece ter funcionado ao permitir nomeações para “The Blind Side” ou “District 9” mas o grande objectivo era que finalmente um dos filmes da Pixar atingisse esta distinção e isso foi conseguido com “Up”, primeiro filme animado nomeado para Melhor Filme desde “A Bela e o Monstro” em 1991; mesmo assim poderá ter sido uma medida fútil considerando que o filme mais popular do ano (Avatar) seria sempre nomeado. De qualquer modo a luta parece cingir-se apenas a 2 filmes: “Avatar” e “The Hurt Locker” com um forte outsider em “Inglourious Basterds” – “Precious” será pouco consensual e “Up in the Air” parece ter esgotado os seus elogios. Logo, este “Avatar” vs “The Hurt Locker” será representativo de uma decisão da consciência colectiva da academia pelo confronto entre um novo rumo do cinema ou a celebração da independência artística: mais do que ser influenciado pelos resultados do box office, dos estrondosos 700 milhões de Avatar vs os 12 milhões de Hurt Locker (apenas o 8º filme nesse ranking desta categoria), pode influenciar o futuro do cinema americano. Por isso mesmo gostaria de acreditar que é possível uma vitória para o filme de Kathryn Bigelow, nem que seja porque a medida de alterar o número de nomeados para 10 é sintomática do domínio do cinema indie americano nos últimos anos nos Oscares (e os tempos de “Titanic” já ficaram para trás), mas se acontecer o contrário não será surpreendente – além de que a introdução de um sistema preferencial nos votos poderá inclinar os resultados para um filme mais popular.
vencedor: “The Hurt Locker” / preferido: “The Hurt Locker”

Melhor Realizador
Que neste caso espera-se que seja melhor realizadora: Kathryn Bigelow, que pode tornar-se a primeira mulher a vencer (e é apena a quarta nomeada na história dos Oscares). O grande opositor de Bigelow é James Cameron, já premiado por”Titanic”: se Bigelow ganhar poderá não significar a vitória de Hurt Locker como melhor Filme, mas se Cameron ganhar Avatar irá com certeza garantir esse prémio.
vencedor: Kathryn Bigelow, “The Hurt Locker” / preferido: Kathryn Bigelow

Melhor Filme Estrangeiro
Das weisse Band - 10/10 (Alemanha)
Un prophète - 9/10 (França)
La Teta Assustada - 8/10 (Perú)
El secreto de Sus Ojos - 7/10 (Argentina)
Ajami - 7/10 (Israel)

Gostaria de acreditar que os favoritos são “Das weisse Band” e “Un prophète”, duas obras enormemente ricas em complexidade e resplandecentes no seu pragmatismo, mas o provável vencedor pode ser “El secreto de Sus Ojos”, um filme muito mais abrangente e emocionalmente fácil. Por oposição “La Teta Assustada” é demasiado abstracto e de díficil leitura, enquanto que “Ajami” é demasiado específico em relação ao seu tema, apesar de alguma simpatia pela forma original como o faz. A vitória de Michael Haneke poderá ser vista como uma consagração da sua obra até agora largamente ignorada pela academia, sendo de notar que é o único destes filmes que tem uma outra nomeação: para melhor cinematografia. Se o prémio for para “Un prophète” será uma surpresa pelo facto de o filme ter perdido quase sempre para o filme alemão nos prémios anteriores com excepção para os Bafta, mas não deixará de ser merecedor. Sem dúvida, uma das mais interessantes categorias este ano.
vencedor: "El secreto de sus ojos" / preferido: "Das Weisse Band"

Melhor Actor
George Clooney destacava-se como favorito no ínicio da época de prémios pela sua performance em “Up in the Air” em que basicamente se projectava a si próprio no papel de um solteirão de quarenta e tal anos, o que até parecia ser suficiente até surgir o provável vencedor Jeff Bridges numa brilhante interpretação como uma decadente estrela de música country onde realmente se entrega de corpo e alma ao filme – a sua vitória poderá também ser vista como a consagração da carreira do “The Dude”. Colin Firth tem tido boas críticas pela sua performance sóbria em “A Single Man” mas a grande revelação entre os nomeados é Jeremy Renner pelo soldado angustiado de “The Hurt Locker”, uma verdadeira demonstração de complexidade mais súbtil que o tipo de filme que é parece sugerir - a surgir uma surpresa poderá ser Renner, mas que só acontecerá se Hurt Locker se mostrar imparável nas outras categorias. Morgan Freeman é que parece ter poucas hipotéses pelo seu papel em “Invictus”, largamanente considerado pouco carismático.
vencedor: Jeff Bridges / preferido: Jeremy Renner

Melhor Actriz
É uma categoria em que é díficil escolher uma performance que sobressaia em relação às outras, especialmente tendo em conta a perplexidade das não nomeações de Tilda Swinton (Julia) ou Charlotte Gainsbourg (Antichrist). Se existe alguma admiração pela composição pouco usual oferecida por Gabourey Sidibe em “Precious”, não deixa de ser algo inquietante que isso provavelmente se deva ao caracter único da personagem, e que mesmo assim seja uma interpretação de um alcance mono-tónico. Já Carey Mulligan em “An Education” parece ser capaz de convincentemente exibir uma multitude de facetas diferentes mas que não é suficiente para impressionar em demasiado. Meryl Streep, por todo o talento que possui, nada mais é que uma caricatura com sotaque num papel menor no sofrível “Julie & Julia”, que parece ser pouco para lhe dar a vitória que lhe escapa há tanto tempo, especialmente tendo em conta as performances que demonstrou em tempos recentes. Logo a favorita para o prémio, Sandra Bullock, pode até surpreendentemente ser uma boa escolha entre as nomeadas: é a a sua performance que carrega o veículo comercial que é “The Blind Side”, e não é sem mérito que parece dar algum peso emocional no seu retrato honesto de uma texana com coração de ouro, algo já comparado a Julia Roberts em “Erin Brockovich”.
vencedor: Sandra Bullock / preferido: Sandra Bullock

Melhor Actor em papel secundário
vencedor: Christoph Waltz, “Inglourious Basterds” / preferido: Christoph Waltz

Melhor Actriz em papel secundário
vencedor: Mo’Nique, “Precious” / preferido: Maggie Gyllenhaal, “Crazy Heart”

Melhor Argumento
Na categoria de argumento adaptado parece certa a vitória de Jason Reitman por “Up in the Air” como prémio de consolação para o filme; já na categoria original, sem a presença de “Avatar” a disputa será entre Quentin Tarantino e Mark Boal (“The Hurt Locker”), com vantagem para o autor de Basterds, que poderá aqui ganhar o 2º oscar como argumentista, como compensação por provavelmente não ganhar melhor realizador ou filme.
Adaptado – vencedor: “Up in the Air” / preferido: “In the Loop”
Original – vencedor: “Inglourious Basterds” / preferido: “Inglourious Basterds”

Melhor Documentário
vencedor: “The Cove” / preferido: “The Cove”

Melhor Cinematografia
Uma das categorias mais difíceis de prever, mas se julgarmos que uma vitória para “Das weisse Band” ou “Inglourious Basterds” será mais díficil pelo trabalho mais requintado que apresentam (logo menos imediato), poderá estar lançado o caminho para mais uma batalha entre “Avatar” e “The Hurt Locker”: se o primeiro representa uma nova direcção pelas imagens trabalhadas virtualmente e poderá ser premiado pela sua inovação tecnológica, “The Hurt Locker” depende largamente das técnicas e imagens utilizadas para envolver emocionalmente o espectador na história, desde logo imediato na sequência de abertura. Poderá estar nesta categoria um sinal inicial do rumo das restantes categorias, especialmente no confronto entre “Avatar” e “The Hurt Locker”.
vencedor: “The Hurt Locker” / preferido: “Das Weisse Band”

Melhor Montagem
Mais um confronto entre “Avatar” e “The Hurt Locker”: se “Avatar” ganhar aqui poderá ser imparável nas outras categorias, mas o favorito parece ser “the Hurt Locker”, que tal como na cinematografia, utiliza a montagem de forma soberba para manter um elevado nível de tensão constante nas cenas de acção em que o espectador está sempre ciente do ambiente em redor, e que melhor exemplo para um filme pouco convencional de acção do que a sequência do sniper, que em vez de se resolver rapidamente arrasta-se quase até afundar-se no horizonte. É um dos primeiros prémios importantes entregues e será um indicador para o resto da noite.
vencedor: “The Hurt Locker” / preferido: “The Hurt Locker”

Restantes categorias (vencedor, preferido)
Best Costume Design: The Young Victoria / Bright Star
Best Art Direction: Avatar / The Young Victoria
Best Music (Original Score): Up / The Hurt Locker
Best Music (Original Song): “The Weary Kind”, Crazy Heart / “The Weary Kind”
Best Sound Editing: Avatar / The Hurt Locker
Best Sound Mixing: Avatar / The Hurt Locker
Best Visual Effects: Avatar / Avatar
Best Makeup: Star Trek / ?
Best Animated Feature Film: Up / ?
Best Documentary Short: China’s Unnatural Disaster: The Tears of Sichuan Province / The Tears of Sichuan Province
Best Short Film (Animated): Wallace & Gromit in ‘A Matter of Loaf and Death / Wallace & Gromit
Best Short Film (Live Action): “The Door” / ?

The Cove

The Cove, de Louie Psihoyos, EUA 2009, 9/10

The Cove, traduzido para português como “The Cove – a baía da vergonha” é uma inflamadora obra extremamente bem executada naquilo que um documentário deve ser como obra de informação, divulgação de matéria sensível e até como documento político: o filme incide sobre a cidade japonesa de Taiji e a sua baía secreta onde todos os anos são massacrados cerca de 23.000 golfinhos numa demonstração de crueldade inimaginável, ao mesmo tempo que esta brutalidade é escondida do resto do mundo. A cidade, que supostamente celebra a vida marinha através de museus e viagens turísticas a bordo de barcos com a forma de um golfinho e tem uma longa tradição na pesca de baleias que entretanto caiu em declínio, é na verdade cúmplice de uma operação que é mantida debaixo de total secretismo explicitado na desconfiança em relação a qualquer estranho, chegando mesmo à intimidação física para quem mostrar demasiada interesse pela mencionada baía, onde abundam os sinais de proibição de fotos.

De uma forma concisa e persuaviva, o documentário demonstra claramente o ponto que pretende passar, utilizando várias etapas narrativas que vão intercalando com o projecto de obter imagens inéditas do massacre. Começando por introduzir Richard O'Barry, responsável por capturar e treinar os golfinhos da série televisiva “Flipper”, somos confrontados com um homem amargo e paranóico que se sente culpado pela expansão da popularidade dos animais que resultou na sua crescente procura e captura em aquários como o Seaworld ou Zoomarine, aqui desmentidos como inocente diversão familiar – se O’Barry parece acreditar que um dos golfinhos da série suicidou-se nos seus braços devido a depressão, o filme faz um bom argumento em explicar como esses animais em cativeiro desenvolvem úlceras e outros problemas de saúde relacionados com o stress devido ao ambiente sonoro em que são enclausurados - durante emocionais depoimentos O’Barry mostra um longo lamento em relação ao seu passado e isso ajuda a enquadrar a sua transformação para um importante activista defensor dos direitos dos animais. O filme tenta também criar um quadro de empatia em relação aos golfinhos, tentando demonstrar a sua inteligência superior e explorando a sua relação com os humanos com recurso a relatos de pessoas cuja vida foi possivelmente salva pela acção dos mesmos. Outro ponto fulcral do filme é tentar encontrar resposta para as razões do massacre: se em cada ano são escolhidos alguns golfinhos para serem vendidos a parques aquáticos (por cerca de 150.000$ cada um), a venda da sua carne para consumo nem sequer é muito popular no Japão, onde acaba por ser comercializada como carne de baleia, o que acaba por ser um crime para a saúde pública dada a demonstração dos altamente tóxicos níveis de mercúrio na sua carne – um dos pontos mais sinistros do filme é a revelação dos planos de servir a carne aos estudantes dissimulada como carne de baleia nas cantinas locais, estabelecendo que o filme não se trata apenas de direitos animais mas igualmente de uma questão de direitos humanos . O documentário expõe ainda como o Japão tenta todos os anos inverter a interdição mundial de pesca de baleias que prevalece desde 1986 na International Whailing Commision, onde tem uma posição quase isolada em relação ao resto do mundo, com excepção de algumas pequenas nações africanas ou das Caraíbas que vendem os seus votos.

Além da narrativa informativa e humanista, há também outro lado do filme que que aborda a própria tarefa da execução do filme e da sua missão arriscada de infiltrar a baía em Taiji para obter as imagens incriminadoras. Somos apresentados à equipa de super-activistas, que inclui por exemplo uma recordista mundial em apneia, à medida que cada um procura explicar por palavras os fortes sentimentos que os movem nesta acção e se mostram afectados pelo que vão descobrindo e pelo assédio de que são alvo pelas autoridades uma vez chegados ao local. Recorrendo a uma parafernália de gadgets electrónicos para captação audio e video que passam por camâras disfarçadas de rochas ou sub-aquáticas, o filme consegue impor uma dinâmica de filme de aventura ou thriller que só ajuda a prender a atenção e a envolver emocionalmente o espectador.

Porque é exactamente disso que se trata afinal em “The Cove” – se a argumentação ou racionalização apresentados não forem suficientes, o filme caminha todo ele para uma sequência que é impossível deixar qualquer um insensível: usando uma composição de sons gravados dos golfinhos no momento em que são encurralados na baía e imagens de vídeo da matança, até ao ecrã ficar literalmente vermelho de sangue derramado, observando a reacção mortificada dos membros da equipa (entre os quais Richard O’Barry) à medida que visionam as gravações, a confrontação com a realidade não deixa espaço para o espectador olhar para o lado: como diz alguém no filme ”Ou se é um activista, ou se é um inactivista”. Porém, acima de tudo o filme tem o mérito de apresentar uma mensagem inspiradora na forma como mostra que através do activismo e da acção de um pequeno grupo de pessoas empenhadas é possivel mudar algo, deixando um apelo sentido contra o conformismo.


março 05, 2010

Food Inc.

Food Inc., de Robert Kenner, EUA 2008, 8/10

É um documentário que assemelha-se por vezes a um filme de terror, tal é o relato incriminador da indústria alimentar americana e a forma como esta tem sucessivamente e progressivamente deteriorado as condições de produção e qualidade dos produtos alimentares numa lógica de ganância-lucro máximo que ajudado por uma desregularização governamental beneficia também da desinformação do público: ora é exactamente contrariar esse estado e contribuir para uma exposição das práticas generalizadas na indústria que o filme se propõe. Recorrendo a entrevistas com conceituados autores como Eric Schlosser (Fast Food Nation, 2001) e Michael Pollan (The Omnivore's Dilemma, 2006) revela factos alarmantes sobre o que acontece com os alimentos até chegarem ao consumidor.

Durante o filme somos expostos a uma evolução cronológica dos métodos das grandes corporações que dominam o mercado de distribuição de matéria prima como fornecedores das grandes cadeias de fast-food e supermercados e das consequentes necessidades em aumentar a oferta para baixar os custos de produção: os animais deixaram de crescer ao ar livre para serem enclausurados em jaulas para colheita em série e são injectados com hormonas de crescimento artificial para reduzir o tempo que demoram a desenvolver-se, com claro declínio em termos de qualidade e preocupações sobre a transmissão das hormonas para a cadeia alimentar. Também é explicado como essas corporações subcontractam na maior parte a sua produção a pequenos agricultores que são obrigados a reger a sua operação segundo certas linhas para maximizar a produção de forma a conseguirem pagar os empréstimos concedidos por essas mesmas corporações para os agricultores manterem a sua actividade, num ciclo vicioso que tem como resultado óbvio a perda de condições sanitárias e de segurança quer para os animais quer para os trabalhadores ilegais usados nessas fábricas; ao mesmo tempo os agricultores são obrigados a utilizar sementes transgénicas alteradas cuja segurança alimentar nunca foi realmente provada – utilizando um testemunho de um dos poucos agricultores que ainda se recusa a usar tais sementes ele revela como a sua plantação foi contaminada pelas sementes transgénicas dos campos vizinhos e está a ser processado pela Monsanto (exposta também no documentário “Le monde selon Monsanto”) por infrigimento de patentes, numa campanha agressiva de domínio para uniformização das culturas.

O filme é acima de tudo corajoso pelo assunto que aborda apesar dos poucos meios disponíveis: não há grandes momentos cinematógrafos e vive essencialmente de dois trunfos bem jogados: da obtenção de imagens inéditas (tal como "The Cove") como prova irrefutável das condições deploráveis praticadas e de testemunhos de pessoas afectadas directamente pelas consequências dessas práticas predadoras e insensíveis ao bem público, como é o caso de uma família que perdeu uma criança depois desta ter comido um hamburger de carne contaminada pela bactéria e.coli - não há argumento mais convincente no filme do que o facto de as empresas envolvidas estarem conscientes que juntar um grande número de animais em espaços fechados sem condições sanitárias exponencia o perigo de contágio de bactérias ou doenças entre os animais, mas que preferem utilizar um tratamento mais barato baseado em amoníaco do que melhorar as condições, e que qualquer indemnização que venham a pagar a famílias como a entrevistada será mais que compensada pelo aumento das margens de lucro. Ouvimos também de uma família de poucos rendimentos que ilustra bem as dificuldades para uma certa parte parte da população em ter acesso a uma alimentação saudável quando os preços dos vegetais são mais altos do que um McMenu ou 1 litro de refrigerante é mais barato que uma garrafa de água, cujas consequências são demonstradas pelo surto de diabetes e obesidade que afecta esta família, uma epidemia que ameaça alastrar-se às familias pobres americanas sem dinheiro para pagar os custos médicos associados, tal como o domínio das corporações assume proporções alarmantes e ameaça infiltrar-se nas nossas escolhas do dia a dia (exemplo: pela primeira vez desde 1998 a Comissão Europeia autorizou esta semana o cultivo de um transgénico). É um documento essencial e uma importante chamada de atenção para algo que embora não seja novidade, apresenta uma evolução desoladora nos últimos anos à medida que a conjectura económica afecta as escolhas alimentares.


The Most Dangerous Man in America

The Most Dangerous Man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers, de Judith Ehrlich & Rick Goldsmith , EUA 2009, 7/10

The Most Dangerous Man in America é como Richard Nixon se referiu a Daniel Ellsberg, responsável pela fuga de documentos "top secret" do Pentágono relativos à guerra do Vietname, que mais tarde seriam publicados nos jornais americanos, revelando toda a farsa que foi a preparação para a invasão e a consequente manipulação da estratégia de guerra para salvar interesses norte-americanos na região. Ellsberg, um analista ao serviço do instituto RAND (Research and Development) e mais tarde integrado no Pentágono como estratega militar com o encargo de estudar diferentes cenários de guerra e as implicações políticas das acções do exército americano durante a presença no Vietname, sentia-se directamente implicado pelo rumo da guerra, já que fez parte de uma equipa responsável pela criacção de documentos com o objectivo de justificar uma intervenção americana (mesmo que baseados em relatos falsos ou exagerados). Ao longo do documentário, Ellsberg conta na primeira pessoa como à medida que foi integrado na operação e tinha acesso a mais informação, crescia a sua desilusão com o modo como tudo decorria e especialmente com a manipulação pelo governo da opinião pública e dos meios de informação que eram mantidos no escuro sobre o que acontecia realmente no terreno. Este primeiro acto do filme é um acto de contricção de Ellsberg à medida que vai revelando a sua mudança de consciência, através de relatos emocionados da sua angústia por fazer parte do sistema ao mesmo tempo que era confrontado com activistas que arriscavam penas de prisão para defender um ideal, depois de ter presenciado os efeitos da guerra nos soldados americanos e na população vietnamita. Ellsberg explica como chegou a uma única conclusão possível que era para ele usar o poder como insider e o acesso à informação que tinha para trazer a público documentos secretos incriminadores, numa decisão que teve repercussões até a Watergate e à demissão de Nixon.

Utilizando poderosas imagens de arquivo (entre as quais gravações de Nixon, como "I'd rather use a nuclear bomb. Have you got that ready?"), recriação dos eventos descritos e testemunhos de colegas e analistas históricos (entre os quais Howard Zinn) que colocam perspectiva sobre os acontecimentos, o filme demonstra efectivamente os efeitos da exposição de Ellsberg sobre a sua vida pessoal (interrogado e acusado de crimes que carregavam uma sentença de 115 anos de prisão), e a batalha pela liberdade de imprensa que se seguiu a uma injunção da Casa Branca para impedir o New York Times de publicar a história.

Se existe uma tentativa pelos realizadores de criar uma ligação entre a história pessoal de Ellsberg, que quando era criança sofreu um acidente de viação que vitimou a sua mãe e irmã porque o seu pai adormeceu ao volante… tal como os presidentes americanos responsáveis pela continuação da guerra, no fundo o documentário é sobre uma atitude corajosa de alguém que questiona noções simplistas de patriotismo e arrisca tudo numa defesa resoluta de um príncipio, mesmo contra enormes adversidades. É também impossível não ver um paralelo com a guerra do Iraque e o não-papel dos media no período que antecedeu a invasão, e por isso não é surpreendente ver Ellsberg em 2008 numa manifestação pelo fim da guerra nas imagens finais do filme, símbolo de alguém que não perdeu a esperança em fazer a diferença.

março 03, 2010

The Hurt Locker: apolítico?

Bigelow: My Film Does Take a Stand -- Against Futility of Iraq War (thewrap.com)

-- I keep reading about how the movie doesn’t take a political point of view, but it seems clear to me that you have a pretty strong point of view. As you say, it's a hellish situation and we have no business sending our men into it.
Bigelow: Well, that’s certainly my feeling. I’m a child of the ‘60s, and I see war as hell, and a real tragedy, and completely dehumanizing. You know, those are some of the great themes of our time, and we made a real effort to portray the brutality and the futility of this conflict.

-- So you would say that the movie does indeed take a stance?
Bigelow: I guess my feeling is that graphic portrayals of innocent children killed by bombs, and soldiers incapable of surviving catastrophic explosions … I think that’s pretty clear. And then also, to add to that, the movie opens with a quote, “The rush to battle is often a potent and lethal addiction, for war is a drug.” So it’s definitely taking a very specific position. (...) And also, it’s been extremely gratifying that it allows a kind of exposure to a film that is a tough, graphic portrayal of a very tough subject, America’s most unpopular war. And I’m gratified by the fact that all of this attention that comes with this circuit, has served to remind us that this war is still ongoing, and this conflict is now nine years out in Afghanistan, and eight years out in Iraq. It’s not only America’s most unpopular war, but I think it’s arguably its longest engagement.

(à esquerda: foto do britânico Tim Hetherington vencedora do World Press Photo Award 2008, celebrada por questionar a guerra no Afeganistão; à direita: imagem do filme de Kathryn Bigelow)

Ajami

Ajami, de Scandar Copti e Yaron Shani, Israel 2009, 7/10

É um drama multi-facetado que segue diferentes linhas narrativas acompanhando um painel de várias personagens de um pobre bairro israelita - Ajami, da cidade maioritariamente árabe de Jaffa, a sul de Tel Aviv. Constituído por cinco capítulos-vinheta explora as histórias segundo os variados pontos de vista das personagens que vão desde um imigrante clandestino palestiniano a um polícia israelita obcecado com o irmão desaparecido em Gaza, mas focando-se principalmente nas divisões e conflitos entre as famílias árabes israelitas, muçulmanas e cristãs. A narrativa que é quebrada tipo puzzle, ao estilo de Magnolia ou Crash, no sentido em que caminha todo o filme para uma resolução no final, pode ser por vezes confusa ou artificial no modo como arranja coincidências de forma a que nem tudo seja o que pareça a uma primeira vista, mas neste caso não há uma sobreposição exagerada das diferentes linhas, funcionando na maioria das vinhetas como capítulos estanques através das acções das personagens. O motif comum é uma exploração das tensões inter-religiosas entre as diferentes famílias que habitam o bairro, uma divisão clara entre muçulmanos e cristãos e judeus que afecta a vida de todos - como a morte de alguém logo no início força famílias a escolher um lado, que o dinheiro pode resolver mas nunca é suficiente num quadro de empregos precários e pequenos crimes que força a mão de alguns personagens enquanto outros caminham impunemente entre os dois lados da lei, e como outra personagem se subjuga a tudo para arranjar o dinheiro suficiente para ajudar a pagar uma operação à mãe na Palestina, isto é: como todo o imediatismo destes problemas parece diluir qualquer mundo que exista para lá daquele bairro - o importante é sobreviver ao agora.

Através da utilização de um estilo naturalista de filmagem, numa aproximação ao registo documental ou até ao cinéma-vérité, o filme procura criar a ilusão de como espectador estarmos sempre presentes no meio da acção, quase como parte envolvida. É uma escolha que se adequa à preocupação social explorada, numa emulação da realidade como verdade através do uso permanente da câmara ao ombro, se bem que nunca sai deste registo e existem poucos movimentos deliberados ou composições planeadas, numa prova de que a encenação é refém da acção. Este enquadramento é apenas abandonado no início e fim do filme, que introduzem um registo fantasioso e supostas capacidades premonitoras para indicar a visão do personagem que supostamente narra o filme mas que é esquecido na sua maior parte, um ponto de vista de uma criança (irmão mais novo de um dos personagens que tem direito a um capítulo próprio) que não parece ser capaz de compreender a complexidade das acções à sua volta, num passo em falso do filme que pode fragilizar as intenções do filme como obra de aproximação à verdade. Se o objectivo do cinéma-vérité é a imersão numa realidade como substituto próximo da verdade, isso dificilmente poderá passar apenas pela encenação sem a utilização desse estilo para provocar uma ligação emocional com as personagens e o seu destino - isso é algo que nunca é completamente atingido em Ajami, quer pela escala escolhida pelo filme quer pelas acções e motivações ambíguas da maior parte dos protagonistas.

É uma encenação a um tom único, que apesar disso mantém um ritmo elevado e cativante num cenário permanentemente violento e de ramificações complexas, mas quando a camâra se atira para o meio de uma confusão entre personagens a reagir a quente a qualquer acontecimento (sempre resolvido com empurrões e insultos) pela quinta vez teme-se uma estagnação inconsciente da narrativa, mas curiosamente é nos momentos em que o filme abranda, ao abordar um romance impossível entre um árabe muçulmano e uma árabe cristã, que mesmo sendo um cliché permite ao filme uma liberdade da narrativa e do estilo para criar das mais comoventes sequências do filme: nos toques subtis de mão entre os namorados ou a troca de uma pastilha elástica debaixo de olhares suspeitos do pai, e a sequência do diálogo entre o pai e a filha depois de descoberto o romance, crudemente estabelecendo a força da tradição, momento alto do filme que serve para definir um ponto de não retorno, de duro confronto com a realidade e de começo da espiral descendente do último acto.

março 02, 2010

Exit Through The Gift Shop - A Banksy Film

crítica: cinematical.com, twitchfilm.net

Precious

Precious: Based on the Novel 'Push' by Sapphire, de Lee Daniels, EUA 2009, 5/10

Precious parece-se com um OVNI a voar por entre o conjunto de filmes destacados na época de prémios, quer por uma sensibilidade social que mesmo que ambígua neste caso não é nada comum no panorama dos filmes premiados, quer pela natureza crude da história desconfortável que aborda: uma adolescente negra de 16 anos morbidamente obesa e com limitadas capacidades intelectuais, grávida pela segunda vez depois de repetidamente violada pelo pai (o primeiro filho nasceu com síndrome de down e tem aparições aflictivas durante o filme onde tem a alcunha de “mongolóide”), que é abusada mentalmente, fisicamente e sexualmente pelo monstro que é a sua mãe, abandonada à sua falta de sorte e de qualquer supervisão ou solidariedade adulta. Gabourey Sidibe, nomeada para o Óscar de Melhor Actriz, arrasta-se literalmente pelo filme tal é a dificuldade da personagem em fazer algo mais que estar sentada, numa exibição de apatia e sofridão que dura pelo menos até ao princípio do segundo acto do filme, quando é expulsa da escola depois da descoberta da sua segunda gravidez e indicada para uma outra escola para pessoas com “necessidades” especiais, onde conhece uma nova professora que finalmente demonstra algum interesse na sua condição e fé na sua capacidade de escapar a um destino fatalista – toda esta sequência é demasiado próxima de “Dangerous Minds” mas pelo menos tem a virtude de introduzir novas personagens e alguma evolução narrativa face à estagnação inicial.

O filme apresenta algumas escolhas pouco usuais na abordagem da execução da história e uma delas é a introdução de um voice-over constante narrado por Precious, revelador dos seus pensamentos desconexos e muitas vezes sem um fio condutor lógico, que não é utilizado para exposição da história mas como um artíficio para um vislumbre da personalidade da personagem. O grande problema do filme porém é a escolha do realizador de ao invés de apresentar esta história inquietante de um modo realista que possibilite uma identificação com os problemas da personagem, optar por uma estilização exagerada e demasiado consciente que por consequência distancia o espectador da acção: várias vezes Precious recorre a fugas fantasiosas como forma de fazer frente a situacções incómodas, imaginando por exemplo que é uma famosa autora quando escreve, ou que é uma esbelta rapariga branca quando se olha no espelho, emparelhado com inserções de planos rápidos de trivialidades quotidianas nauseadoras como a preparação do jantar, que apenas são distracções visuais (numa sequência de flashback em que Precious recorda a sua violação há uma estranha mistura de gordura,ovos fritos e vaselina); esta estilização forçada tem como resultado que nas últimas sequências do filme que se baseiam em longos diálogos confrontadores entre Precious, a sua mãe e uma assistante social (interpretada por Mariah Carey, num elenco que inclui também Lenny Kravitz) em que é utilizado um estilo de montagem naturalista - planos com a duração similar de alguns segundos, intercalados entre si sem chamar a atenção para os cortes, com ligeiros movimentos da camâra na aproximação a um estilo documental – essa escolha seja uma inversão tardia e mais uma vez, demasiado consciente em relação ao pretendido.

Por toda a admirável fúria de Precious contra o seu ostracismo e a negação em se render à sua condição, não deixam de ser preocupantes certos aspectos do filme: a forma como Precious fantasia com um mundo vápido de celebridades vazias demonstra que se tem apenas como objectivo atingir um materialismo típico americano que nada resolve em relação ao seu futuro muito menos resulta para lutar contra os obstáculos que lhe aparecem - se ela é julgada pela sua aparência e condição social apenas deseja uma fuga para fora do ghetto, contente em ser a excepção à regra - ao mesmo tempo que o filme perpétua certos estereótipos perigosos de tomar a parte pelo todo que fragilizam qualquer leitura social das intenções do filme: a mãe preguiçosa que vive à conta de fraude da segurança social, o pai abusivo... se as fantasias de Precious podem ser compreendidas tendo em conta o suposto conhecimento limitado da personagem, o mesmo não se pode dizer da escolha do filme de apropriar-se de uma cena do filme "La Ciociara" de Vittorio De Sica: se é completamente descabido que alguém como Precious utilize tal material, ainda é mais incrível a comparação pretensiosa que o filme tenta passar com o neorealismo italiano.

Se a história tem algum interesse humano e investimento no retrato de uma personagem esquecida pela sociedade e estrangeira aos filmes (não deixa de haver alguma ironia e comentário no facto de a personagem fantasiar com as personagens repletas de glamour que vê na televisão, o seu maior escape, onde não existem personagens como ela), esse retrato é minado pela escolha estílitistica de tangentes surrealistas e consequente falta de realismo para um drama que parece pedir uma atitude menos pedántica.