dezembro 30, 2014

Mga anak ng unos (Storm Children: Book One, 2014)

Mga anak ng unos (Storm Children: Book One) de Lav Diaz, 2014 Filipinas, 8/10
visto no Porto/Post/Doc - texto original aqui
Mga anak ng unos (Storm Children: Book One)
Mga anak ng unos (Storm Children: Book One, 2014) é uma proposta difícil: um filme longo, a preto e branco, com planos fixos de vários minutos onde quase não há acção ou movimento e sem diálogos: cinema mudo mas pouco silencioso. Mas se Lav Diaz, um cineasta desafiante das regras, parece aqui recusar qualquer narrativa ou até noção temporal, esta é sua proposta, para nos mostrar o rasto de destruição da passagem pelas Filipinas do supertufão Haiyan em 2013, o mais forte já registado na história, provocando a morte de cerca de 7 mil pessoas. Diaz leva-nos para o meio dos escombros, sem contexto, onde se detém a filmar as crianças enquanto estas remexem por entre o lixo e ruínas à procura de algo que se aproveite, repetindo longas sequências onde nada acontece excepto estas tarefas banais e sem sentido, testando a paciência do espectador. Mas aqui tudo acontece por uma razão, ou melhor, olhando para trás, o plano de Diaz começa a fazer sentido. Aos poucos compreendemos que é a própria presença da câmara de Diaz que dá sentido a estes gestos dos miúdos, anestesiados e repetidos, que deixados ao abandono no pós-trauma da destruição, deixam de sentir-se esquecidos para verem na presença de Diaz um aliado, uma testemunha. Depois, percebemos também gradualmente que estas longas sequências onde nada parece acontecer são, na verdade, o espelho de uma vida sem sentido, de pobreza e sofrimento – como se aquele vasculhar, aquele passar do entulho de um lado para o outro, fosse natural em qualquer contexto. E finalmente, através de uma breve entrevista a um dos miúdos, o único depoimento no filme, percebemos que o foco do filme nas crianças tem uma razão de ser: enquanto os mais novos correram para os montes para fugir da subida de águas e das ondas, os mais velhos ficaram para trás, e sobraram apenas quase as crianças para remexer nas ruínas. Um dos rapazes que perdeu a mãe e duas irmãs segue a câmara, orgulhoso por estar a participar num filme. É natural que perante isto Diaz não queira parar de filmar, como se a cura para aquela tragédia passasse pela presença de Diaz junto das crianças, e pela presença destas crianças no filme. Fica a letargia do trauma primeiro, depois a tristeza. Primeiro o silêncio, depois o recomeço.

Costa da Morte (2013)

Costa da Morte de Lois Patiño, 2013 Espanha, 8/10
visto no Porto/Post/Doc - texto original aquiCosta da Morte de Lois Patiño
Um filme feito todo com planos de paisagem, como foi apresentado pelo seu realizador Lois Patiño, Costa da Morte (2013) surge no festival como um exemplo de um emergente cinema galego, com os seus autores jovens e novas linguagens, representado aqui por Patiño, vencedor do Prémio de Melhor Novo Realizador no Festival de Locarno de 2013. Costa da Morte é um filme melancólico, com os seus longos planos fixos, contemplativos e hipnóticos, mas quase científico quanto à sua investigação da coabitação entre o Homem e a Natureza da Galiza. Ao filmar de longe, muito longe na maioria das vezes, e com um notável trabalho de som, parece que, na maior parte do tempo, estamos a ver imagens de um filme de ficção científica, onde astronautas dão os primeiros passos em terras estranhas, e os seus gestos tornam-se demorados e alongados, enquanto os observamos através de um telescópio. A utilização de uma linguagem rigorosa e formal, limitada a poucos movimentos mas de forma alguma limitada no seu alcance, procura desenvolver uma linguagem sensorial que se inspira no meio ambiente que filma, através do qual submerge lentamente um modo de vida.

Os homens e mulheres que aparecem nas tais paisagens surgem como figuras estranhas que habitam estes cenários fantasmagóricos, figuras solitárias que são contrastadas com a natureza, sempre com a herança da memória presente. Apesar de monocórdico, os diálogos filmados de longe mas ouvidos de perto fazem referência a um imaginário de histórias do passado recente e distante, das lendas e aventuras daquela terra que desde os romanos que chamam de fim do mundo. Não faltam imagens de uma beleza desoladora, como na sequência dos mergulhadores que se refugiam por momentos atrás de um rochedo. A lentidão do filme permite espaço para as paisagens ganharem gradualmente uma qualidade sobrenatural e Patino parece fascinado com as imagens que encontra – e com as quais parece querer encantar o espectador.


Waiting for August (2014)

Waiting for August de Teodora Ana Mihai, Roménia/Bélgica 2014, 8/10

Waiting for August (2014)

Waiting for August (À Espera de Agosto, 2014) de Teodora Ana Mihai não é tão sombrio e desesperante como os dois filmes anteriores, mas é um filme igualmente triste, ainda que de forma mais subtil, ou onde a tragédia aparece mais encoberta. Uma obra melancólica e delicada, oferece-nos um retrato de uma família de seis irmãos numa cidade romena, acompanhando o seu quotidiano sem a presença da mãe, ausente por alguns meses a trabalhar no estrangeiro, e de um pai desaparecido. Georgiana é a mais velha das irmãs e, por isso, fica encarregue de ocupar o lugar da mãe na educação dos outros e da lida da casa, apesar do mais velho dos irmãos ser um rapaz (cuja única responsabilidade é gerir o dinheiro). É esta rapariga, entre o mundo adolescente e o mundo adulto, que vai carregar também o filme. Se no princípio a liberdade extra parece compensar a ausência da mãe, aos poucos, com a falta de privacidade e o acumular de tarefas que se substituem às actividades próprias de uma adolescente, o filme vai pintando um quadro de implicações emocionais e afectivas para os diferentes irmãos. Sem narração ou outro tipo de contexto, o filme apresenta esta quotidiano alterado de forma naturalista, instintiva, para o espectador chegar às suas próprias conclusões, algures entre um realismo social e o voyeurismo de Wiseman. A tristeza que vai sobressaindo no filme não é só o sacrifício de Georgiana, mas também a dos seus irmãos que crescem sem o conforto maternal, que identificam Georgiana com o papel de mãe, e vêem a sua mãe como uma quase estranha que os visita ocasionalmente, tal é a frequência das ausências. Entre os telefonemas da mãe e as encomendas que faz chegar com os agrados exigidos pelos pequenos, há uma cena que revela particularmente a tristeza desta ausência, quando os mais novos, a propósito de um trabalho escolar, têm de recorrer a Georgiana para saber qual a cor do cabelo e dos olhos da mãe, porque já não se lembram – fica assim, quase de forma despercebida, demonstrada a tese do filme. É uma ausência também motivada por razões económicas, dentro de uma Europa onde os mais pobres têm que procurar emprego onde existe, deixando os filhos perante um futuro incerto, a favor da necessidade do presente.

L’Abri (2014)

L’Abri de Fernand Melgar, Suiça 2014, 8/10
visto no Porto/Post/Doc - texto original aqui

L’Abri de Fernand Melgar

Se Concerning Violence parece alertar para o falhanço da Europa como modelo, L’Abri (O Abrigo, 2014), o filme que vimos de seguida, parece afirmar que a Europa está morta. O filme de Fernand Melgar é um sombrio e desolador retrato da realidade de um albergue para os sem-abrigo, sob o peso das noites frias que se repetem. O filme acompanha durante vários meses um bunker em Lausanne, que funciona como um último refúgio para os migrantes perdidos, nómadas abandonados dentro da europa. Numa situação que se repete ao longo do filme, como a lotação do abrigo é limitada, há primeiro uma luta entre os que esperam por entrar para não ficarem de fora e, depois as portas que se fecham, a condenação aos que não conseguem entrar a mais uma noite ao relento – a imagem das portas fechadas e dos que ficam de fora são assombrosas, tal como a sua repetição. Na sua humanização do funcionamento burocrático do abrigo, de forma a eliminar as barreiras entre o espectador voyeur e os ocupantes do abrigo, L’Abri acompanha também o quotidiano de alguns dos trabalhadores, alguns deles também antigos imigrantes ou filhos de imigrantes. A selecção ao fim da noite nunca é pacífica, é um peso angustiante sobre os trabalhadores do abrigo, na sua tentativa de fazer o melhor com os escassos recursos que têm ao seu dispor. Se há vários sem-abrigo já demasiado marcados pela idade e pela privação, que apenas tentam sobreviver a mais um inverno, impressionam também outros que demasiado jovens, acabados de chegar a este fim-do-mundo pessoal, encontram nos mais velhos uma projecção do futuro próximo. Da mesma forma que o filme se aproxima dos trabalhadores, acompanha também de perto alguns dos migrantes, na composição de alguns retratos, como o de um casal espanhol recém-chegado à Suíça, que deixou a hipoteca para trás e que ameaça desvanecer-se aos poucos, ou o caso de um africano que procura emprego ao longo do filme, que acaba a caminhar em direcção ao desconhecido. Mas é quando a câmara de Fernand Melgar segue os que não conseguiram entrar no abrigo, pelas ruas onde acabam por procurar resguardo, que o olhar se torna ainda mais desamparado, aclamando pelo menos ao testemunho da câmara e depois do espectador, para que, ao menos, esta história não seja esquecida.

Concerning Violence (2014)

Concerning Violence (2014)

Concerning Violence (2014) de Göran Olsson, Suécia/EUA, 9/10
visto no Porto/Post/Doc - texto original aqui

Concerning Violence (A Respeito da Violência, 2014), o filme da sessão de abertura oficial, de palavras fortes mas imagens ainda mais fortes, é uma inquietante e arrasadora investigação aos efeitos da colonização de África pelos países europeus e às cicatrizes que ainda perduram. Göran Olsson volta a debruçar-se sobre outra história mal resolvida, depois do anterior The Black Power Mixtape 1967-1975 (2011), mas se aí as imagens de arquivo a que recorria eram acompanhadas por depoimentos de pessoas envolvidas nos acontecimentos, aqui as imagens têm um encontro feliz com um texto adaptado ao filme, ao pegar nas palavras do livro Les Damnés de la Terre. O filme começa com um prefácio que contextualiza o trabalho de Frantz Fanon, o autor do livro publicado em 1961, ano da morte do seu autor, com apenas 36 anos, e que faz desde logo a crítica ao filme, alertando para o simbolismo de algumas das imagens que iremos ver. São estas imagens de arquivo, recuperadas e ressuscitadas para este filme, que, juntamente com o poder descritivo e narrativo do livro, traçam um rumo da história que o filme pretende abordar, e desenvolvem a tese incriminatória do papel europeu. O texto refere como esse papel passou desde sempre pela exploração africana pelos países europeus, desde a escravatura até à colonização, que continuou mesmo depois desta acabar, até ao fim do século XX, com a apropriação económica dos recursos naturais do continente, a única forma que a Europa conheceu para se enriquecer. As imagens que acompanham o texto servem para acentuar as palavras, como quando vemos os negros em África como servos dos europeus brancos, como não-pessoas – é também a humilhação como forma de violência, a abrir feridas psicológicas.

O filme estrutura-se através de um jogo duplo entre as imagens, como quando uma sequência responde à anterior, contrapondo uma imagem de miséria negra com uma imagem de prosperidade branca, entre imagens de cenários de guerra e cenários de férias, como um campo/contra-campo entre duas imagens distintas, assim como entre as imagens e as palavras. Este jogo contínuo acompanha os diferentes sentimentos evocados pelo texto, como quando vemos a imagem inesquecível de uma mulher negra amputada a amamentar o seu filho, ou quando contrasta imagens de feridos africanos com feridos do lado europeu. Estas imagens esquecidas querem lembrar que nesta história não há vencedores, apenas explorados e exploradores. A parte final do filme incide sobre a visão de Fanon segundo a qual qualquer emancipação terá que passar necessariamente por um novo paradigma de desenvolvimento humano, porque a Europa não é um modelo a seguir. Olsson aproveita uma entrevista de um militar africano que explica como os empréstimos do FMI são uma forma de continuar a colonização, e que num discurso ressonante, parece estar a falar para os portugueses, sobre uma nova colonização que acontece agora dentro da europa.

novembro 28, 2014

Le diable probablement (1977)

Le diable probablement (1977)

o texto sobre Le diable probablement (1977) e um olhar à obra de Robert Bresson, para o ÀPaladeWalsh.com

Wendy and Lucy (2008)

texto sobre Wendy and Lucy (2008) de Kelly Reichardt para o ÀPaladeWalsh.com, com um pequeno vídeo.



outubro 21, 2014

El ángel exterminador (1962)

El ángel exterminador (1962) de Luis Buñuel

o texto sobre El ángel exterminador (1962) de Luis Buñuel pode ser lido no ÀPaladeWalsh.com

setembro 29, 2014

Rosemary’s Baby (1968)

Rosemary’s Baby

o texto sobre Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) pode ser lido no ÀPaladeWalsh.com

setembro 07, 2014

Du rififi chez les hommes (Rififi, 1955)

Rififi

Du rififi chez les hommes (Rififi, 1955) de Jules Dassin, França, 8/10

Jules Dassin é um cineasta esquecido pelo tempo mas o seu filme Rififi é inesquecível. Dassin, actor que rapidamente preteriu esse ofício para dedicar-se à realização, fez vários filmes no fim da década de 40 que ajudaram a definir o género film-noir, estabelecendo alguns dos seus alicerces, particularmente na associação deste género ao tema do submundo criminoso. Ainda fez Nos Bastidores de Nova Iorque (The Naked City, 1948), antes de ser envolvido nas investigações da era McCarthy, e denunciado por colegas como membro do partido comunista americano. Colocado na lista negra de Hollywood e impedido de trabalhar, vê-se forçado ao exílio. Refugiou-se em França em 1953, onde viria a realizar Rififi dois anos após a sua complicada integração num país que mal conhecia. Muitos dos locais que aparecem no filme seriam descobertos durante os dois anos em que Dassin percorreu as ruas de Paris, desempregado, à procura de inspiração.

Rififi, aparentemente o filme favorito de Truffaut deste género, enquadra-se dentro do estilo noir, do drama que estica os seus diferentes elementos para criar suspense, que navega entre sombras e dias de chuva, entre gabardinas e revólveres escondidos. Um assalto a uma joalharia por um grupo de quatro assaltantes é o pretexto para uma análise-investigação aos motivos e códigos de conduta deste particular grupo de homens. Antes de ser um filme sobre um crime, é um um filme sobre criminosos. Rififi é sobre homens de poucas palavras, que seguem um código de conduta próprio, e o filme respeita ele próprio o código de filmes sobre crime, dedicando-se à criação de um universo fechado, de uma atmosfera apropriada. Filmado maioritariamente em espaços exíguos e repletos de fumo, as sombras ganham assim vida, a dissimulação é sempre importante. Dassin cria um jogo visual, opondo os planos médios compostos de vários actores, das sinfonias dos seus movimentos na mesma composição, com os planos aproximados dos rostos dos actores, para contar a história através dos seus olhares, das suas reacções. Não se limitando a seguir as regras que estabelece, Dassin desvia-se ocasionalmente de uma câmara mais objectiva, sendo a sua marca mais visível na sequência do assalto.

A peça central do filme é a magnífica sequência do assalto, uma virtuosa construção em que tudo é ampliado pelos 28 minutos de quase completo silêncio. Esta escolha pouco comum resulta num aumento significativo da tensão da cena, e acaba por imitar o detalhe à atenção dada no planeamento do golpe no nosso olhar de espectador, que concentra-se assim também sobre o mais pequeno detalhe. Depois de um visita à loja para o identificar o cofre e eventuais sistemas de segurança, e de uma longa sequência em tempo real em que os ladrões planeiam a melhor forma de ataque e ensaiam como iludir o alarme, estão prontos para passar à acção. É notável a construção metódica da sequência do assalto, dos elementos que Dassin utiliza para gradualmente aumentar a parada. O sistema de alarme reage à mínima vibração, por isso os ladrões são obrigados a movimentos subtis e controlados, reduzidos ao silêncio para não atraírem atenção. Durante esta quase meia-hora ouvimos apenas os sons abafados de martelos, as ferramentas protegidas por panos, ou os detritos da parede amparados por um guarda-chuva. Na verdade, durante esta sequência, Dassin adopta eficazmente a linguagem do cinema mudo, evidenciando ainda mais o tal jogo entre planos alternados, amparando a narrativa nas reacções das faces dos actores, no suor que acumula-se. A claustrofobia da exiguidade do espaço permite uma claridade maior na exposição da acção, permite ao espectador acompanhar o que está em jogo - de tal forma que diz-se que chegou a considerar-se banir o filme pelo perigo de poder ser considerado um manual para um assalto. A compressão do tempo é ilustrada através do recurso simples a um plano de um relógio, e o estabelecimento de uma hora limite é suficiente para ameaçar os nervos, à medida que o tempo passa e o progresso parece vagaroso. Conta-se que o compositor da música para o filme teria escrito uma passagem para a sequência, mas que Dassin convenceu-o que não era necessária ao mostrar-lhe a sequência tal como tinha sido filmada. Tal é o compromisso com o silêncio que as personagens não falam durante todo este tempo, mesmo que não haja razão prática para que não possam sussurrar - é preciso garantir a santidade do silêncio. De tal forma, que mesmo depois de reunidos em casa, em frente ao saque, demoram alguns momentos até alguém conseguir dizer alguma coisa.

Toda a tensão e emoção na sequência do assalto guiam o espectador para sentir empatia pelos os criminosos, para que não sejam apanhados, o que não deixa de ser conflituoso. É um dos efeitos colaterais do género, o problema que coloca em relação à moralidade dentro do filme. A sequência do roubo acontece a meio do filme, ao invés do que é mais típico no género, em que o grande golpe coincide com o acto final do filme. Porque aqui o assalto é um outro início, ainda faltará aos criminosos enfrentarem o resultado das suas acções, lidarem com o seu pecado. Dassin consegue criar empatia com a luta dos criminosos, mas não o faz de forma simples, não apresenta as personagens como pertencentes a um mundo preto e branco. Os criminosos no assalto não utilizam armas, mas utilizam-nas para se defenderem uns dos outros. Se vemos explicada a sua motivação através da condição social, se acompanhamos as cenas em que vemos a sua família, também assistimos a comportamento repreensível. Especialmente problemático é o comportamento do seu lider, apelido de Le Stéphanois. Acabado de sair da prisão depois de uma pena de cinco anos (os mesmos anos que Dassin esteve impedido de filmar), é abusivo, vingativo: a sua obsessão por uma antiga companheira leva-o à sua procura, para depois a humilhar numa cena perturbante. Dassin mantêm a violência dessa cena fora do ecrã, mas fá-lo durante quase todo o filme, o que é igualmente inquietante. A redenção desta personagem é uma longa viagem de retorno, mas à medida que o código de honra entre os criminosos desintegra-se, são as acções desta personagem que redefinem-no, que mostram o seu carácter. E Dassin atinge toda esta complexidade com um simples filme de género, que é também de redenção, depois do exílio forçado, mas que é também quase criminoso, pela sua ousadia.

agosto 02, 2014

Junkie Awards 2013


Desta vez a tradicional lista de melhores filmes do ano do blog (neste caso, com estreia em 2013, em Portugal), os junkie awards , aparece sob a forma de vídeo a dois momentos, primeiro sobre os que ficaram de fora e depois sobre o top10.

menção honrosa:
Reality de Matteo Garrone - Itália
Mud (Fuga) de Jeff Nichols - EUA
De rouille et d'os (Ferrugem e Osso) de Jacques Audiard - França
L'inconnu du lac (O Desconhecido do Lago) de Alain Guiraudie - França
Le Passé (O Passado) de Asghar Farhadi - França
Post Tenebras Lux de Carlos Reygadas - México
Frances Ha de Noah Baumbach - EUA
Inside Llewyn Davis de Ethan Coen e Joel Coen - EUA
The Place Beyond the Pines de Derek Cianfrance - EUA
Stories We Tell (Histórias que Contamos) de Sarah Polley - Canadá
Django Unchained (Django Libertado) de Quentin Tarantino - EUA
Gravity de Alfonso Cuarón - EUA/GB
The Master de Paul Thomas Anderson - EUA
Spring Breakers de  Harmony Korine - EUA
Before Midnight de Richard Linklater - EUA/Grécia

top10
10. Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho) de Hirokazu Koreeda - Japão
9. Tian zhu ding (China – Um Toque de Pecado) de Jia Zhangke - China
8. Like Someone in Love de Abbas Kiarostami - Japão/França
7. Da-reun na-ra-e-suh (Noutro País) de Hong Sang-soo - Coreia do Sul
6. No (Não) de Pablo Larraín - Chile
5. Jagten (The Hunt – A Caça) de Thomas Vinterberg - Dinamarca
4. Zero Dark Thirty (00:30 A Hora Negra) de Kathryn Bigelow - EUA
3. Lore de Cate Shortland - Alemanha/Austrália
2. Dupa dealuri (Para lá das Colinas) de Cristian Mungiu - Roménia
1. La vie d’Adèle (A Vida de Adèle) de Abdellatif Kechiche - França/Tunísia

Sobre os três primeiros da lista:
Lore é um filme-poema de uma beleza rara, que contrasta a violenta descoberta dos horrores de uma Alemanha em fim de guerra com uma infusão sensorial descritiva; Dupa dealuri (Para lá das Colinas) constrói um puzzle claustrofóbico sobre uma relação condenada entre duas raparigas, através de vários planos fixos em que as composições pormenorizadas revelam aos poucos a complexidade que encerram; houve uma vez um filme dos irmãos Dardenne, Rosetta, imitado por todos nos seguintes anos, que definiu uma estética militante de um cinema social e mostrou as possibilidades de uma câmara livre, que se prende a uma actriz para desenvolver a história. Com La vie d’Adèle (A Vida de Adèle), Kechiche apropria-se dessa linguagem, mas mais do que uma imitação ou actualização, cria um épico de ferocidade sentimental, indomável no seu desejo de chegar à intimidade de uma personagem, ancorado aqui também por uma actriz, com efeitos devastadores.

julho 25, 2014

Kelly Reichardt


Tive a oportunidade de conversar com a Kelly Reichardt (Old Joy, Wendy and Lucy, Meek's Cutoff, Night Moves) sobre os seus filmes, por ocasião do Festival Curtas Vila do Conde '14 - podem ler a entrevista no À pala de Walsh.

julho 24, 2014

Loong Boonmee Raleuk Chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010)

Loong Boonmee Raleuk Chat (Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives)

o texto sobre Loong Boonmee Raleuk Chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010), foi re-publicado no ÀPaladeWalsh.com

julho 16, 2014

Festival Curtas Vila do Conde 2014

O Triângulo Dourado (2014) de Miguel Clara Vasconcelos

a minha cobertura do festival para o ÀPaladeWalsh pode ser lida aqui:

1 - primeiros dias
2 - diários do cinema 
3 - conclusão

os meus favoritos: First Light (2014) de Mariana Gaivão; Le Boudin (2014) de Salomé Lamas; O Triângulo Dourado (2014) de Miguel Clara Vasconcelos; Sara e Sua Mãe (2014) de Teresa Villaverde.

julho 04, 2014

Old Joy (2006)

Old Joy

Old Joy de Kelly Reichardt, 2006 EUA, 7/10

Em Old Joy (2006), subsistem dois filmes dentro de um. De um lado, um filme lento, de argumento minimalista, sobretudo contemplativo e dedicado à construção de um ambiente para embalar o espectador nos seus pensamentos. O outro filme, que surge em paralelo, baseia-se numa tensão que arranha os momentos de silêncio, que perturba a calma aparente, que vive nos olhares para o chão e no que fica por dizer, nas verdades aceites como inquebráveis. É no fundo uma questão de subtexto, de desbravar o que fica nas entrelinhas. As várias sequências em viagem, por entre as estradas do interior perdido do estado de Oregon, com as suas paisagens de subúrbios indistintos depois substituídos por florestas imponentes, prolongam a ausência de uma narrativa elaborada. É um filme onde a condição presente e o caminho percorrido pelas personagens até aí é mais importante do que a história que nos é apresentada. Tudo isto é sublinhado por uma banda-sonora vagabunda, escrita para o filme pelos norte-americanos Yo La Tengo, que ajuda a arrastar os momentos de transporte para um estado de suspensão.

A história que parece simples acaba por revelar-se mais complicada por causa das interações entre as personagens. Kurt, interpretado por Will Oldham, telefona a um velho amigo para convidá-lo para uma pequena viagem de campismo, algo que os dois podem ou não ter feito no passado, mas que entretanto afastaram-se e perderam contacto. Desde logo o telefonema provoca uma discussão entre esse amigo, Mark, com a mulher, que ainda por cima grávida, não aprova a escapadela, provavelmente receosa do regresso de uma má influência, de alguma história antiga entre os dois. Os primeiros momentos entre Mark e Kurt revelam a falta de jeito entre amigos que já não se falam há algum tempo, e os primeiros diálogos saem com dificuldade, mas a viagem avança.

Aos poucos, pelo isolamento que habitam nesta sua viagem, regressam a uma zona de conforto, com histórias cúmplices sobre aventuras passadas e amigos perdidos, mas estas conversas permitem perceber um ressentimento escondido, provocado pelos caminhos escolhidos por cada um, pelo tal afastamento. Kurt é um hedonista, sem grandes preocupações ou ligação a outras pessoas, enquanto Mark transformou-se nalguém com família, responsabilidades e avesso a desventuras. Entre momentos partilhados, há sempre a ideia do desapontamento de um no outro por razões diferentes, por cada um acreditar que é um perdedor aos olhos do outro, por verem no outro um retrato do que poderiam ter-se tornado. Este confronto de personalidades, amparado pela presença de Lucy, a cadela de Mark, e as paisagens inebriantes, avança como uma terapia conjunta em direção a um último acto como reconciliação final, que também pode ser uma última despedida.

Se no primeiro filme que referimos (o filme de contemplação) estabelece-se o modelo visual com que Reichardt trabalhará nos seus filmes seguintes, é no segundo filme (da tensão escondida) onde Reichardt começa a explorar o cinema como forma subtil de comunicar uma ideia, sem muitas palavras e contexto, e evocar assim o que está nas margens, o que fica por mostrar, através apenas de um conjunto de associação de imagens. Assim, estabelecem-se fronteiras invisíveis entre as pessoas, que respiram pela evocação de histórias passadas, e são as falhas na narrativa que nos é apresentada, que surge como um quadro incompleto, que mantêm a indefinição. Se Old Joy é um trabalho experimental na forma, é também por esse factor, por permitir observar Reichardt a acertar as agulhas desta estrutura. E sendo um exercício inteligente, é também um gesto desafiador, pleno de convicção.

junho 27, 2014

Under the Skin (2013)

Under the Skin

Under the Skin de Jonathan Glazer, GB/EUA 2013, 9/10

este texto revela detalhes importantes do primeiro acto do filme

Under the Skin (Debaixo da Pele, 2013) é um filme sobre uma alienígena, um organismo predador à procura de homens para matar, mas é o próprio filme que parece ser extra-terrestre. Jonathan Glazer apresenta-nos um filme desprovido dos elementos básicos, onde a narrativa, diálogo, construção de personagens e contexto são deliberadamente desconstruídos, postos de lado, em favor da criação de um ambiente fantasmagórico e realista, transcendental e agreste, para deixar o espectador a flutuar no vazio. Scarlett Johansson dá corpo a um extra-terrestre, que percorre as ruas de Glasgow ao anoitecer, numa carrinha em busca de homens para levar para casa - a história é minimal, porque o que interessa é a forma. A sequência enigmática que inicia o filme dá o mote para a falta de compreensão em relação ao que está a acontecer, e o objectivo não será criar uma história a partir do que vemos, mas sim deixar-nos submergir pelo pulsar do filme. Under the Skin começa com uma série de imagens plásticas, de raios de luz, que dão lugar a circunferências e depois a um globo ocular, que por sua vez dá lugar a um corpo filmado apenas contra uma luz branca. São imagens conceptuais, que contrastam uma originalidade e beleza estonteante com actos horríficos, que nos remetem para o imaginário esterilizado de 2001: A Space Odyssey, mas são as sequências filmadas nas ruas, e que ocupam a maior parte do tempo do filme, que mais surpreendem.

Parte da singularidade de Under the Skin provém da forma como Glazer procura retratar o quotidiano das ruas, mimetizando a forma voyeurista como a personagem de Johansson tenta estudar o comportamento humano. Glazer recorreu a filmagens reais, de câmara escondida, em que não actores eram filmados sem o saber, quando eram interpelados pela actriz. Glazer desmonta assim a natureza sexual predatória do homem, na forma como este fica agora sujeito ao escrutínio do espectador, quando confrontado com a actriz infiltrada como substituto do espectador. A natureza voyeurista do homem à caça fica exposta, indefeso perante a natureza predatória da personagem de Johansson, e acima de tudo da câmara: the hunter gets captured by the game. Esta perversão de papéis é brilhantemente exemplificada nas sequências em que Johansson conduz as vítimas ao seu covil, uma casa transformada em teia de aranha. Assim que passamos a porta, entramos num cenário artificial de completa escuridão, excepto o corpo iluminado de Johansson, que começa a despir-se, e dos homens que a seguem, que imitando-a, não percebem que o chão que pisam transforma-se lentamente num mar de água translúcida mas negra como areia movediça, que os aprisiona. Quando mais tarde uma das vítimas encontra o corpo de outro a flutuar como um fantasma, neste pesadelo subaquático sem luz, o que se segue é um estonteante arrepio, é como descobrir uma nova fobia que desconhecíamos existir.

A personagem de Johansson revela-se, assim, uma louva-deus, como um remoinho lento de fatalismo que vai crescendo, impossível de parar, de escapar. No entanto, duas sequências alteram momentaneamente este caminho, confundem o que vimos até aí: uma cena inesquecível na praia, onde o comportamento da alienígena atinge tais níveis de desumanidade que a tornam próxima da crueldade humana; na outra sequência, quando um dos homens que Johansson captura não é um predador mas um proscrito da sociedade, alguém que caminha escondido nas sombras, alguém que não quer acreditar que seja possível que outra pessoa se mostre interessada nele. Este encontro funcionará como um catalisador dentro do filme, e sem nunca esquecer que a alienígena age como um autómato, um organismo-máquina mas com uma pele que nos leva a identificar sentimentos humanos ao seu comportamento, é ao tentarmos perceber se esta entidade é capaz de sentir que acabamos por nos sentar na carrinha de Johansson, apanhados a tentar observar, presos pelo jogo do filme. Há ainda outro que factor contribui para um sentimento de inquietude permanente ao longo do filme: o som. Entre prolongados silêncios, destaca-se o papel da música ambiente, uma arrepiante advertência que parece surgir no lugar da falta do batimento do coração mecânico e estranho da alienígena - a música dos créditos iniciais atinge níveis de vertigo

Mais do que um filme de ficção científica, Under The Skin é uma parábola sobre sexualidade, e é no derradeiro filme de Luis Buñuel que encontramos um maior paralelo. A reflexão é evocada em Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto do Desejo, 1977), onde Buñuel explora o poder que as mulheres exercem sobre os homens através da sua sexualidade, onde surgem como objecto proibido, ao mesmo tempo que frágeis, e a quem pertence o poder de escolha. Nesse filme, Buñuel retrata o homem como algo ridículo que se sujeita a tudo no seu comportamento predatório - no caso, um homem demasiado rico e mimado, que tem tudo, excepto o que realmente quer, a aceitação de uma mulher. Mas a mulher era também criticada, igualmente sexo frágil, pela forma como parecia alheia às consequências das suas escolhas, e aos comportamentos que recompensava. O filme acaba literalmente com uma explosão, um atentado ao status quo que tende a persistir. Aqui, ao contrário do filme de Buñuel, a “mulher” está bem ciente do seu poder e das consequências das suas decisões, logo escolhe de forma a satisfazer o próprio desejo. Rejeitando o fatalismo do filme de Buñuel de sujeitar-se a uma ideia de submissão pré-destinada, a “mulher” serve-se agora da objetificação de que é alvo como arma de combate. Em Under the Skin, a perversão é que o objecto do desejo torna-se tangível, finalmente acessível mas com consequências fatais: o homem transforma-se de predator para objecto de caça, e o poder passa para o outro lado. 

junho 17, 2014

Bir zamanlar Anadolu’da (Once Upon a Time in Anatolia)

Bir zamanlar Anadolu’da (Once Upon a Time in Anatolia, 2011)

o texto sobre o Bir zamanlar Anadolu’da (Era Uma Vez na Anatólia), o meu filme preferido de 2012, pode ser lido no ÀPaladeWalsh

maio 22, 2014

Balada da Praia dos Cães (1987)

Balada da Praia dos Cães (1987)

texto sobre Balada da Praia dos Cães (1987) de José Fonseca e Costa para o ÀPaladeWalsh.com

abril 08, 2014

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras

texto sobre Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras para o ÀPaladeWalsh.com

março 12, 2014

L’Atalante (1934) de Jean Vigo

L’Atalante (1934)

texto sobre L’Atalante (1934) de Jean Vigo para o ÀPaladeWalsh.com

março 02, 2014

Dirty Wars (2013)

Dirty Wars (2013)

Dirty Wars (2013) de Rick Rowley, EUA, 7/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário

Dirty Wars é um filme-diário sobre o jornalista americano Jeremy Scahill e um determinado momento na sua vida, em que uma investigação revela dados cada vez mais assustadores e os caminhos percorridos tornam-se cada vez mais perigosos. Scahill é um investigador freelancer, colaborador da revista The Nation, que ganhou proeminência com a exposição das operações da Blackwater durante a guerra do Iraque. No início do filme encontra-se no Afeganistão numa missão de rotina, mas insatisfeito com as acções de propaganda do exército americano que é obrigado a seguir, decide sair sozinho da zona permitida aos jornalistas, para investigar rumores de um ataque a civis. O que descobre numa aldeia acaba por revelar-se chocante, pela violência envolvida, pelos indícios de interferência americana no que aconteceu, e pelos esforços destes em eliminar as provas dessa intervenção.

O filme utiliza uma diversidade de fontes para acompanhar visualmente o texto da narração de Scahill, escrito pelo próprio. Desde imagens de arquivo, a imagens de monitores e tablets à medida que Scahill pesquisa websites à procura de provas, a imagens de Scahill a olhar preocupado ou a andar pelas ruas absorto nos seus pensamentos, o filme não é especialmente estimulante ou inventivo a este nível. O documentário permite conhecermos o dia-a-dia e o método de trabalho de um jornalista de guerra, e a solidão da profissão. O trunfo do filme acaba por ser as imagens recolhidas no Afeganistão e Iémen, onde assistimos a depoimentos dos familiares das vítimas. Dirty Wars coloca-nos assim ao lado de Scahill, para acompanharmos os desenvolvimentos do caso, e sentir os calafrios com as declarações das pessoas que Scahill entrevista e os factos que vai descobrindo, ao mesmo tempo que ele.


Ao longo da investigação do filme, somos apresentados à unidade ultra-secreta do exército americano JSOC (Joint Special Operations Command) e ao rasto de sangue que deixa nos países onde actua; à existência de uma kill list, que passou do baralho de cartas do Iraque a uma lista com centenas de pessoas que podem ser assassinadas a qualquer momento; à descoberta de um americano nessa lista, que terá sido condenado pelo seu país sem direito a julgamento ou defesa; aos ataques por drone e os seus “danos colaterais”. Mas acima de tudo somos confrontados, através de Scahill, com a conclusão que se antigamente era possível um jornalista mudar o mundo com o que denunciava (ex: watergate, pentagon papers), o sentimento é que agora isso é impossível, pois as denúncias de direitos perdidos acabam engolidas por um mar de propaganda e indiferença – no fim do filme, os mesmos que Scahill tenta denunciar acabam celebrados (por altura da morte de Bin Laden), enquanto as vítimas e a justiça acabam esquecidas.

março 01, 2014

The Act of Killing (2012)

The Act of Killing

The Act of Killing de Joshua Oppenheimer e Anónimo, 2012, Dinamarca, 10/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2014

"As I found myself becoming close to this community of survivors, I felt as though I’d walked into Germany 40 years after the Holocaust and the Nazis were still in power" - Joshua Oppenheimer

Logo no início somos avisados que este filme é o resultado de uma série de entrevistas a antigos militares indonésios envolvidos num genocídio, e do processo, através do qual, lhes foi pedido que dirigissem recriações dos actos que cometeram, de forma a registar para a posterioridade tais acontecimentos. O filme acaba, assim, por ser também sobre as consequências deste processo de revisionismo da história e da memória. À medida que surgem as primeiras imagens de The Act of Killing, a incredulidade vai-se acumulando, pondo em causa a natureza do que vemos.

A incredulidade não é em relação à veracidade dos factos narrados, que fazem parte da história da Indonésia no período de 1965-66, durante o qual cerca de um milhão de indonésios foram assassinados, mas sim em relação à forma assombrosa como os participantes do filme contam o seu papel nesses actos. Os participantes no massacre, que aceitam falar para a câmara, relatam com orgulho detalhes macabros dos assassinatos cometidos, celebrando o que fizeram como se se tratasse de um feito heróico. Na sua ingenuidade e ausência de consciência da câmara como prova incriminatória, parece que assistimos a um documentário dos primórdios do género, quando as pessoas agiam livres de constrangimentos, porque ainda não estavam habituadas a uma máquina de filmar e às suas consequências. Mas Oppenheimer leva mais longe do que seria expectável esta espécie de confissão tornada expiação: colaborando com um dos executores que entrevista, arranja forma deste criar um filme sobre o seu passado, com vinhetas que se tornam cada vez mais surreais e absurdas, que confirmam uma espécie de atrofia da memória. O resultado que se segue ultrapassa em muito o conceito inicial - são as tais consequências que o filme avisava.

No centro do filme está um par de personagens: Anwar Congo, um antigo paramilitar, confesso responsável pela tortura e morte de cerca de mil pessoas, e um dos seus protegidos, Herman Koto, responsável por manter a continuidade do regime que os sustenta. Herman é o mais novo, e se de aparência inofensiva, talvez por passar como inapropriado alívio cómico nas recriações, é uma figura sinistra, por ser completamente alheado dos horrores cometidos no passado – era demasiado novo na altura, e é algo que não lhe pesa na consciência. Numa das sequências do filme Herman tenta candidatar-se a um cargo político, e apesar de explicar todo o processo de corrupção que envolve ganhar tal posto, é mesmo assim incapaz de o fazer - fica sumariado o ridículo da sua existência. Já Anwar é uma personagem mais complexa, consciente dos horrores que as suas vítimas sofreram, mas guardado por um sentimento de impunidade de quem ganhou a guerra e se sente, assim, no direito de re-escrever a história, pelo menos na sua imaginação. 

Uma das primeiras sequências do filme com Anwar contém a chave do filme: pouco depois de revelar a Oppenheimer o seu passado, decide leva-lo a um terraço onde executou centenas de pessoas, para melhor mostrar como o fazia. Nesse espaço desolador e banal, Anwar recorre a um stand in para fazer de vítima, enquanto demonstra como atava um fio à volta do pescoço da vítima até esta asfixiar. Anwar chega mesmo a enrolar o fio à volta do próprio pescoço para não ficarem dúvidas, colocando-se assim no papel de vítima. Explica como recorria frequentemente ao álcool e a drogas para ultrapassar os seus actos, mesmo que não assuma vergonha pelo que fazia - era apenas uma tarefa extenuante. Pouco depois, quando confrontado com a gravação desta primeira rudimentar recriação, se Anwar parece perturbado pelo que vê, parece mais preocupado com os detalhes que estavam errados: as roupas usadas, a falta de sangue. Surge assim a ideia de partir para recriações mais elaboradas, para tentar perceber até que ponto se escondem a culpa e os pesadelos do passado.

Para ajudar a compreender o gosto pelo teatral de Anwar, que gostava de imaginar-se como uma espécie de gangster local, este confessa-se admirador e inspirado pelos filmes que via no cinema. Numa das sequências mais frias do filme, Anwar revela como era frequente ele e os seus colegas verem filmes que os deixavam com boa disposição, e como dançavam pela rua a imitar os seus heróis dos filmes americanos até ao tal terraço, onde de seguida torturavam e assassinavam. Torna-se, assim, natural que a maior parte das cenas imaginadas pareçam inspiradas pelos filmes que Anwar conheceu, e que, neste jogo perigoso  em que Oppenheimer acede a produzir as recriações imaginadas por Anwar, corra o risco destas se tornarem desligadas da realidade.

As recriações que o filme apresenta são o que o colocam num patamar diferente, mais próximo de um filme de não ficção, ou de um documentário da imaginação, como Oppenheimer gosta de dizer. Desde recriações de cenas de interrogatório e tortura, que passam do mais rudimentar a sequências ao estilo dos filmes noir de Hollywood, até a sequências musicais, o filme vai descendo até ao fim num sonho febril, alucinado, digno de Herzog. Oppenheimer trabalha com Anwar para criar estas cenas, mas também o confronta com os resultados, e é quando lhe mostra as gravações, que encontramos uma consciência em tumulto. Numa sequência em que Anwar recorre à ajuda de um antigo amigo, que era também paramilitar, este vira-se contra o filme, alertando os envolvidos para o perigo do que estão a fazer, ao mostrarem que não eram as suas vítimas os cruéis e sádicos brutais, mas eles mesmos.

“I think in cinéma vérité, by contrast, it was all about giving people the space to perform on camera, to imagine, to stage themselves on camera as a way of documenting how they see themselves and make sense of their world. In that sense I think cinéma vérité is trying to do something fundamentally more profound than Direct Cinema. I think Direct Cinema’s trying to be insightful by looking at reality in a very close way, while in fact much more is staged than we like to think. In cinéma vérité it’s about trying to make something invisible visible – the role of fantasy and imagination in everyday life” - Joshua Oppenheimer

O mecanismo de confrontar os sujeitos do documentário com a gravação das próprias entrevistas sugere que Jean Rouch terá sido uma influência (em especial Chronique d'un été, 1960), algo visível também nos princípios do cinema vérité de Rouch, que o filme explora – a encenação de uma história para apresentar um retracto mais claro e próximo da realidade, para chegar a uma verdade com mais impacto. Mas The Act of Killing parece também um descendente directo do cinema de Herzog, que é aqui produtor executivo, tal é a proximidade com o cinema do alemão, com os sacrifícios que este acredita serem necessários para chegar ao fulcral de uma história, com a importância de dar uma dimensão cénica a uma história para mostrar a sua verdade – Oppenheimer revela-se um digno herdeiro de Herzog.

Por fim, The Act of Killing deixa uma série de questões em aberto sobre o estado actual da Indonésia, sobre as implicações políticas que a manutenção do actual regime envolve. Mesmo que Oppenheimer seja pouco explícito nessa ligação, utilizando apenas imagens de alguns dos entrevistados em passeio por centros comerciais, suposto símbolo de progresso e de uma Indonésia moderna, fica claro que este regime existe com a permissividade do ocidente, pelo acesso a trabalho a baixo custo que permite a multinacionais aumentarem as suas margens de lucro. Seremos então testemunhas ou cúmplices, no abandono do ocidente e na sua passividade perante um regime genocida, apenas para acesso a roupas mais baratas? A empatia com o assassino que se desenvolve ao longo do filme provém dessa ligação com o espectador ocidental? É esse também o nosso Act of Killing?

fevereiro 27, 2014

Al Midan (The Square, 2013)

Al Midan (The Square)

Al Midan (The Square), 2013, Egipto, 9/10
nomeado para Oscar Melhor documentário 2014

Um filme sobre a praça Tahrir poderia ser apenas sobre os eventos que ocorreram em Janeiro de 2011 e o primeiro momento da primavera árabe, sobre a história que poderia dar origem a vários filmes. Mas este é um filme sobre as várias histórias que se seguiram, que acompanha a luta do povo egípcio mesmo depois de os olhares ocidentais desistirem de o fazer. Da realizadora de Control Room (2004), Al Midan é uma espécie de filme-guerrilha feito a partir da colaboração e colagem de várias fontes, que nos mostra com clareza as várias etapas da revolução egípcia, desde o pedido inicial de demissão de Mubarak, às manifestações contra a usurpação do poder pelos militares, e os protestos contra o governo de Morsi e da Irmandade Muçulmana.

Contar a história do filme seria descrever a cronologia dos acontecimentos no Cairo, epicentro da revolução árabe. Mas o que também distingue o filme é o facto de acompanhar de perto algumas personagens, e o arco narrativo de cada um ao longo do filme. É um mecanismo utilizado frequentemente por filmes de ficção, para o espectador melhor se identificar com a história, que é, aqui, inteligentemente adoptado pelo filme para criar um retrato mais íntimo e mais próximo da acção. Al Midan é todo sobre estar perto da acção, utilizando várias formas para capturar os eventos, desde câmaras fotográficas a telemóveis, e se o filme recorre por vezes a diferentes tipos de media, como vídeos da internet e gravações de discursos televisivos, nunca compromete a sua qualidade. Não deixa de ser surpreendente que o resultado final apresente imagens de uma clareza tremenda, pela presença da realizadora e da sua equipa no sítio certo, na altura certa, mesmo que isso implique muitas vezes estar debaixo de fogo. Isso deve-se, em parte, a um espírito de criação coletiva em que a câmara passava de mão em mão, através do qual diferentes personagens trabalham para um mesmo fim, tal como os revolucionários do filme - vemos algumas vezes diferentes pessoas a correrem para pegarem numa câmara e apontarem-na para a praça, para gravar o momento. O sentimento era que era imperativo registar o que estava a acontecer, e aqui o que é importante é mostrar o que aconteceu.

O filme apresenta uma diversidade notável de figuras que ajudam a mostrar a natureza do movimento, nas suas diferentes vertentes e motivações. Um dos trunfos do filme é precisamente que, ao invés de mostrar os habituais depoimentos através de entrevistas controladas, as declarações das personagens surgirem como trocas de ideias em conversas, com direito a contraditório imediato. Dentro deste mosaico de personagens, algumas merecem destaque pelo seu caminho ao longo do filme. Uma delas é Khalid Abdalla, actor britânico de descendência egípcia, cuja notoriedade será importante para apresentar o ponto de vista dos ocupantes junto dos media internacionais. Khalid, mais velho que muitos dos seus colegas, é inabalável na sua vontade de mudança, mas parece mais pragmático pela consciência das dificuldades pela frente, e é visível como é afectado pelo desgaste dos diferentes retrocessos e derrotas. Outra das figuras importantes é Magdy, que é indissociável da sua condição de membro da Irmandade Muçulmana. Mesmo que apresente ideias próprias, e apesar de Magdy respeitar e ser respeitado pelos seus companheiros, acaba por ver-se em conflito consigo mesmo quanto ao que fazer - a evolução de membro de uma organização clandestina para organização opressora deixa as suas marcas. Por fim, Ahmed, um dos mais novos, é a energia contagiante do filme, um dos membros mais activos no terreno (é creditado como co-director de fotografia no filme) e sempre disposto a debater, até lhe falhar a voz, com quem acha erradas as escolhas da revolução. Numa das cenas mais extraordinárias do filme, logo após um dos primeiros confrontos mais violentos na praça, vemos Ahmed escondido num corredor escuro, iluminado apenas pela luz da câmara, enquanto este reconta o que acabou de testemunhar, ainda a tremer - é a urgência do filme à vista.

Esta é uma história notável, contada de forma não menos notável e completamente cativante. Numa das cenas perto do fim, uma equipa projecta parte deste filme na própria praça, e as reações são de uma comoção em surdina mas reveladora - este visionamento permite perspectiva sobre o tempo que entretanto passou, permite que as pessoas da praça percebam que ficou tudo registado, toda a luta, e muitos vêem pela primeira vez os acontecimentos sob uma nova luz. Este é um filme sobre a importância da vitória do povo egípcio, de ganhar uma cultura democrática e de exigência, finalmente. Uma revolução que não se cala quando a solução é igual ou pior que a anterior, depois de tantos anos de silêncio. E ter a consciência que é um longo caminho, mas uma viagem que vale a pena - temos muito a aprender com este exemplo.

Hunger (2008)

Hunger (2008)

texto sobre Hunger (Fome, 2008) de Steve McQueen para o ÀPaladeWalsh.com

janeiro 27, 2014

Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) de Hirokazu Koreeda

Dare mo shiranai

texto de sala sobre o filme Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) de Hirokazu Koreeda, para sessão do Cineclube Sombra, da Faculdade de Belas Artes do Porto, neste link.

Viaggio in Italia (1954) de Roberto Rossellini

Viaggio in Italia

texto sobre Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954) de Roberto Rossellini para o ÀPaladeWalsh.com

janeiro 09, 2014

top2013

La vie d’Adèle

A minha lista de melhores filmes de 2013, para o À pala de Walsh. o texto sobre a lista e o top colectivo podem ser lidos no link: http://apaladewalsh.com/2013/12/23/os-melhores-filmes-de-2013/

Espero publicar dentro de semanas os Junkie Awards, depois de ver alguns filmes que não tinha visto na altura da publicação desta lista, como: Inside Llewyn Davis (A propósito de Llewyn Davis), Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho) ou Le passé (O Passado).

1. La vie d’Adèle (A Vida de Adèle) de Abdellatif Kechiche
2. Dupa dealuri (Para lá das Colinas) de Cristian Mungiu
3. Lore de Cate Shortland
4. Zero Dark Thirty (00:30 A Hora Negra) de Kathryn Bigelow
5. Jagten (The Hunt – A Caça) de Thomas Vinterberg
6. No (Não) de Pablo Larraín
7. Da-reun na-ra-e-suh (Noutro País) de Hong Sang-soo
8. Like Someone in Love de Abbas Kiarostami
9. Tian zhu ding (China – Um Toque de Pecado) de Jia Zhang-ke
10. Django Unchained (Django Libertado) de Quentin Tarantino

La double vie de Véronique (1991)

La double vie de Véronique

texto sobre La double vie de Véronique (1991) de Krzysztof Kieslowski para o ÀPaladeWalsh.com