julho 10, 2009

Arena


8/10
2009, de João Salaviza


É uma curta consciente do formato a que está sujeita e é um filme inteligente pelo modo como aproveita um momento bem definido, desenrolando-se quase em tempo real. Salaviza serve-se do pouco tempo disponível para estabelecer um estilo próprio e revela preocupações sociais com a personagem principal que absorve toda a acção – preso na sua própria arena, realça reminiscências dos Dardenne. Com os poucos enquadramentos escolhidos desenvolve uma inteligente utilização do conceito de espaço e permite-se momentos pausados, num ritmo que funciona com o material escolhido. 

Mais especificamente (spoilers!) o objecto escolhido para centrar a imagem é um jovem em prisão domiciliária, que num dia de verão, é assediado por um grupo de rapazes que aproveitam a sua condição. Num plano-sequência inicial vemos o personagem principal (Mauro) a deambular pelo seu apartamento asfixiante, até o tal grupo de rapazes, depois de o confrontar através da janela, invadir a sua casa para o agredir e roubar, com a camâra a escolher mostrar o nervosismo na cara dos precoces agressores no momento da agressão em vez do próprio acto. Recomposto, Mauro decide quebrar a prisão domiciliária e sai à procura dos seus agressores, num travelling pelos prédios vizinhos. Num plano estático, filmado de longe para contextualizar o espaço, na melhor sequência do filme, confronta um dos rapazes num momento primal que mostra a impulsividade e desespero de Mauro. A partir do momento que sai de casa sabe que é apenas uma contagem decrescente até voltar à prisão e quando encontra o “líder” do assalto, dentro de um carro, atira-se a ele, mais uma vez sem vermos a agressão e com a acção de Mauro limitada pelo espaço (o rapaz dentro do carro). Pouco depois força o rapaz a entrar na mala do carro enquanto este não confessa, invertendo o contexto do espaço. Enquanto espera por uma resposta, sente-se o relógio a esgotar e Mauro permite-se um último acto de liberdade sob o calor do pôr-do-sol.  Pouco depois, deita-se no chão, derrotado.

julho 08, 2009

Blanc

1993, de Krzysztof Kieslowski - 8/10


Se Bleu era um filme sobre luto e sofrimento que acaba num elogio ao amor, Blanc mostra o percurso inverso: do amor ao sofrimento. O filme tal como em Azul começa com o evento que vai definir o resto do filme: um polaco (Karol por Zbigniew Zamachowski) no tribunal é confrontado com o pedido de divórcio da sua mulher, uma jovem francesa (Dominique por Julie Delpy) infeliz e insatisfeita. Somos introduzidos num momento da sua vida descendente, em que tudo lhe começa a correr mal: perde o casamento, o emprego, a casa, os documentos – é ainda torturado pela sexualidade exoburante de Delpy que o expulsa da sua vida e o ignora, deixando-o em pleno desgosto amoroso, a dormir no metro e sem dinheiro, até que um outro polaco se presta a ajuda-lo a regressar a casa, depois de o encontrar a tocar música nos corredores subterrâneos com um pente como instrumento musical improvisado. Antes de partir há um momento-cena, que tal como as mãos de Juliet Binoche a arrastarem-se por uma parede em Bleu, irá marcar o filme e ser evocado várias vezes na memória do nosso personagem principal, que desta vez funciona para o convencer a partir, que não há mais esperança em Paris: depois de na rua olhar de longe a janela da casa onde vemos a silhoeta de Delpy acompanhada por um estranho, telefona-lhe a partir do metro e ela responde-lhe com gemidos que irão assombrar o seu presente e o deixam sozinho a chamar pelo nome dela, ignorado.

O filme é muito mais linear e menos auto-referencial que Bleu, com uma narrativa mais convencional, pelo menos aparentemente: acompanhamos a jornada de Karol a tentar regressar a Delpy, a regressar a França como um homem de sucesso e desejável, de modo a reconquista-la, com o desejo do reencontro a motivar todas as suas acções, mas não será assim tão simples como um “twist” no fim irá revelar -  a sua motivação não é recuperar o amor de Delpy, mas deixa-la sozinha como ele a chamar o nome dele, sofrendo o mesmo desgosto que ele, abandonada, sem esperança.

Se Bleu tinha como cor central a liberdade, em Blanc o simbolismo é a igualdade, e se na realidade o filme aproveita os tons neutros da neve para embelezar a imagem, a igualdade de que trata o filme é mais agressiva – é a base da história e das motivações do nosso polaco, que após sofrer o desgosto amoroso e abandono inicial, que vive atormendado com um desejo não correspondido, procura deixar a personagem de Delpy no mesmo estado, uma procura de simetria emocional, ao querer que ela sinta o mesmo que ele e não um simples desejo de reconquista tipico de comédias romanticas (e é neste pormenor que reside o génio desta parte da trilogia), ao procurar inflingir-lhe um coração quebrado.

Quando ele regressa à Polonia (depois de um fantástico uso de uma mala – literalmente mais que uma metáfora de viagem) começa a construir o seu percurso de sucesso  por baixo subindo à custa do seu empreendorismo,  num comentário à mundanidade própria de tal ascensão (a falta de escrúpulos, a atenção nas aparências, o isolamento – um aproveitamento da Polónia pós-comunismo). Ajudado pelo seu amigo polaco com quem partilha um sentimento de lealdade depois de o ajudar a repensar o seu desejo de suícidio (um forte momento de tensão que ligará as duas personagens), consegue atingir os seus objectivos mas para fazer regressar Delpy, falta ainda algo extremo – fingir a sua morte, num claro sinal do desespero e maquievelismo do desejo de retribuição do seu sofrimento.  É aqui que começa a sobressair o tom amargo do filme, a natureza obsessiva do personagem principal, depois do ligeiro toque de comédia do início (a viagem para a polónia, a cena no balcão de bagagens perdidas, a exclamação de Karol depois de acabar roubado, agredido e numa lixeira: “Finalmente em casa!”), qualquer inocência inicial perdida. 

A escolha dos actores para os diferentes papeis ajuda também a contextualizar as personagens:  o aspecto inofensivo e franzino de Karol, que depois de conquistar Delpy vai conquistar o mundo empresarial para tentar voltar a conquistar Delpy, é evidenciado também no comportamento de quem o enfrenta, que não é visto como uma ameça e é até subestimado várias vezes (desde os ladrões do aeroporto ao seu chefe); por outro lado a languidez transpirante de Delpy e a sua juventude ajudam a definir a sua impulsividade e inacessibilidade. 

A câmara volta a centrar na face do personagem principal tal como em Bleu e em pequenos objectos como gesto – o pente que ele usava para tocar musica no metro e agora mantem como lembrança de tempos piores, que ele comtempla depois de voltar a telefonar a Delpy já na Polónia, a memória da cena inicial do seu telefonema a assombrar o seu sono durante noites em branco – voltamos ao ínicio, como acontece várias vezes durante o filme.

A conclusão leva-nos ao oposto do primeiro filme: Se em Bleu o sofrimento inicial perdura durante todo o  filme para no fim chegar a um elogio ao amor como solução para a solidão, em Blanc o amor inicial conduz-nos durante o drama, aparentemente como força motriz, mas na realidade termina num elogio ao tormento da perda amorosa, sem redenção. No fim Karol tem Delpy presa, como numa caixa, disponível para ele a ver quando entender. E ela responde em linguagem gestual que está à espera dele, ao que ele corresponde com lágrimas.

julho 07, 2009

Bleu

Trois couleurs: Bleu
1993, de Krzysztof Kieslowski - 9/10


Bleu é a primeira parte da trilogia francesa do polaco Kieslowski. É um filme sobre a dor, aparentemente sobre o sofrimento da personagem principal de Juliet Binoche (Julie), mas na realidade sobre a apatia emocional e o vazio que a sua personagem sente depois da morte do marido e da filha logo na cena inicial. O filme, a imagem, cola-se desesperadamente à sua face logo desde o ínicio enquanto ela se esconde debaixo dos cobertores da cama de hospital onde recupera fisicamente e  segue-a de forma inflexível enquanto esta procura deixar tudo para trás, começar de novo, presa na sua incapacidade de se deixar envolver pelo luto. Quando encontra a sua empregada a chorar, esta responde-lhe que chora porque Julie não o faz. Deixa as possessões materiais para trás, com excepção de um candeiro azul que decorava o quarto da filha, incluindo um colar com uma cruz que alguém que o encontrou no local do acidente se propõe a devolver-lhe. Um re-início reflectido também nas personagens que Julie vai encontrando: a triste vizinha prostituta, o colega do marido a quem lhe telefona quando sai do hospital a propor sexo como forma de despedida.

Apesar de todo o isolamento auto-inflingido, vive rodeada de memórias assombradas:  um músico à porta do café que toca na flauta as canções escritas pelo marido morto, a sua tranquilidade na piscina invadida por dezenas de crianças da mesma idade da sua filha, uma ratazana e as suas crias infantes que invadem o seu apartamento, as partituras das músicas inacabadas do seu marido, a memória falhada da mãe, incidências perturbadoras que a levam a procurar sentir algo fisicamente para substituir o vazio emocional: um doce antigo encontrado (da filha?) comido à pressa, as mãos a arrastarem-se numa parede até os nós dos dedos ficarem a sangrar num plano inesquecível,  e uma atracção em testemunhar estranhos como um homem a ser espancado na rua ou a prostituta a receber um vizinho em casa. Quebras da sua monotonia-vazio.

É toda uma colecção de eventos desligados que funcionam como um mosaico que permite acompanhar a personagem de Juliet Binoche no seu estado entorpecido depois da tragédia sofrida. O filme acompanha-a sempre de perto, com inúmeros planos aproximados da sua cara, enquadrando-a cuidadosamente na acção, a sua figura sempre presente. Utiliza também alguns artíficios, como a simples mas brilhante ideia de mostrar os dedos a deslizar por uma partitura musical ao mesmo tempo que ouvimos a música, como se os dedos dessem vida às notas musicais. A música utilizada é classica, conferindo um tom austero e intemporal à história, com grande relevo no fim do filme. O título (Azul) não é inocente na escolha de certos cenários, dominando certos quadros como o azul escuro da piscina ou o candeiro do quarto da filha ou o papel de parede do quarto, evocando a melancolia da personagem e também o simbolismo do azul na bandeira francesa: liberdade, que Julie procura ao mesmo tempo de qualquer outra pessoa e também da sua vida anterior.  

Melancolia que é também sublinhada pela cena no ínicio do filme da mão a atravessar o muro que nos vem à memoria várias vezes durante o filme, evocado pelos actos de Juliet, pela sua constante necessidade de sentir algo que quebre o vazio sentimental ou o monopólio da angústia,  momento-cena que domina o resto do filme e funciona como uma força motriz para o mapa emocional do filme. Está constantemente presente: quando, tarde na história ela pede um apartamento novo essa cena serve para explicar os seus motivos: para se afastar das pessoas que entretanto conheceu, para repetir o re-início, para não ficar presa do luto.

Existe um desenvolvimento importante na história que permite actuar como uma catarse para a personagem de Julie: pouco depois de descobrir que o marido a enganava com uma amante e depois de a procurar, descobre que ela está grávida do seu marido,  acontecimento que lhe permite voltar a estabelecer relações com outras pessoas, ajudando-a a ganhar perspectiva  e voltando ao colega do marido que abandonou no início do filme para o ajudar a compor o fim da obra inacabada.

O filme pode-se comparar a um requiem, que termina num final fantástico, final que é simetricamente oposto ao início: Julie depois de saber o desfecho do acidente tenta o suícidio mas não é capaz e passa o resto do tempo semi-adormecida, com o filme a mostrar o seu sofrimento silencioso, para chegar a uma ode ao amor: depois de finalmente terminar a obra inacabada do marido, ouvimos a música numa montagem sentida, que começa com a silhueta de Julie no escuro (vista através da reflexão num olho, numa pose semelhante ao Pensador de Rodin) e mostra as várias personagens afectadas pela vida de Julie em quadros solitários, com as letras escolhidas previamente pelo marido a sublinharem a mensagem,  resultando numa combinação súblime entre imagem e música: do sofrimento para o elogio ao amor.

If with the tongues of men I speak,
and of angels, 
Love I do not have, 
I have become a gong resounding or cymbal clanging. 

And if I have the gift of prophecy, 
and know mysteries all, 
faith mountains move, 
Love I do not have, nothing I am. 

Love is generous, virtuous, 
Love does not envy, boast, not proud is. 

All she protects, all she trusts, all she hopes, all she perseveres. 

Love never she fails. Be it prophecies, they will cease, 
Be it tongues, they will be stilled, be it knowledge it will cease. 

So remain, Faith, Hope and Love, these three. But the greatest of these is Love.