abril 30, 2010

La signora senza camelie (1953)

La signora senza camelie de Michelangelo Antonioni, 1953, 7/10

É um filme preso no paradigma do cinema dos anos 50, antes da libertação da camâra pela Nouvelle Vague em 1960, e que ao mesmo tempo não se insere propriamente na corrente do neorealismo italiano da altura. Sempre filmado com longos planos com a duração de cerca de um minuto com a camâra fixa, em que apenas se move/gira entre sitios pré-definidos (as diferentes marcas para os actores), requere portanto um cuidadoso planeamento e estudo preparatório do que se vai filmar, sintomático do grande classicismo no formalismo utilizado aqui, mas sem contudo deixar de se notar já um toque pessoal e intrusivo de Antonioni na forma como deixa desenrolar certas cenas, especialmente no início, numa aproximação a um estilo documental equivalente a alguém que se deixa ficar e observa a acção apenas como espectador sem intervir, estabelecendo algum distanciamento cénico – “La signora senza camelie” é o segundo filme de Antonioni depois de nove documentários curta-metragens e a longa “Cronaca di un amor” de 1950. Com este estilo de encenação o grande enfoque, ou escolha artística, é na história, aspecto que permite realmente diferenciar a obra de outras.

É portanto na selecção do cenário em que se desenrola a história e nas personagens retratadas que se pode descernir a maior intervenção directa de Antonioni, ao escolher como plano de acção do filme o ambiente em torno do cinema italiano e a sua indústria, num olhar que se revela bastante crítico e ardaz, estabelecendo efectivamente desde o príncipio Antonioni como um outsider, alguém a trabalhar fora do sistema. Clara (interpretada por Lucia Bosé) é uma jovem actriz em promissor início de carreira especialmente devido à sua beleza e disponibilidade em actuar em filmes românticos menos sérios – uma objectificação da beleza normal para a altura que Antonioni parece querer desarmar ao procurar multitudes numa personagem feminina que poderia ser simplificada apenas pelo seu aspecto (Bosé é uma antiga Miss Itália). Com a sua beleza a atrair atenções de todos os lados Clara casa-se apressadamente e sem grande escolha com um dos produtores dos seus filmes, que tomado por ciúmes determina que ela deixará de entrar em filmes “indecentes”, ciúmes magistralmente expostos pela melhor sequência do filme, em que ela à frente do noivo ensaia uma cena romântica com outro actor em que brilha a sua desinibição e que serve também para criticar o papel do realizador de aluguer desse filme, que sentado e sem poder de intervenção assiste à orquestração da cena por outro produtor, apenas interessado em filmar a cena central do filme, do beijo apaixonado entre os dois amantes - “a censura, a censura!” grita outro dos presentes à medida que a cena se desenrola. Clara é rodeada por vários homens que gravitam à sua volta, interessados na sua beleza e potencial como estrela de cinema, mas apenas dois são caracterizados a fundo pois estabelecem os pólos que dividem o seu coração: o produtor com quem casa, um homem possessivo e inseguro, de valores conservadores, que apenas deseja um papel domesticado para ela, que depois de a impedir de continuar como actriz devido à natureza dos papeis que lhe são oferecidos e numa tentativa de manter Clara menos miserável inventa uma versão de Joana D’Arc para ela (ou seja, a única possibilidade para ele é ela interpretar uma figura santa) que acaba por ser um fracasso comercial e crítico – Clara, para os outros, nunca vai deixar de ser uma cara bonita que não sabe representar, pelo menos até ao final; o outro homem representado é um diplomata de modos gentis, um diletante sentimental que explora a infelicidade do casamento de Clara para se aproximar dela, mas que apenas está interessado numa aventura com a actriz e que depois dela abandonar o casamento acaba por se afastar dela.

Porque na realidade Antonioni está interessado em explorar a solidão de Clara, a barreira intrasponível que se estabele entre ela e o mundo exterior. Apesar de toda a companhia, na verdade Clara é sufocadamente solitária e ninguém está realmente interessado no seu bem estar emocional ou na sua felicidade, ninguém excepto Antonioni se propõe a explorar o seu interior: os pais de origens humildes, no único comentário social do filme, apenas apenas estão interessados no seu bem estar financeiro, os homens à sua volta ou apenas querem a companhia da sua beleza ou que ela continue a render na bilheteira. Não deixa de ser sintomático que no fim, sozinha, quando precisa de alguém para falar francamente, procura outro actor com quem trabalhou. Clara não se resigna ao seu destino, quer como dona de casa retirada, quer como apenas uma actriz de cara doce para adornar filmes e é essa luta contra um destino pré-estabelecido e que lhe é imposto, uma procura de independência e fuga a um estereótipo pouco usual para a altura e que é mal vista pela sociedade que lhe traz dissabores, na aparente mensagem moral do filme – como consequência dos seus actos Clara abandona uma vida fácil de segurança para acabar destroçada, sem escolha, punida pela sociedade, numa dolorosa conclusão do filme.

Antonioni é inteligente na forma como explora as convenções do cinema italiano da altura, na forma como trabalha dentro das normas estabelecidas, numa apropriação desviante de certos princípios, subvertendo-os: a certa altura alguém diz que um filme para ter sucesso tem que ter sexo, política e religião – Antonioni é consciente e crítico desse padrão mas não deixa de ter cenas românticas ou relações ilegítimas, que adquirem um significado diferente pela consciência do que significa a sua utilização. E depois há um momento estarrecedor no filme perto do fim, quando quase de maneira subtil e que passa quase despercebido como seria hábito nos seus filmes mais conhecidos, numa única composição mostra uma imensidade de intenções: Clara, ao mesmo tempo que recebe notícias da sua carreira decadente, segura uma cópia dos girassóis de Van Gogh, que são aqui utilizados como comentário ou metáfora para uma beleza efémera, um destino inescapável – a decadência do tempo, numa advertência em relação ao compromisso final que se seguirá.

abril 11, 2010

Junkie Awards 2009

da lista de filmes estreados em Portugal em 2009,

menção honrosa (documentário):
Man on Wire - James Marsh - EUA
Patti Smith: Dream of Life - Steven Sebring - EUA

menção honrosa:
The Limits of Control - Jim Jarmusch - EUA
A Corte do Norte - João Botelho - Portugal
The Burning Plain - Guillermo Arriaga - EUA/México
Welcome - Philippe Lioret - França
Rachel Getting Married - Jonathan Demme - EUA
Eden Lake - James Watkins - GB
Synecdoche, New York - Charlie Kaufman - EUA
Vicky Cristina Barcelona - Woody Allen - EUA/Espanha
Moon - Duncan Jones - GB
Los Abrazos Rotos - Pedro Almodóvar - Espanha
35 Rhums - Claire Denis - França
L'heure d'été - Olivier Assayas - França
Tetro - Francis Ford Coppola - EUA/Argentina
Aruitemo Aruitemo - Hirokazu Koreeda - Japão


10. Låt den rätte komma in - Tomas Alfredson - Suécia - trailer

A solidão de um pode ser a solidão de dois. Com sangue frio se aquece o coração dos dois personagens principais, uma improvável aliança entre um tímido rapaz com problemas com os colegas na escola e uma rapariga que só sai de casa à noite, que vivem na escuridão do isolamento. Com sobriedade no ritmo e paisagens fantasmagóricas, Alfredson cria suspense de cortar a respiração para desviar o olhar e filmar o periférico com contenção quando é necessário, no que é também uma fantasia de vingança. Prova de que menos pode ser mais.




9. La Mujer Sin Cabeza - Lucrecia Martel - Argentina - trailer

Depois de La Cienaga e La Nina Santa, Martel mergulha sem rede de segurança no marasmo emocional desta mulher perdida, recorrendo apenas a magistrais enquadramentos que expõem todo o horror do vazio da normalidade burguesa. Um tremendo retrato acusador do estado das coisas, numa vertigem sonâmbula que acompanha uma letárgica María Onetto até ao precipício. Martel atinge um estado notável de abstracção que nos deixa com quase nada no fim.


8. Inglourious Basterds - Quentin Tarantino - EUA - trailer

Mesmo tendo vários elementos comuns a outros filmes de Tarantino, como os longos diálogos com referências culturais obscuras (neste caso a G.W. Pabst e H.G. Clouzot), é um registo diferente para Tarantino esta obra de época de escapismo fantasioso. Menos interessado em cenas de violência aleatória (mas não totalmente), dedica-se à composição cuidada de personagens utilizando pausas para criar suspense recorrendo a um ritmo menos frenético mas mais operático, arrastando cenas até ao seu limite, evocando da melhor maneira os quadros de Sergio Leone. Repleto de set-pieces memoráveis e demonstrando uma fé literária no poder do cinema, é um filme composto por pequenos grandes momentos.


7. Julia - Erick Zonca - França/EUA - trailer

É o primeiro filme de Zonca depois do íntimissimo “La vie rêvée des anges” de 1998 e se à primeira vista parece ser desde o ínicio outro estudo subjectivo e pessoal de uma personagem perdida no seu mundo próprio de depressão, uma alcoólica desamparada neste caso, interpretada por Tilda Swinton num verdadeiro tour de force, é surpreendente como o subjectivismo se transforma num pesadelo de decisões duvidosas por parte de alguém afundado no seu descalabro enquanto tudo desabafa à sua volta para manter um elevado nível de suspense – tudo pode acontecer a dado momento, a qualquer elipse – tensão que acompanha a passagem de um estudo de uma situação delicada para um estado extremado e emocionalmente caótico, em que a redenção depende da dura rendição aos factos, numa perversão de uma tragédia shakespeariana.

6. Gran Torino - Clint Eastwood - EUA - trailer

No último filme como actor Eastwood atinge a reversão final das personagens proscritas dos Westerns ou reaccionárias de Dirty Harry, uma evolução mimetizada na viagem da personagem de Gran Torino e que já vinha a marcar as suas últimas obras como realizador (sendo Million Dollar Baby o melhor exemplo). Sempre solitário e contudo desconfiado das normas sociais, o protagonista é obrigado a re-examinar-se por um confronto menos óbvio em relação aos que está habituado a lutar: é forçado a abandonar a paz do seu isolamento quando a desordem alheia lhe bate à porta e acaba por criar uma relação com dois jovens irmãos vizinhos, identificando-se com os seus problemas de desajustamento social. Contra estereótipos e pressupostos fáceis o filme é resolvido num último surpreendente gesto carregado de simbolismo como acto final de uma carreira, um elogio à compaixão e ao valor de uma atitude desafiadora contra o estado das coisas, sem esquecer que nunca é tarde demais para o fazer.

5. Afterschool - Antonio Campos - EUA - trailer

Esta primeira obra de um realizador de 26 anos é porventura o filme mais desanimador de todos de 2009, pela brutalidade com que estabelece dois factos, possivelmente interligados: a) face à mescla de estilos e referências utilizadas pelo jovem realizador (Van Sant, Larry Clark, Haneke), ficamos frente a frente com a pergunta: será que estilisticamente já foi tudo estabelecido e resta apenas a hipótese de apropriação no futuro? b) a indiferença quase aceitação de uma apática indolência moral, de uma perda de esperança e conformismo com uma canibilização sentimental é o futuro para uma geração derrotada de início, confinada entre o youtube e anti-depressivos? Campos explora a ligação entre os dois temas pelo modo como mostra o seu desafecto cénico e constrangimento pelas personagens entregues à sua própria sorte, numa obra cínica, perturbadora e provocadora.

4. Un Prophète - Jacques Audiard - França - trailer

Com um ínicio estarrecedor, recorrendo ao hiper-realismo para acompanhar a desorientação na introdução do jovem protagonista a uma espiral descendente de loucura, numa composição claustrofóbica que não deixa espaço para o espectador desviar o olhar, Tahar Rahim é assombroso numa viagem de ida (e volta) aos confins da abstracção emocional como meio de sobrevivência. Com a perda da liberdade física compromete-se a moral neste conto de ardência lenta, em que a redenção está sempre presa por um fio (da navalha) em espantosas sequências quase de carácter mitológico, em que o formalismo se desvia do realismo para sublinhar a aura singular da ascensão do inferno do protagonista desta história transformada por momentos em fábula.


3. The Hurt Locker - Kathryn Bigelow - EUA - trailer

Um corpo preso num fato, um soldado preso num trabalho, um homem encurralado na única forma que tem de fazer alguma diferença, numa tortuosa série infindável de desafios, entorpecido pela procura de uma fuga do seu purgatório. Bigelow sempre filmou acção como poucos mas sabe que é no espaço que dá às personagens para mostrarem a sua complexidade que fica a ganhar. Se a procura do perigo é forma do protagonista sentir algo de real, é a sua derradeira dessensibilização à realidade que o conduz à anestesia emocional e que o condena, sublimemente exemplificado por uma cena final na América que muda todo o tom do filme, contextualizando tudo o que vimos antes e o amargo que vem a seguir.


2. Che - Steven Soderbergh - EUA/México - trailer

Um homem preso num corpo, à procura de liberdade, sempre. Se Che é composto por duas partes que funcionam com uma identidade própria, e "The Argentine" é a introdução que define as razões e o plano ideológico mas também muito mais que isso (filme de aventura desconstrutivo da Cuba de Batista), é com "Guerrila" que Soderbergh define a sua marca artística e se atira para a selva sul-americana lado a lado com Che, como que lhe confiando a sua vida num acto de fé. É no entanto quando se considera as duas partes como um todo que se descobre um verdadeiro épico sufocante na sua escala e entrega à solidão de Che, um homem encontrado e perdido na guerra, trágicamente incapaz de apatia e resignação, através de um filme-poema de silêncios e respirações malsofridas. Passamos o filme colados a Benicio del Toro desaparecido em Che, numa procura de descodificação do homem-mito, mas é quando o filme muda na cena final para o seu ponto de vista que ficamos presos ao mito.

1. The Wrestler - Darren Aronofsky - EUA - trailer

É a inversão perfeita numa subversão de Aronofsky do arco convencional dos filmes tradicionais com uma mensagem, que atesta da desesperação retratada. Uma adaptação do socialismo de intervenção dos irmãos Dardenne, exemplificado no subjectivismo com que acompanhamos um Mickey Rourke na sua gloriosa tristeza, sublinhado por uma candura no modo como se cria empatia com a sua personagem, um lutador marcado pelas cicatrizes do passado à procura de reparar ligações presentes e de uma salvação possível. O sucesso do filme passa também pela janela de esperança fugaz que apresenta, de um vislumbre trágico do que poderia ser, um minimalismo afectivo na sua solidariedade. É o retrato final numa colecção de 2009 de homens e mulheres em rota de colisão com a sua auto-destruição, auto-inflingida ou não, numa combustão que é o melhor substituto a ficar parado.

abril 07, 2010