agosto 16, 2012

Junkie Awards 2011

os melhores filmes de 2011, na 14ª edição Junkie Awards.
os melhores documentários serão abordados em mensagem própria.

menções honrosas:
Habemus Papam de Nanni Moretti, Itália
Submarine de Richard Ayoade, Reino Unido
Bal de Semih Kaplanoglu, Turquia
Black Swan de Darren Aronofsky, EUA
Blue Valentine de Derek Cianfrance, EUA
Le Quattro Volte de Michelangelo Frammartino, Itália
Hadewijch de Bruno Dumont, França
Sangue do meu Sangue de João Canijo, Portugal
Road to Nowhere de Monte Hellman, EUA
Drive de Nicolas Winding Refn, EUA
Lourdes de Jessica Hausner, Aústria

top2011:

Attenberg 10. Attenberg de Athina Rachel Tsangari, Grécia
Fantástica distopia modernista, Attenberg é um filme que encapsula a alienação das suas personagens, afastadas da sociedade - uma com problemas afectivos, outra com problemas com a humanidade. Com a participação do realizador de Canino, apresenta contudo uma gramática própria mas que apresenta igual interesse na forma como a linguagem pode ser explorada para redefinir ideias e sexualidade. A história de um pai que está a morrer e que, nostálgico, se afirma como um romântico anti-progresso, e da sua filha que se apresenta sem noções pré-determinadas, como uma folha em branca disposta a ser educada por novas experiências, proporciona uma dinâmica inquietante.


Poesia
9. Shi (Poetry) de Chang-dong Lee, Coreia do Sul
Nesta triste fábula, descobrir o prazer pelas palavras no momento em que se começa a perder a memória é apenas mais uma tragédia. Uma senhora de idade, ao perceber que não consegue lembrar-se de certas palavras, decide inscrever-se num workshop de poesia e descobre novas formas de se exprimir. Mas se encontra novas formas de ver o mundo à sua volta, é confrontada com um mundo que está a desabar. Abalada pelo crime cometido pelo neto, que levou ao suicídio de uma colega da escola, a avó é confrontada com uma sociedade patriarca e antiquada, que marginaliza os seus esforços para corrigir o que está errado e deixar uma marca que perdure, para não desaparecer.


O Miúdo da Bicicleta
8. Le Gamin au Velo de Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélgica
Os irmãos Dardenne podem oscilar entre filmes mais ou menos pessimistas, mas acabam sempre suscitar uma forte reacção emocional. Mesmo utilizando estratagemas recorrentes, conseguem através de variações subtis dar primazia à história, que despojada de outros artifícios, permite que sobressaia o humanismo das suas personagens. De facto, a dedicação às personagens e a imersão total no filme enquanto espaço fechado narrativo, sem nada à volta, permite suster uma incerteza em relação ao que vai acontecer a seguir. Esta pequena história, de um rapaz abandonado pelo pai e que procura adaptar-se a uma nova casa e a novos amigos, reforça a aproximação a um realismo único, que ao mesmo tempo que é cínico e derrotista, sobrevive graças a vislumbres de esperança. A obsessão do rapaz com a bicicleta, que envolve estar sempre perto dela, encontra paralelo na obsessão dos Dardenne em ocupar sempre o mesmo espaço da personagem principal.


Uma Separação
7. A Separation de Asghar Farhadi, Irão
É comum sentir um sentimento de aprisionamento nos filmes iranianos, pela forma como a casa e as suas paredes confinam os seus habitantes a uma claustrofobia paranóica, como se as paredes estivessem quase a desabar sobre eles para revelar quem está do lado de fora a julgar. Tal como em Crimson Gold (Panahi, 2003), quando a personagem pobre entra em casa de alguém muito rico e apercebe-se que está preso à sua condição social, quando entramos nas casas das personagens em A Separation estamos a ser convidados a julgar. Desde o início, o espectador é colocado na posição de juiz dos vários dilemas morais que vão surgindo: é também uma questão de fé, mas fé no sentido de ser fiel ao que se acredita ser correcto versus fazer o que é necessário para sobreviver. As paredes dos corredores do tribunal transpiram uma teia burocrática que vai revelando pouco a pouco, através de uma catarse kafkiana, pormenores de cada personagem. Enquanto isso, a câmara ao ombro, mais que enquadrar, aponta.


Incendies
6. Incendies de Denis Villeneuve, Canada
Ora por vezes como uma grandiosa opera cuja tragédia é ensurdecedora, ora reduzido ao intimismo de um cântico numa cela, Incendies é uma épica jornada emocional. As primeiras sequências dão o mote demolidor para o que vai ser o resto do filme: primeiro, uma sequência em slow motion revela-nos um grupo de crianças a ser preparado para entrar num qualquer exército de uma qualquer guerra; a seguir um advogado explica aos filhos herdeiros de uma mãe que esta pediu-lhes que contactassem o pai e um irmão, ambos desconhecidos para eles. A crueldade da história é a crueldade da realidade. Entre linhas narrativas entrelaçadas (lembrando outro filme canadiano, The Sweet Hereafter) o filme avança pelo escuro e as personagens descobrem-se pela forma como resolvem complexas questões morais, colocando dessa forma o espectador em risco, obrigando-o a escolher também.


Um Ano Mais
5. Another Year de Mike Leigh, Reino Unido
Com o realismo social que costuma caracterizar os seus filmes, Leigh continua a desferir golpes que abalam a normalização da miseralibilidade pela sociedade, que mostram as feridas da resignação gradual à solidão. Trabalhando com variações mais amplas do que por exemplo os Dardenne, Another Year, pela sua simplicidade e crueza formal, é um filme mais próximo de Secrets and Lies do que outros filmes do britânico, o que é um bom sinal. É de solidão de que fala o filme, e da história de um casal reformado que funciona como refúgio para os amigos que pairam à sua volta, afectados pelo desespero calado da desistência, da passagem do tempo - inevitável, reflecte-se no próprio título filme, ele próprio uma lembrança que magoa. É um filme áspero e natural como o tema que aborda, que é afinal mundano, que é inundado pelo humanismo com que um olhar consegue superar a falta de palavras.


O Atalho
4. Meek's Cutoff de Kelly Reichardt, EUA
Drama intimista de um minimalismo árido, é um filme disfarçado de western que nunca chega a ser. Despojado como as paisagens desoladoras através das quais os colonos se perdem, é uma parábola perfeita para uma América perdida, sem rumo. Com uma visão feminista, oferece uma janela para o futuro, um caminho possível entre várias bifurcações. Mas é também uma janela para o passado, para o início de uma ideia de novo mundo, que anuncia desde logo feridas duradouras - o conflito contra os nativos, contra os que ocupam o mesmo espaço, o instinto de sobrevivência que é instinto de predador. Contrapondo o vasto espaço deserto com o desamparo das personagens, Reichardt é inabalável na forma como filma de forma seca a tensão das relações de poder dentro do filme.


Melancholia
3. Melancholia de Lars Von Trier, Dinamarca
Com Melancholia, von Trier mostra-nos que o fim do mundo não tem necessariamente que ser algo mau. Mostra também um von Trier algo diferente do seu trabalho mais recente: normalmente muito directo na mensagem que pretende transmitir e na forma como dirige o espectador para chegar a determinadas conclusões, aqui é muito mais ambíguo e permite mais espaço ao espectador para se sentir perdido, desertado. É impossível não ver semelhanças entre a decadência burguesa da primeira parte do filme e Viridiana (Bunuel, 1961), como se de facto o legado de Bunuel fosse uma chave para ver nesta fábula de auto-destruição o ridículo da existência humana. É ainda na segunda parte do filme, no inevitável declínio, que Trier oferece-nos imagens de beleza singular que ilustram toda a amplitude da falta de respostas, a procura de redenção e a vontade de capitulação que parecem seduzir von Trier.


A Árvore da Vida
2. Tree of Life de Terence Mallick, EUA
Tree of Life será o filme que está mais perto de ser uma súmula da obra de Mallick, o passo que este demorou a tomar depois de várias divagações. É o culminar do seu estilo naturalista, que aqui atinge a perfeição, no sentido em que procura chegar o mais próximo possível do modo como vemos e recordamos a vida, com movimentos de câmara desprendidos e memórias fragmentadas. É um filme sobre memórias, é a tentativa de mimetizar o modo como retemos a vida através de imagens - e dessa forma pode-se considerar um filme impressionista, pela forma como procura vencer a ilusão de que estamos a assistir a algo construído, de que não estamos apenas de olhos fechados. Traçando um paralelo entre a história completa do universo e a história de uma só pessoa, o filme é ao mesmo tempo uma celebração e elegia da vida humana, da impossibilidade de voltar atrás e do que está perdido. Ao procurar respostas nos conflitos entre o instinto e a razão, entre o amor e o sacrifício, Mallick desvenda por entre momentos fugitivos um filme demasiado belo para descrever apenas com palavras.


O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores
1. Loong Boonmee raleuk chat (Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives) de Apichatpong Weerasethakul, Tailândia
Um filme que começa a meio com um longo abraço, que representa o início do fim, que é uma despedida. Um homem confrontado com aparições do seu passado, que por estar a morrer, enfrenta a sua mortalidade, o que resta da história de uma vida fugaz e o que vai desaparecer. É uma história comovente sobre os últimos momentos de um amor, sobre a tentativa de agarrar memórias que se esvanecem, na altura em que ganham maior importância, porque são tudo o que restam. Há alguns pontos de contacto entre este filme e Tree of Life, quer no interesse da representação da memória, quer na nostalgia pelo que guardamos do passado - daí ter considerado durante muito tempo escolher estes dois filmes como o melhor do ano, ex aequo. Sobre este "Loong Boonmee...", tudo o mais que tinha a dizer escrevi aqui.

agosto 01, 2012

Obrigação

Obrigação

Obrigação de João Canijo, Portugal 2012, 6/10

Obrigação é um filme encomenda (do Festival Curtas Vila do Conde) e é também um filme inacabado. Isto segundo as próprias palavras de Canijo, que ao apresentar o filme desculpou-se com a falta de tempo para montar o filme, e porventura, encontrar uma narrativa mais clara dentro do material filmado, pelo menos enquanto não surgir uma versão (prometida?) mais longa do filme. Aproximando-se muito mais de um registo documental clássico do que de uma ficção disfarçada de documentário, a única intrusão é a participação de Anabela Moreira. Como que um objecto estranho que nunca consegue pertencer ao grupo, a actriz (creditada como co-argumentista) intromete-se na realidade filmada como substituto do realizador, não tanto dirigindo as outras mulheres do filme que estão a interpretar-se a elas próprias (se é que há interpretação), mas extraindo informação sem interferir no rumo da acção. Esse papel pertence à personagem principal, uma alpha-male sob a forma de empresária controladora, que está sempre no centro da encenação, no espaço cedido por Canijo. É um espaço ocupado sempre por esta personagem, que de vez em quando permite a presença de outras pessoas, através do qual acompanhamos o quotidiano desta mulher de um homem do mar, e como ela se entrega a essa tarefa sagrada de ocupar-se de tudo que seja necessário. É ao mesmo tempo uma prova de que é capaz de o fazer (sozinha), e que consegue ser mais do que isso, do que lhe é esperado. É desta forma muito próxima da personagem mãe de Rita Blanco em Sangue do Meu Sangue. Tal como outras figuras femininas dos filmes de Canijo, são mulheres a tentarem provar o seu amor, a tentarem provar que são fortes. A ausência constante do marido é assim aqui ultrapassada, mesmo que o filme fale mais da saudade do que a mostre.

O filme é clinicamente metódico na forma como representa a semana de trabalho, com longas sequências triviais como a viagem para a lota ou a distribuição do peixe que entretanto chegou por barco. De resto, pouco mais que o trabalho é mostrado e os poucos momentos de descanso são sempre ou com o trabalho em mente ou interrompidos pelo trabalho - e aí reside parte da explicação do título do filme, como é um fardo sempre presente. Talvez por não usar a sua equipa técnica própria ou por interesse numa tangente a um documentário, a encenação está longe da sofisticação de Sangue do Meu Sangue e Obrigação chega a estar perto de uma linguagem televisiva. Se haviam acusações de artificialidade quanto à forma como Canijo, em filmes anteriores, caracterizava as personagens recorrendo a facilitismos (o futebol, a música pimba), aqui Canijo defende-se com a câmara nas mãos, a registar o que não é encenado: uma cena de cinco minutos demonstra que sim, estas pessoas (e um terço da sala, que cantou em uníssono) realmente ouvem aquelas músicas que costumam pontuar os seus filmes. A curiosidade etnológica não passa de curiosidade pelo exotismo, e poderia haver algum interesse no retrato de uma comunidade fechada e tão singular, mas a personagem escolhida é uma excepção devido à sua condição económica. Tal como ela encomenda uma produção de um vídeo musical em que se substitui à cantora, aqui parece dirigir o filme segundo a sua agenda. Entretanto, a comunidade das Caxinas continua fechada: há muito mais histórias por contar nos olhares reprimidos das outras mulheres que aparecem nas margens do filme, essas sim sob o efeito de uma obrigação maior.