dezembro 05, 2008

Body of Lies

Body of Lies (2008) 
5/10
de Ridley Scott

Leonardo DiCaprio in Body of LiesBody of Lies é um filme-fórmula do tipo thriller político global, com marcas de filme de espionagem high-tech e considerações sobre o estado actual do terrorismo nas relações internacionais. É inferior ao filme Spy Game (7/10) de Tony Scott no mesmo conceito de agente no terreno liderado por alguém mais velho a operar à distância no aparelho burocrático em Washington, especialmente no aspecto de construcção eficaz de um ambiente tenso sem nunca atingir o sentido de urgência ou intriga inteligente do filme com Robert Redford.

É também repleto de pequenas reflexões e críticas tépidas sobre as políticas americanas pós 9/11, especialmente sobre a convivência com as autoridades locais do médio-oriente, mas também aqui nunca atinge o tom complexo e elaborado de Syriana (8/10), de forma a que as pretensões a um filme mais profundo e analítico sobre a acção das forças americanas não passam de mero exercício vazio (assim como a conclusão do filme – apenas uma trama improvável construída para ser resolvida no último momento, que apenas funciona devido à ignorância sobre os eventos em que o espectador é colocado).

Parte da fórmula é a hiper-estilização do filme: planos apertados sobre o rosto das personagens, cortes rápidos, cinematografia baseada em tons verde e azul escuro, inserts constantes de jipes a rodar a toda a velocidade, utilização de imagens de satelite e telemóveis, tudo sublinhado por música étnica que acaba por ser uma colagem pouco inovativa, sempre a martelar na mesma tecla – afinal, são ideias desenvolvidas por Ridley Scott em Black Hawk Down (7/10), que de certa forma criou aí a fórmula estilística base contemporânea para este tipo de filmes. A falta de ideias novas é exemplificada pelo modo como a personagem de Russel Crowe é repetitivamente filmada em acções banais e despreocupadas em casa (a tratar do filho) como contraste às acções tensas no terreno da personagem de DiCaprio, uma imagem repetida infinitas vezes.

DiCaprio e Golshifteh Farahani
Há mérito no enredo pela introdução da relação amorosa entre a personagem de DiCaprio e uma enfermeira local (a iraniana Golshifteh Farahani, numa performance captivante), especialmente pelo modo como explora e procura demonstrar as condicionantes e consequências de uma tal relação entre um estrangeiro e uma local (a melhor sequência do filme – o almoço em casa da irmã), e pela interpretação de DiCaprio, que mais uma vez dá tudo o que tem ao filme, mas que é insuficiente para que o filme seja algo de inovador ou realmente diferenciador entre os filmes do mesmo género, apenas um produto bem executado.

Uma nota final para esta notícia infeliz, que relata como a actriz Golshifteh Farahani ficou impedida de sair do país após a estreia do filme.

Blindness

Blindness (2008)
7/10
de Fernando Meirelles, baseado no livro de José Saramago

Julianne Moore
Não li o livro (ainda). E normalmente tento não criar expectativas e ver os filmes com a mínima informação sobre o que vai acontecer. É um filme díficil, não convencional, que levanta questões sobre a ambiguidade moral da natureza humana e prova como certas obras literárias têm uma complicada adaptação ao cinema. As expectativas eram altas, afinal era o primeiro filme baseado numa obra de Saramago, realizado pelo autor de Cidade de Deus (10/10) e Constant Gardner (8/10), e não sendo uma obra fora-de-série,  não é uma desilusão.

O argumento centra-se numa parábola  em que a cegueira humana em relação à condição dos outros e generalizada falta de empatia concretiza-se na cegueira física de toda uma população, uma epidemia de falta de lucidez. A abordagem à narrativa tem um tom abstracto evidente – a localização da história nunca é determinada, as personagens são números e profissões – próprio de uma analise intelectual de algum distanciamento forçado  em relação ao sujeito que se analisa (em que em qualquer tradução para filme se centra a história, são o veículo das emoções-acções).  Não há uma ligação demasiado pessoal ou um investimento real sobre a perspectiva de uma personagem  (com a excepção ligeira da personagem de Julianne Moore, que num filme de cegos funciona como um guia), mas sim todo um painel de personagens. Existe também um alheamento do quadro geral, deixando-nos às escuras sobre o que se passa no resto da sociedade,  sobre o impacto da epidemia na população fora das personagens que o filme acompanha, quebrado ocasionalmente por inserts de conferências de imprensa do governo.

Esta abordagem advém do tratamento do livro pelo argumentista canadiano Don McKellan, que em Last Night (5/10) realizou um dos mais anti-climax e não emocionais filmes de cenário fim-do-mundo (portanto a trabalhar em Blindness em território familiar - plot summary de “Last Night”: A group of very different individuals with different ideas of how to face the end come together as the world is expected to end in six hours at the turn of the century) que deixa a sua marca na abordagem distanciada do filme, por vezes demasiado indiferente no princípio, quando as personagens parecem pouco surpreendidas com o seu destino. A abordagem demora a encontrar um tom consistente, entre as situacções  de cariz ficção-científica e o comportamento totalitário do Estado e entre a natureza cruel e pessimista relativa à acção alegórica central sobre as falhas humanas. Um exemplo enigmático é a utilização de um voice-over pela personagem de Danny Glover, que surge apenas a meio do filme, volta depois a aparecer furtivamente no fim do filme e nunca é explicado.

Alice Braga
Grande parte do enredo desenrola-se no hospital/prisão/ hospício para onde os cegos são enviados e é aqui que o filme atinge alguns dos melhores momentos, na medida em que é efectivamente construído um ambiente desolador e a esperança escasseia, em que as personagens se tornam caricaturas de humanos pelos exageros expostos – falta de higiene, abandono de qualquer decência social – uma descida ao abismo. Meirelles mostra a sujidão e falta de orientação dominantes, mas durante todo o filme hiper-estiliza a acção com quase momentos videoclip Mtv com cortes abruptos, sobre-exposição de elementos, truques visuais que parecem deslocados, forçando a ideia de luminosidade exagerada como paralelo à falta de visão com uma cinematografia de cores esbatidas e saturada de brancos. Meirelles opta por filmar as caras demasiado perto, com movimentos lentos arrastando-se ao acaso que mais parecem distrair (especialmente considerando a escolha em relação ao usual) do que atrair a atenção do espectador.

Ainda assim, durante todo o tempo no hospital em que tudo parece resvalar para o pior, é quando o distanciamento em relação às personagens se torna mais claro, e o tom estéril da abordagem mais parece contrastar com o desenrolar da acção – as personagens parecem cair num mundo próprio, pouco ligadas ao que as envolve e a ligação com o espectador permanece fria  – apesar de todo o sofrimento visivel, o filme com a sua abordagem estilizada nega os próprios efeitos do ambiente e nunca realmente explora uma verdadeira experiência humana, preferindo explorar o lado da experiência social, onde  as personagens ficam reduzidas à ideia de ratos abandonados num laboratório, cujo comportamento não parece espontâneo mas dirigido. Atente-se um dos momentos centrais: quando o gang ditador exige que as mulheres se entreguem em troca de alimentos o único sentimento é de resignação ao destino, nunca se considerando realmente qualquer alternativa de resistência (nem sequer mais uns dias de fome: todos reduzidos a animais) - o objectivo é mostrar o sacrifício das mulheres e acentuar a a invalidez dos homens.

just a rat in a cage
Apenas quando as personagens saem do hospital para a rua vemos algumas emoções que parecem genuínas e que mostram a fraqueza do estado emocional das personagens. Confrontados com o caos generalizado agarram-se uns aos outros (o pouco que ainda conhecem) numa tentativa de manter algum contacto humano para sobreviver. Há o aproximar do casal central cuja relação parecia condenada e é claro, há o cão das lágrimas, numa cena que funciona como uma conclusão necessária, ou um despertar emocional da paralisia anterior.

De qualquer modo o filme é relevante na medida em que tenta uma análise complexa através de uma parábola inteligente e tenta recriar um cenário caótico de desolação e apocalíptico, com a quebra completa da sociedade e o abandono dos cidadãos pelo seu governo; a personagem de Alice Braga e a forma como aparece entre a separação física e emocional do casal de Julianne Moore e Mark Ruffalo, incapazes de sentir a experiência da mesma forma. A forma como a personagem de Moore se torna um guia, uma âncora para os que se agarram a ela, enquanto ao mesmo tempo Ruffalo passa de médico a incapacitado, ou o confronto entre as personagens habituadas a serem abusadas e as personagens privilegiadas antes da epidemia, numa mudança de dinâmica e poder social. Mas nunca se torna numa obra fracturante, capaz de cativar o espectador para o tal abismo.