janeiro 24, 2013

Antonio Gaudí (1985)


Antonio Gaudí

Antonio Gaudí de Hiroshi Teshigahara, Japão 1985, 8/10

“[documentary was] the presentation of the subject construed and perceived through
particular human eyes” – Teshigahara

Hiroshi Teshigahara (1927‐2001) destacou‐se na década de 60 como um dos mais originais e visionários cineastas japoneses, com filmes como Pitfall (1962), Suna no onna (Woman in the Dunes, 1964 – prémio do júri no Festival de Cannes) e Tanin no kao (The Face of Another, 1966 – nomeado para Oscar de Melhor Filme Estrangeiro), exemplos de inovação e modernismo. Formado pela Universidade de Tóquio em Belas Artes e Música, pintor, escultor e director de teatro, Teshigahara teve sempre como preocupação uma abordagem vanguardista, dando primazia à procura de imagens icónicas que proporcionassem a construção de um ambiente único.

Teshigahara começou a sua carreira a filmar documentários, mas além de dois documentários pouco conhecidos, realizados na década de 60, Jose Torres II (1965) – sobre um pugilista americano, e Bakuso (Explosion Course, 1967), este filme sobre Gaudí pode parecer um corpo estranho na filmografia de Teshigahara, dada a sua propensão para explorar o campo da ficção, e o reconhecimento que obteve nesse campo. Mas vários factores podem ajudar a explicar este fascínio de Teshigahara pela obra de Gaudí, e a decisão em dedicar‐lhe um documentário: a sua formação em Belas Artes, o seu interesse pelo meio ambiente e pela natureza das estruturas como organismos com influência sobre o Homem, e uma visita a
Barcelona nos anos 60 com o pai. Se as obras de Teshigahara sempre revelaram uma abordagem imaginativa e subjectiva a nível de composição plástica e tratamento das imagens, com Antonio Gaudí, Teshigahara vai tentar uma nova resolução da problemática do cinema em filmar obras de arte.

A questão da arte filmada pelo cinema está ligada à própria história do cinema ao longo do século XX. Inúmeros filmes dedicaram‐se a este tema, e como resultado são variadas as abordagens. Um dos primeiros exemplos é Van Gogh (1948) de Alan Resnais, uma engenhosa curta‐metragem que utiliza somente os quadros do artista para contar a história da sua vida. Acrescido de uma narração em voz‐off e de movimentos de câmara dentro do quadro, que ora chamam a atenção sobre detalhes, ora acrescem movimento a uma imagem parada, o filme de Resnais representa a visão subjectiva do realizador sobre a obra do artista retratado. Outro filme de Resnais que tenta capturar as possibilidades cénicas de um quadro é Guernica (1950). Através de uma série de imagens fragmentadas, Resnais compartimenta a obra de Pablo Picasso, oferecendo uma nova interpretação do quadro, recorrendo também a uma narração por cima das imagens, que aliada a uma edição rápida, apresenta uma visão próxima do cubismo do quadro. Um outro exemplo é Le mystère Picasso (1956), de Henri‐Georges Clouzot, que denota uma escolha diferente da apresentada por Resnais. Aqui, a presença da câmara é meramente presencial, testemunhal, já que Clouzot oferece, como modelo de estudo da arte, uma série de quadros pintados por Picasso em tempo real, recorrendo a uma inovação técnica que permite ver os traços de Picasso através da tela. Um exemplo mais recente é Cave of Forgotten Dreams (2010) de Werner Herzog, que faz uso da tecnologia mais recente (3D), para apresentar uma visão de arte outrora inacessível, tal como Pina (2011) de Wim Wenders, que consegue dessa forma extravasar o meio onde a arte era apresentada. Um caso recente de originalidade sobre este tema é Exit Through the Gift Shop (2010) de Banksy, que incorpora o espirito punk da street art, na forma como subverte as regras de um documentário tradicional sobre arte.

Alguns filmes portugueses também abordaram esta questão e Manoel de Oliveira seria responsável por dois deles: O Pintor e a Cidade (1956) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Em O Pintor e a Cidade, documentário sobre a cidade do Porto através das aguarelas do pintor António Cruz, Oliveira filma o pintor à medida que este percorre a cidade, alternando essas imagens com quadros do artista, em que o som se desloca pelos dois planos. Em As Pinturas do Meu Irmão Júlio, sobre o pintor Júlio dos Reis Pereira, Oliveira movimenta a câmara no interior dos seus quadros e movimenta os próprios quadros, criando um efeito hipnótico sublinhado pela guitarra de Carlos Paredes e um texto de José Régio – o resultado é uma obra altamente subjectiva que traça os seus próprios caminhos dentro dos quadros. Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, é uma homenagem em forma de filme‐poema, sobre alguns dias do quotidiano familiar da escritora. Jaime (1974), de António Reis e Margarida Cordeiro, sobre o artista Jaime Fernandes, relaciona de forma pouco convencional a biografia do pintor à sua obra plástica, ela própria pouco convencional. Por outro lado, Fernando Lanhas ‐ Os 7 Rostos (1988), de António de Macedo, analisa a obra do artista principalmente através de entrevistas‐depoimentos de outros artistas contemporâneos. Mais recente é Ne change rien (2009), de Pedro Costa, um retrato intimista da cantora‐actriz Jeanne Balibar, que através de jogos de repetições rítmicas e planos estáticos recorrentes, arrasta‐nos para uma imersão sensorial dedicada à contemplação.

Teshigahara acreditava na comunicação e interdisciplinaridade entre diferentes formas de arte, e esse princípio seria fundamental no seu contributo para uma proposta de resolução do problema de como um cineasta deveria apresentar o trabalho de outro artista. 

Antonio Gaudí é um filme‐ensaio, mas não no sentido delineado como em alguns filmes de Chris Marker (Description d'un combat, Sans Soleil), em que uma narração dá corpo a um texto que é enunciado sobre uma série de imagens que procuram ilustrar o tema abordado, com maior ou menos sincronia com as imagens. Aqui não há qualquer narração nem títulos‐texto, portanto não há contextualização. O único comentário que existe é apenas providenciado pelos movimentos de câmara de Teshigahara e pela hierarquia da montagem das imagens que procuram revelar um olhar próprio sobre o material. Antonio Gaudí é então um filme‐ensaio no sentido em que é um conjunto de imagens que estão subjugadas a um conceito central, que é evidenciado pela forma como o espectador é dirigido a compreender um olhar particular. Partindo da exploração das obras de Gaudí, Teshigahara consegue chegar a uma visão original recorrendo a uma conjugação de vários elementos. Primeiro, as imagens capturadas em Barcelona são o principal suporte do filme, são efectivamente os alicerces do documentário. Teshigahara desenvolveu um método através do qual analisa as diferentes obras de Gaudí, que se mantém relativamente uniforme durante o filme. Segundo, o filme não tem qualquer diálogo ou narração (excepto um pouco de história sobre a Sagrada Família, já na parte final do filme), mas utiliza dois elementos importantes a nível sonoro: os ruídos
capturados na rua, isto é, os sons naturais da cidade, e a música, que oscilando entre composições ocidentais e orientais, acrescentam uma camada complexa ao filme, ajudando a criar um ambiente tenso que joga com as figuras que são destacadas. 

Antonio Gaudí

Analisando uma sequência do filme, em particular, observamos como Teshigahara constrói o seu método de análise da obra de Gaudi. A sequência filmada no Parc Guell é ilustrativa das técnicas e forma que Teshigahara utiliza na descrição dentro do filme. Esta composição de vários elementos é aplicada noutros segmentos no filme, como por exemplo, na descrição imagética dedicada à La Pedrera ou à Sagrada Familia, com pequenas alterações, que passam pela utilização episódica de imagens de arquivo ou as plantas e desenhos de construção ou ainda no caso do segmento da Sagrada Familia, de uma pequena entrevista que detalha algumas das peculiaridades desta obra. Teshigahara começa sempre por mostrar primeiro as pessoas na rua (fig.1), quase que colocando a obra em segundo plano em relação às pessoas que habitam o espaço em volta da obra, o que revela como a própria obra se insere quase naturalisticamente na paisagem da cidade. Estabelece assim a envolvência da obra, mesmo antes de mostrar a própria obra, envolvência que também pode ser visível nas casas circundantes. Depois, numa série de planos (fig.2), começa a desembrulhar a obra, mostrando os seus traços gerais em separado, ou seja, pausando sobre partes da estrutura, quer sejam torres ou arcos ou salas, aproximando‐se dos detalhes. Numa série de movimentos de câmara repetitivos (mas nem sempre iguais) pela obra, arrasta o seu olhar por essas partes da estrutura (fig.3), traçando um rumo próprio que nem sempre é o mais óbvio mas que revela o olhar de Teshigahara na  forma como nos apresenta a obra. Através destes movimentos de câmara rítmicos e quase ritualísticos, Teshigahara encontra pormenores em que se detém, revelando figuras, quase sempre religiosas, que fazem parte da paisagem singular da obra. Desta forma, consegue dirigir o nosso olhar para a sua visão subjectiva dentro da obra de arquitectura que nos apresenta, efectivamente dando vida e movimento a algo estático, sugerindo movimento e continuidade dentro dessas estruturas, que parecem assim em infinita mutação. De notar que estes movimentos de câmara adaptam‐se à estrutura filmada: se, no caso da Sagrada Familia, constituem‐se de uma série de movimentos verticais, e, no caso da Colònia Guell, de movimentos em espiral mimetizando as colunas, no Parc Guell filma maioritariamente através de movimentos circulantes e horizontais. Por fim, apresenta uma série de planos gerais da obra, filmados de longe (fig. 4), que mostram como o meio ambiente em redor absorveu o trabalho de Gaudi como parte integrante da paisagem natural.

Esta visita íntima à obra de Gaudi, que resulta da conjugação entre o cinema e a arquitectura, pode não ser uma nova obra de arte como parece sugerir Dore Ashton no seu texto sobre o filme. Mas é o produto de uma visão de um artista multidisciplinar como Teshigahara, que consegue assim oferecer uma nova interpretação do que deverá ser um modelo de filme sobre a arte. E oferece acima de tudo uma forma única de experienciar, quer a obra de Gaudi, quer a visão de Teshigahara sobre essa obra.




alguns dos filmes mencionados podem ser vistos na integra nos links em baixo:
Van Gogh de Alan Resnais - vimeo
Guernica de Alan Resnais parte1 + parte2
O Pintor e a Cidade de Manoel de Oliveira  - youtube
As Pinturas do Meu Irmão Júlio de Manoel de Oliveira - youtube
Sophia de Mello Breyner Andresen de João Cesar Monteiro - youtube
Jaime de Antonio Reis e Margarida Cordeiro - youtube
Fernando Lanhas ‐ Os 7 Rostos de António de Macedo - youtube

janeiro 23, 2013

Searching for Sugar Man (2012)

Searching for Sugar Man

Searching for Sugar Man, de Malik Bendjelloul, EUA 2012, 6/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2013

Sugar man met a false friend
On a lonely dusty road
Lost my heart when I found it
It had turned to dead black coal

Rodriguez é o nome do Sugar Man do título do filme, uma das poucas coisas que se sabe sobre este desaparecido músico americano. Além dos dois álbuns que deixou, gravados em 1970 e 1971, muito pouco é conhecido sobre a sua figura. Entre as histórias à volta do músico baseado em Detroit, que se pressupõe ter sido um sem-abrigo que percorria os bares de guitarra às costas, destaca-se o que é contado acerca da sua morte. Duas versões alimentam o mito: que terá suicidado-se em palco, depois de despejar gasolina sobre si mesmo, imolando-se no fim de um concerto, ou então que no fim desse último concerto, tocado de costas para a audiência como era seu hábito, terá puxado de um revolver e disparado sobre si mesmo. Estas  e outras histórias, contadas no início do filme, por diferentes pessoas que alegam ter visto Rodriguez ao vivo, ajudam a compor o retrato deste singer-songwriter. No fundo, as poucas pistas deixadas para trás, que podem ajudar a explicar quem foi este espírito fugaz, são essencialmente as canções que deixou para trás, cujas letras incidem sobre drogas, indigência e uma aparente depressão incurável. Repletas de desespero, jogam com as poucas fotografias herdadas das capas dos álbuns, que revelam uma figura envolta em mistério. Apesar do falhanço rotundo dos seus dois álbuns, Rodriguez é considerado pelos produtores que trabalharam de perto com ele em Motown como um dos músicos americanos mais talentosos de sempre - e falamos de produtores que trabalharam com Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Peter Frampton. Se Rodriguez foi completamente esquecido na América, foi transformado em figura de culto numa África do Sul dominada pela censura. Os seus álbuns eram aí fruto proibido, trocados entre os jovens sul-africanos à procura de uma voz que enunciasse o que sentiam, e as suas músicas anti-establishment chegam a ser usadas como hinos para manifestações. Rodriguez é adoptado com uma espécie de Bob Dylan por essa geração sul-africana a tentar escapar do apartheid, o que valeu-lhe níveis de popularidade acima dos Rolling Stones.

Este é um documentário dentro do género musical, mas antes de ser um filme sobre Rodriguez é um filme sobre a procura de respostas em relação à sua figura, e sobre a influência que a música pode ter na vida de diferentes pessoas, como factor singular de libertação. Primeiro em Detroit, onde o realizador entrevista habitantes de uma cidade em ruínas, que revelam os vestígios da sua música sobre a população predominantemente de classe operária, onde restam ainda rumores acerca do destino de Rodriguez. Depois na África do Sul, acompanhando de perto dois dos maiores admiradores do músico (um jornalista e um coleccionador), à medida que estes procuram respostas para o enigma. Examinando exaustivamente as poucas pistas ainda disponíveis, partem numa investigação-expedição, vasculhando as letras e os créditos dos álbuns, à procura de sinais e de pessoas que possam ter conhecido Rodriguez. E a verdade é que à medida que vamos aprendendo mais acerca da pessoa, mais do que do músico, começa a desenhar-se um retrato de alguém fascinante na sua complexidade. Rodriguez, filho de um emigrante mexicano, parece nunca ter-se adaptado à realidade americana, mas ainda menos aos jogos do mundo da música. Apesar de todo o seu talento, passa ao lado de uma carreira com maior reconhecimento, mostrando que muitas vezes no universo comercial da música, isso não é suficiente: será também um símbolo da aleatoriedade com que se fabricam mitos e génios. O filme é composto por várias entrevistas, paisagens filmadas nos locais de interesse, excertos de música e imagens de arquivo. Não anda muito longe da linguagem televisiva (e das biografias musicais), mas permite assistir de perto ao papel redentor da música, da sua influência duradoura e a felicidade pura que traz a quem permite-se envolver pela mensagem da obra. Porém, paralelo a esta celebração do papel da música, há sempre presente uma desvirtuação da mensagem do filme, quer pela manipulação dos factos para garantir um maior suspense, quer pelo adorno em relação ao que realmente poderá ter acontecido.