julho 07, 2009

Bleu

Trois couleurs: Bleu
1993, de Krzysztof Kieslowski - 9/10


Bleu é a primeira parte da trilogia francesa do polaco Kieslowski. É um filme sobre a dor, aparentemente sobre o sofrimento da personagem principal de Juliet Binoche (Julie), mas na realidade sobre a apatia emocional e o vazio que a sua personagem sente depois da morte do marido e da filha logo na cena inicial. O filme, a imagem, cola-se desesperadamente à sua face logo desde o ínicio enquanto ela se esconde debaixo dos cobertores da cama de hospital onde recupera fisicamente e  segue-a de forma inflexível enquanto esta procura deixar tudo para trás, começar de novo, presa na sua incapacidade de se deixar envolver pelo luto. Quando encontra a sua empregada a chorar, esta responde-lhe que chora porque Julie não o faz. Deixa as possessões materiais para trás, com excepção de um candeiro azul que decorava o quarto da filha, incluindo um colar com uma cruz que alguém que o encontrou no local do acidente se propõe a devolver-lhe. Um re-início reflectido também nas personagens que Julie vai encontrando: a triste vizinha prostituta, o colega do marido a quem lhe telefona quando sai do hospital a propor sexo como forma de despedida.

Apesar de todo o isolamento auto-inflingido, vive rodeada de memórias assombradas:  um músico à porta do café que toca na flauta as canções escritas pelo marido morto, a sua tranquilidade na piscina invadida por dezenas de crianças da mesma idade da sua filha, uma ratazana e as suas crias infantes que invadem o seu apartamento, as partituras das músicas inacabadas do seu marido, a memória falhada da mãe, incidências perturbadoras que a levam a procurar sentir algo fisicamente para substituir o vazio emocional: um doce antigo encontrado (da filha?) comido à pressa, as mãos a arrastarem-se numa parede até os nós dos dedos ficarem a sangrar num plano inesquecível,  e uma atracção em testemunhar estranhos como um homem a ser espancado na rua ou a prostituta a receber um vizinho em casa. Quebras da sua monotonia-vazio.

É toda uma colecção de eventos desligados que funcionam como um mosaico que permite acompanhar a personagem de Juliet Binoche no seu estado entorpecido depois da tragédia sofrida. O filme acompanha-a sempre de perto, com inúmeros planos aproximados da sua cara, enquadrando-a cuidadosamente na acção, a sua figura sempre presente. Utiliza também alguns artíficios, como a simples mas brilhante ideia de mostrar os dedos a deslizar por uma partitura musical ao mesmo tempo que ouvimos a música, como se os dedos dessem vida às notas musicais. A música utilizada é classica, conferindo um tom austero e intemporal à história, com grande relevo no fim do filme. O título (Azul) não é inocente na escolha de certos cenários, dominando certos quadros como o azul escuro da piscina ou o candeiro do quarto da filha ou o papel de parede do quarto, evocando a melancolia da personagem e também o simbolismo do azul na bandeira francesa: liberdade, que Julie procura ao mesmo tempo de qualquer outra pessoa e também da sua vida anterior.  

Melancolia que é também sublinhada pela cena no ínicio do filme da mão a atravessar o muro que nos vem à memoria várias vezes durante o filme, evocado pelos actos de Juliet, pela sua constante necessidade de sentir algo que quebre o vazio sentimental ou o monopólio da angústia,  momento-cena que domina o resto do filme e funciona como uma força motriz para o mapa emocional do filme. Está constantemente presente: quando, tarde na história ela pede um apartamento novo essa cena serve para explicar os seus motivos: para se afastar das pessoas que entretanto conheceu, para repetir o re-início, para não ficar presa do luto.

Existe um desenvolvimento importante na história que permite actuar como uma catarse para a personagem de Julie: pouco depois de descobrir que o marido a enganava com uma amante e depois de a procurar, descobre que ela está grávida do seu marido,  acontecimento que lhe permite voltar a estabelecer relações com outras pessoas, ajudando-a a ganhar perspectiva  e voltando ao colega do marido que abandonou no início do filme para o ajudar a compor o fim da obra inacabada.

O filme pode-se comparar a um requiem, que termina num final fantástico, final que é simetricamente oposto ao início: Julie depois de saber o desfecho do acidente tenta o suícidio mas não é capaz e passa o resto do tempo semi-adormecida, com o filme a mostrar o seu sofrimento silencioso, para chegar a uma ode ao amor: depois de finalmente terminar a obra inacabada do marido, ouvimos a música numa montagem sentida, que começa com a silhueta de Julie no escuro (vista através da reflexão num olho, numa pose semelhante ao Pensador de Rodin) e mostra as várias personagens afectadas pela vida de Julie em quadros solitários, com as letras escolhidas previamente pelo marido a sublinharem a mensagem,  resultando numa combinação súblime entre imagem e música: do sofrimento para o elogio ao amor.

If with the tongues of men I speak,
and of angels, 
Love I do not have, 
I have become a gong resounding or cymbal clanging. 

And if I have the gift of prophecy, 
and know mysteries all, 
faith mountains move, 
Love I do not have, nothing I am. 

Love is generous, virtuous, 
Love does not envy, boast, not proud is. 

All she protects, all she trusts, all she hopes, all she perseveres. 

Love never she fails. Be it prophecies, they will cease, 
Be it tongues, they will be stilled, be it knowledge it will cease. 

So remain, Faith, Hope and Love, these three. But the greatest of these is Love.

2 comentários:

imartins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
imartins disse...

Gostei muito do teu comentário, que foca, do ponto de vista emocional, a melancolia e o vazio, propriedades quase constantes do olhar de Julie. Gostaria de realçar a forma como Kielowski usa a técnica e exploração exaustiva das cenas de modo a dar-lhes a maior naturalidade e realismo possível ao mesmo tempo que estas obedecem a padrões idealizados com métricas bastante restritas. Um exemplo caricato é a cena em que Julie coloca um cubo de açúcar no café (ver o ultimo ponto em http://www.imdb.com/title/tt0108394/trivia).