“All you need to make a movie is a girl and a gun.”
À bout de Souffle (“Breathless” ou “O Acossado”) é definitivamente um marco do cinema, uma obra-prima fracturante que está na origem do movimento Nouvelle Vague que surge por oposição ao classicismo de Hollywood dos anos 1940/1950 e ao seu estilo de certa forma estagnado (aos seus planos parados, repetitivas soluções de enquadramento, setups profundamente planeados). Não deixa de ser ao mesmo tempo uma obra inspirada por tradições desse cinema, mais especificamente o gangster-noir que tanta influência tem sobre as personagens do filme de Godard.
É a história de duas pessoas ligadas mas igualmente solitárias – ele (Jean-Paul Belmondo como Michel) numa soberba interpretação caricatura de imitação de Bogard, sempre bem-apresentado no seu fato e chapéu de feltro, cigarro na boca e poses estudadas; ela (uma inesquecível Jean Seberg como Patricia), numa fantástica utilização das características físicas para definir os traços da personagem com o seu visual atípico, feições estrangeiras, cabelo curto e uniformes modernos, sotaque exótico. Personalidades multi-dimensionadas, ambos partilham vários traços simbólicos: o fascínio pela cultura contemporânea, obcecados com a reflexão da própria imagem (os vários planos em que param para se olharem ao espelho), uma exultação de um estilo próprio que é imitação da cultura do seu tempo (ele a imitar as estrelas masculinas de hollywood, ela a imitar as modelos das revistas de moda), uma juventude definida pela procura de experiências e fascínio com o perigo, mas preocupada com o próprio sentido de destino – que resulta num hedonismo disfarçado de niilismo, uma introdução revolucionária de uma nova perspectiva existencialista em falta no cinema americano. No fundo, a procurar viver o que vêem no cinema, o que em si mesmo revela uma concepção e percepção auto-referencial do filme, menos preocupado em diluir-se como realidade mas em afirmar-se como produto artístico-cultural. Resulta de uma colaboração na escrita de Godard com François Truffaut, que em
Les Quatre Cents Coups (1959, 9/10) tinha já introduzido técnicas da Nouvelle Vague, mais preocupado com a dinâmica social e influenciado pelo realismo italiano, que mais tarde com
Jules et Jim (1962, 10/10) aborda definitivamente as divagações existenciais num tom mais íntimo.
O filme começa logo num ritmo sufocante, planos e olhares dramáticos sublinhados por música tensa e cortes rápidos, estabelecendo desde logo uma colagem ao visual gangster-noir dos filmes americanos mas com uma abordagem própria desconcertante – a primeira imagem é a ilustração num jornal de uma rapariga em trajes menores (Michel utiliza várias vezes um jornal para com a ajuda do seu chapéu se esconder de olhares suspeitos enquanto prepara algum golpe, uma imagem certamente recortada dos filmes que viu) que de seguida revela o nosso protagonista pela primeira vez com o sempre-presente cigarro pendurado da boca – imediatamente passa os dedos nos lábios a imitar Bogart (outra constante do filme) enquanto troca olhares com uma rapariga cúmplice no roubo de um carro que logo deixará para trás. Ao volante, enquanto murmura várias considerações ou chauvinistas ou sobre a condução dos outros, fala por alto dos seus planos (um fatalista celebrar antes de concretizar os planos, um desejo de escapar para Itália repetido mas nunca alcançado) expondo logo traços básicos mas íntimos da sua personagem, mas também reveladores da sua personalidade proscrita – e de repente logo no início acontece algo de inesperado que é a quebra de uma regras sagradas do cinema (
The Fourth Wall) em que Michel num par de linhas dirige-se directamente ao espectador, algo impensável – e que funciona cedo como manifesto estilístico do filme, ou seja, logo nos primeiros minutos estão estabelecidas as intenções do filme, quer a nível visual quer a nível temático (o objectivo não é criar uma obra que se diluia na realidade por forma a esquecermos momentaneamente que estamos a ver um filme, mas sim a afirmação do filme como um objecto explícito de arte, como uma intervenção-declaração sobre algo ). Pouco depois acontece o acto que funcionará como génese de toda a acção, “o crime” (resolvido em 3 planos reflectivos da impulsividade) que lança a personagem principal na fuga para o abismo, o acto irreversível que inicia verdadeiramente o filme.
Depois de um plano a passar por Notre Dame (estabelecendo que chegamos a Paris) e de Michel nervosamente procurar saber se há noticias sobre o seu feito, enquanto não encontra Patricia refugia-se noutra rapariga (ou no seu dinheiro – por muito que viva fora das regras sociais passa grande parte do filme subjugado a necessidades práticas) enquanto esta troca levianamente de roupa rodeada de fotos de poses provocadoras e trocam frases, entre cortes rápidos e jogos de espelhos, planos estudados mas que parecem fruto da improvisação dos actores (mais uma intenção estilística: câmara em constante movimento, sem rumo pré-definido, confinada com os actores ao mínusculo quarto) .
Pouco depois somos introduzidos à personagem exótica de Patricia, uma estudante americana em Paris a vender o Herald Tribune na rua num fantastico plano-sequência e exemplificador dos recursos imaginativos do realizador, e rapidamente entramos na importância temática da relação entre os dois e como o filme se torna na sua essência a história destas duas personagens e da sua psicologia:
- Ele impulsivo-despreocupado, egoísta à procura de aventura, a querer ser como as estrelas de cinema que pára para observar nos posters do cinema, poses e movimentos estudados, sem pensar no futuro vive para o momento (carpe diem), chauvinista mas apaixonado e necessitado, existência subterrânea fora da sociedade e das suas regras reductoras. Ela enigmática, igualmente à procura de aventura, faz-se difícil mas ao mesmo tempo deixa-se levar pelas histórias dele, vive à procura de material curioso e experiências invulgares que inspirem a sua carreira de escritora. Ambos vivem obcecados com eles próprios e a sua imagem, revelado na teatralidade artifical dos seus pequenos gestos e no seu visual cuidado, sempre a olharem-se ao espelho, revelado na forma como conduzem os diálogos para os seus interesses (como é que eu estou, o que gostas mais em mim, gostas do que eu gosto, faz isto para mim), revelador de um desejo de uma ideia romanticizada de uma paixão profunda (Romeu & Julieta ou Bonnie and Clyde), egocentrismo que no fim vai acabar inevitavelmente com a sua relação tal como é enunciado por Patricia (apenas estavamos interessados em nós próprios e não no outro). É algo que é aludido durante o filme de forma indirecta, especialmente numa das sequências definidoras do filme – uma cena de cerca de 10 minutos enclausurada no quarto mínusculo de Patricia, com as 2 personagens inevitavelmente íntimas mas ao mesmo tempo distantes: logo no início Patricia anuncia que está grávida de Michel mas isso parece ter pouca importância para os dois já que durante a longa cena as suas implicações não são abordadas, subsituídas por comentários inócuos sobre o que cada um quer para o seu futuro e pelos constantes avanços e recuos de Michel sobre Patricia. Outro pormenor revelador do carácter tentativo da sua relação é o facto de Patricia passar a maior parte do tempo dividida em relação ao seu compromisso para com Michel mas é apenas quando descobre que este está foragido que parece finalmente arrebatada por ele. O fim do filme é outra peça no puzzle que é a sua relação, quando ela telefona à polícia para dizer onde ele está escondido e volta para o avisar, num teste falhado à veracidade dos seus sentimentos. Tudo isto desabafa no final cénico em que ele se recusa a fugir e enfrenta a polícia, acabando a correr depois de baleado até cair no chão onde tem o seu grande momento desejado de estrela do seu próprio filme – por fim atinge o seu destino.
É uma obra também definida pelas várias utilizações de técnicas inovadoras ou fora do comum como solução para a encenação da história, momentos que marcam explicitamente as escolhas como forma de afirmação do realizador. Como a desconcertante quebra da Fourth Wall ou o plano-sequência no meio da rua, existem outros exemplos: num almoço entre Patricia e um jornalista americano enquanto este conta uma história desinteressante existem vários cortes-rápidos que avançam o monólogo pequenos segundos de cada vez, miniaturas elipses visuais; numa conferência de imprensa de um premiado escritor (repleta de trivialidades sobre o que é o amor, excepto na resposta à pergunta de Patricia que parece adequar-se ao desejo de Michel: “Qual a sua maior ambição na vida?” “Tornar-me imortal e depois morrer”), a câmara reflecte a confusão controlada com cortes rápidos de microfones, gravadores ou a cara do escritor que segue o ritmo infernal das perguntas, pausando ligeiramente na pose hipnotizada de Patricia, filmada de um ângulo de baixo para cima e com o sol por trás que a transformam numa figura fascinamente deslocada; frequentemente a câmara não está fixada mas segue os objectos numa improvisação controlada – uma intenção estílistica que parte de um estudo prévio, da intervenção directa do realizador como verdadeiro auteur, num confronto com o classicismo distante e austero, um todo imaginário de recursos estílisticos análoga quase a uma abordagem desconstrutivista das estruturas convencionais. O filme afirma-se como uma obra de arte e não como um substituto da realidade, confirmada pelas várias referências à cultura pop contemporânea como auxiliares de enquadramento (um mecanismo copiado pelos indies americanos, com Tarantino como o caso mais célebre). É uma obra que teve uma influência enorme não só sobre o movimento em que esteve na origem mas que ainda se mantêm relevante e moderna pela influência que continua a ter sobre o cinema auteur europeu. Só o trailer é algo que vale a pena ver: