A guerra no Iraque tem sido o tema de vários filmes americanos recentes, mas até agora, com poucas excepções, sem grandes resultados: o introspectivo In the Valley of Elah de Paul Haggis (8/10), que de qualquer modo até se desenrola em solo americano; Redacted (7/10) de Brian de Palma oferece uma visão conceptual e crua da realidade da guerra e dos seus efeitos sobre a psique dos soldados abandonados a si próprios; Stop-Loss (7/10) de Kimberly Pierce analisa o stress traumático dos soldados que regressam à America e a dureza de tentar agarrar-se a uma vida normal, sob uma visão feminina da testosterona descontrolada de soldados danificados emocionalmente – mas é outra visão feminina, de Kathryn Bigelow, que consegue um soberbo retrato geral e ao mesmo tempo intimista das várias dimensões subjacentes a esta guerra: desde o quotidiano no terreno, o crescente sentimento de temor, a deterioração mental de cada indíviduo, a perspectiva de regresso a casa, as perguntas que cada um tem que enfrentar pelos seus actos quer no presente quer a longo termo. Tudo isto criando ao mesmo tempo um eficiente filme de acção implacável, de emoção constante e suspense elevados ao máximo que não dão treguas ao espectador, reflexo apropriado da situação dos soldados retratados.
Bigelow tem um passado de filmes de acção-espectáculo (1991 – Point Break 5/10, 1995 – Strange Days 8/10, 2002 - K19 The Widowmaker 6/10) e está habituada a utilizar vários artifícios próprios das grandes produções de Holywood desse género de filmes, como sequências quase video-clips dobradas com música rock, slow-motions arrastados ou cortes rápidos em momentos de luta mas aqui encontra o cenário ideal para atenuar o tom “espectáculo” de forma a apropriar-se à história e atingir um equilíbrio estilístico que permite focar a atenção no lado emocional das personagens: desde a forma como perde tempo a estabelecer a geografia de cada cena, de modo a esclarecer a audiência sobre o perigo real da situação, ao invés de confundir como é típico em filmes de acção da escola Michael Bay ou Paul Greengrass, que utilizam truques visuais para desorientar o espectador, exagerando cada situação – em the Hurt Locker tudo que vemos é tratado realisticamente (exemplo: a lentidão da cena no deserto que envolve snipers), e o perigo provem essencialmente desse retrato fiel – exarcebado pela magistral fotografia que parece expor as cores à força da luz natural - e quando usa artifícios eles funcionam para acentuar a tensão, como cortes rápidos onde não força a quebra de continuidade para tornar menos claro o que está a acontecer mas de modo eficiente e transparente, ou como no fantástico super-slow motion da explosão inicial, neste caso, pausando a acção contemplativamente num momento extremo, sempre com sublimes enquadramentos que chamam a atenção para pequenos detalhes. Esta harmonia visual permite obter uma forma de thriller pensante que torna possível habitar o dia-a-dia dos soldados americanos, mais especificamente acompanhando uma unidade do esquadrão anti-explosivos, que consiste em esperar nas casernas por um alerta de bomba, sair para o local designado, que muitas vezes não é mais ele próprio uma armadilha prestes a ser detonada com o perigo de alguém estar escondido num dos prédios circundantes à espera de activar à distancia a bomba por telemóvel a qualquer altura, avaliar as condições de “trabalho” e tentar desarmar o(s) engenho(s) sem morrer, regressar à base e esperar pelo dia seguinte, numa contagem decrescente até serem substituídos que o filme anuncia com a introdução inteligente de títulos que dolorosamente colocam em perspectiva que apenas assistimos ao passar de mais um dia, como um lembrança constante que ainda nada acabou: “x days left before rotation in squad y”
O filme é estruturado à volta de uma série infindável de set-pieces ou cenas centrais que consistem em vários desafios diferentes para a unidade que acompanhamos (uma bomba num carro em contagem decrescente, outra armada à cintura de um iraquiano, etc) e o modo escolhido para retratar a história quase em tempo real, reforça a ilusão de nos colocar na pele dos soldados no campo, que funciona quer nas cenas de acção para construir tensão, com as gotas de suor a acumularem-se com o passar dos minutos em território hostil, quer nas cenas em que retratam o estado enfadonho que ocupa os soldados quando apenas podem esperar, um desespero sempre crescente aliado à dúvida da fuga para fora dali que se dilui, uma abordagem temporal que nos mostra como naquele sítio é fácil perdermos a noção do tempo que efectivamente passou. Isto é mais trabalhado numa longa cena passada no deserto, em que os soldados se descobrem encurralados num stand-off entre snipers, numa construção metódica da exaustão física e psicológica que têm que ultrapassar, permitindo-se o filme jogar com o crescente nervosismo com a passagem do tempo, um perigo constante sem tréguas que se torna recorrente para os soldados, ao mesmo tempo que se torna insuportável para o espectador.
Onde o filme realmente se distingue é na composição das personagens, retratos laborados ao longo do filme que paradoxalmente mas realisticamente apenas nos dão acesso a um vislumbre incompleto das psiques das personagens. O filme desenrola-se à volta dos 3 soldados que compõem a unidade especial e do conflito das diferentes personalidades, da excessiva testosterona que flutua sobre as suas acções na procura de afirmação individual de cada um: Eldridge (por Brian Geraghty), o mais novo, eternamente atormentado até perto do ponto de quebra total, arrastando-se através de cada dia que passa, é também o único que procura ajuda junto do psiquiatra do exército, é abalado pela fragilidade constante que sente e pela inabilidade de realmente proteger os outros dois devido à disparidade de ameaças que enfrenta, contrasta por ser o único que procura encarar a realidade através de um distanciamento emocional pouco saudável – "we’re already dead" proclama durante todo o filme, como se fosse uma inevitabilidade à espera de ser concretizada, que perdeu qualquer sentido de esperança, abandonado no fundo do poço que é o Iraque; Sanborn (por Anthony Mackie), um pragmatista focado em sobreviver no fim de mais um dia até acabar o seu inferno pessoal, como que constantemente safando-se a uma travessia de um campo de minas, prende-se aos regulamentos e normas de acção militar como base para manter alguma sanidade e justificar-se perante as acções dos outros, em rota de colisão com a desobediência despreocupada de James que põe em causa a sua segurança (e é o seu pragmatismo que dá força à ideia de se livrarem de James a certa altura de modo a facilitar a sua tarefa de sobrevivência); James (por Jeremy Renner, um semi-desconhecido até aqui mas que tem uma performance revelação, carrega o filme às suas costas e que certamente será premiado com uma nomeação para o Oscar) é quem tem a tarefa mais difícil, é quem encara o perigo constantemente de frente, a personagem âncora do filme que vem abalar o quotidiano das outras personagens e cuja caracterização é o verdadeiro achado do filme – por um lado age como se fosse invencível, mas a arrogância é uma máscara frágil para encarar a vida fora da caserna, como é espelhado na sua relação com o miúdo iraquiano que lhe procura vender dvds à porta da base e com quem ele desenvolve uma relação precária na tentativa de se ligar a alguém que espera ser inocente, na procura de uma réstia de humanidade.
James é na maior parte do filme um enigma ambulante, alguém cujas acções e motivações são difíceis de enquadrar, fruto no fundo de um tormento interno, que tem na origem a solidão do seu trabalho – alguém que desafia constantemente a morte, que tem que ter consciência que cada dia pode ser o seu último (é forçado a encarar isso de frente, ao contrário de uma pessoa normal que pode livremente ignorar isso) e que o força a avaliar o significado da sua vida, que é algo que James parece ter dificuldade em aceitar (e é aqui que a abertura do filme com a personagem de Guy Pierce, que ele vem substituir, serve para mostrar o contraste de lidar com essa situação, já que a personagem de Pierce ao mesmo tempo que está ciente da sua mortalidade valoriza o facto de ainda estar vivo, ao contrário de James, que parece querer esquecer-se disso tomando riscos desnecessários; serve também para estabelecer desde cedo que ninguém é insubstituível) – James, na sua tarefa infindável de desarmar bomba após bomba, é assim uma adaptação moderna de Sísifo, a personagem da mitologia grega condenada a uma tortura eterna, empurrando uma rocha colina acima até esta rolar para trás e ter que reiniciar de novo, uma espécie de Waiting for Godot em que a detonação é a personagem principal que nunca aparece ("Defusing for Godot"*), que provoca uma análise existencialista na procura da significância básica das acções de James e da sua vida. James é incessante na sua busca de adrenalina, por vezes quase que até suicida, e muitas vezes parece ser isso a força motriz que compele James, numa procura de confrontar os limites e sentir algo de verdadeiro na surrealismo em que parece se imergir durante a sua estadia no Iraque, a sua forma de escapar a uma tortura pessoal. Ao mesmo tempo que guarda numa caixa as recordações de cada dispositivo desarmado (“This box is full of stuff that almost killed me”), que sabe de cor o número de bombas desactivadas (ou seja, o número de vezes que enganou a morte), parece frustrado por não ser capaz de fazer mais, de ser mais do que quem é: a inabilidade de ajudar o miúdo iraquiano ou o iraquiano com um cinto de explosivos armados na sua cintura – e por consequência resignado a fazer o que pode, ou seja, a continuar essa tarefa infindável de desafiar a morte, de desarmar bomba atrás de bomba. Este facto resulta na manutenção de um nível elevado de suspense durante todo filme, que tal como em Le salaire de la peur (1953, 10/10 de H.G. Clouzot) transforma um acto perigoso numa constante, como que banalizando esse perigo, revelando a natureza das personagens sob pressão e as diferentes reacções, e como perdem perspectiva, afundando-se no momento.
Muito tem sido escrito sobre a natureza apolítica do filme, que supostamente não toma posição crítica sobre a guerra, e se isto infere a visão subjectiva de cada um, não é a minha perspectiva - o mérito de um bom filme de guerra é retratar as acções das personagens em cenários primitivos, que revelam a verdadeira natureza humana debaixo de circunstâncias extremas em que não há hipótese de fuga, não há possibilidade de acção excepto escolhas pessoais – o que se faz debaixo de um cenário de guerra é o definitivo teste de personalidade. Ora o que este filme faz é a) expor as personalidades das diferentes personagens b) testar a sua reacção a condições extremas c) mostrar o dano emocional para o futuro, como deixa de haver ponto de retorno – logo é impossível não fazer uma ligação com as motivações para a guerra retratada, no fundamento da acção de cada um (e quanto menos sentido faz, isto é: Vietname, mais difícil é aceitar o papel de cada um na destruição), quer com a influência directa da guerra e dos soldados sobre as vidas dos locais e no inferno criado (i.e. outra vez o Vietname), quer na juventude perdida de uma geração de americanos quando regressarem a casa (i.e. Vietname) – este último ponto é fundamental para o filme, para a decisão final de James, obrigando-o a repensar a sua vida no meio do tom pessimista e niilista do filme, e é inevitável não encontrar aqui uma posição crítica à absurdidade de tudo e ao mesmo tempo não ficar devastado com o buraco em que se tornou o Iraque.
Esta perspectiva existencialista é reforçada por um conjunto de cenas na parte final do filme que procuram ajudar a enquadrar as dúvidas de James, depois de uma sequência no meio do filme que funciona como uma janela aberta para o seu estado espírito, em que James e os seus dois companheiros de armas ocupam uma noite livre com uma bebedeira entorpecedora cujo único objectivo é apagar das suas memórias o seu quotidiano desprovido de razão: depois de mais uma experiencia próxima da morte, é questionado por Sanborn - “I mean, how do you do it, you know? Take the risk? You realize every time you suit up, every time we go out, it's life or death. You roll the dice, and you deal with it. You recognize that don't you?” - é aqui que reside o ponto menos forte do filme, pela ambiguidade que deixa sobre se o comportamento de James é algo complexo, fruto de reflexões profundas ou apenas algo mais básico, instintivo, ou se estamos mais uma vez perante a máscara de James: “I don't know. I guess I don't think about it”.
A segunda parte desse conjunto de cenas finais envolve as duas cenas que se desenrolam na América e que têm um poder imenso sobre todo o filme, que ensobram tudo que acabamos de ver pela forma como obrigam a contextualizar e repensar as acções de James. Regressado à América, James está completamente deslocado na rotina familiar, trôpego infeliz da liberdade civil e numa deslocação a um supermercado é confrontado com a inabalável pequenez de uma vida pacífica paralela ao inferno do Iraque, perdido na imensidade banal dos corredores. Não é pois surpreendente, e até adequado, quando na cena final o vemos outra vez no Iraque, dentro do seu fato de guerreiro, de novo a subir colina acima.
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