Cinema delinquente
São dois filmes que pertencem a um cinema diferente: a sua principal característica é uma escolha-declaração estilística de explorar os limites das convenções generalizadas no cinema, em perder a cabeça na descontextualização de todas as acções. Contra a corrente, não oferecem leituras imediatas, logo vivem e incitam o pensamento livre, uma análise demorada e a procura de simbolismos e analogias, libertando o espaço ocupado por explicações feitas para o espectador através de um ritmo mais pausado. Logo implicam uma observação muito mais subjectiva, mais dependente de uma interpretação visual do significado dos símbolos aludidos. Não têm portanto um impacto imediato, mas antes duradouro, que perdura tal como a acção nos próprios filmes, o que também implica que existam numa linha difícil entre o pretensiosismo e algo relevante, com a demasiada estilização da encenação e uma difícil leitura a exigir um envolvimento do espectador que pode não ter correspondência.
“The Limites of Control” é um filme estruturado através de várias repetições, quer visuais, quer narrativas, quer nos diálogos. Todos os planos são resultado de um estudo prévio sem espaço para a improvisação. É muito auto-referencial na medida em que não faltam contactos com outras obras de arte e de certa forma desconstrói conceitos de filmes de espionagem ou intriga em que a fútil linha narrativa se poderia inserir. Existe uma nostalgia por uma época menos óbvia, por outros ritmos, uma altura em que os fósforos ainda faziam sentido, em que como diz a personagem de Tilda Swinton havia momentos nos filmes em que nada acontece e vem à memória a sequência inicial de “Dead Man” do próprio Jarmusch. Se conceptualmente é um filme fora do espaço dos outros filmes contemporâneos, protesta também contra um pensamento único, contra o entretenimento fácil que domina a sociedade actual, com um inspirado uso de quadros e peças de música que obrigam a outro tipo de reflexões, pela celebração de diferentes línguas e culturas: a única vez que a personagem principal se parece emocionar é durante uma uma canção flamenca.
É também contra uma certa uniformização ou subjugação a uma entidade que o personagem principal parece lutar, deambulando até ao final. Se é uma história sobre um agente solitário contra o uniformismo e pensamento único, estilisticamente também teria que ser contra essa uniformização pois não é um filme como tantos outros, mas até nisso existe uma lógica perversa: não é o filme que é assim por causa da história, mas a história que é assim por causa do filme, de modo a preencher os objectivos do filme. La vida no vale nada e dois espressos, porque fazer como todos os outros não tem tanta piada.
Se “The Limites of Control” mostra-nos alguém que estando na margem da sociedade parece incumbido de uma missão para eliminar um certo imperialismo artístico, em “La Mujer Sin Cabeza” existe quase um horror na profundeza da imersão na normalidade burguesa em que a personagem principal se enterra. Aqui a encenação não passa por uma estilização estruturada (é mais livre) mas pelo magistral enquadramento constante da acção pela camâra, a tal improvisação artificial, sempre consciente da visão que tenta partilhar, sem deixar espaço para respirar: obcecada permanentemente na personagem principal, coloca a mulher no centro ou nas margens sem deixar espaço para mais nada, chegando até a obstruir ou ofuscar o que acontece fora dos limites da nossa personagem principal, reflexo da sua abstracção em relação a tudo que se passa em seu redor, exemplificado pela sua indiferença para com os empregados indígenas ou na relação com a sua família. Como na sequência de abertura do filme, do atropelamento: quase sem cortes, não abandonamos a imagem daquela mulher por um segundo para saber o que aconteceu - apenas interessa o estado daquela cabeça. Se nos outros filmes de Lucrecia Martel havia pelo menos uma linha narrativa de suporte, ou uma descoberta de novos cenários, aqui não há mais nada do que é enquadrado: tudo o resto fica esquecido, numa corajosa escolha.
A mulher sem cabeça é a mulher sem sentimentos, que deambula num estado letárgico, como que a sonhar acordada: engana o marido numa noite e é lhe indiferente o que aconteceu; pensa ter atropelado alguém na estrada mas é lhe indiferente as consequências: a única vez que chora no filme não é por tristeza ou por outro sentimento nobre, apenas porque não sente nada, vive em piloto automático. Mais que uma crítica, uma constatação da apatia vazia da personagem e da sua vertigem sonâmbula, como que presa na direcção de Martel, sem possibilidade de fuga, de futuro. Uma viagem sem retorno a um estado de abstracção emocional, através de uma abstracção formal.
The Limits of Control de Jim Jarmush, EUA 2009, 7/10
La Mujer Sin Cabeza de Lucrecia Martel , Argentina 2008, 8/10