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É portanto na selecção do cenário em que se desenrola a história e nas personagens retratadas que se pode descernir a maior intervenção directa de Antonioni, ao escolher como plano de acção do filme o ambiente em torno do cinema italiano e a sua indústria, num olhar que se revela bastante crítico e ardaz, estabelecendo efectivamente desde o príncipio Antonioni como um outsider, alguém a trabalhar fora do sistema. Clara (interpretada por Lucia Bosé) é uma jovem actriz em promissor início de carreira especialmente devido à sua beleza e disponibilidade em actuar em filmes românticos menos sérios – uma objectificação da beleza normal para a altura que Antonioni parece querer desarmar ao procurar multitudes numa personagem feminina que poderia ser simplificada apenas pelo seu aspecto (Bosé é uma antiga Miss Itália). Com a sua beleza a atrair atenções de todos os lados Clara casa-se apressadamente e sem grande escolha com um dos produtores dos seus filmes, que tomado por ciúmes determina que ela deixará de entrar em filmes “indecentes”, ciúmes magistralmente expostos pela melhor sequência do filme, em que ela à frente do noivo ensaia uma cena romântica com outro actor em que brilha a sua desinibição e que serve também para criticar o papel do realizador de aluguer desse filme, que sentado e sem poder de intervenção assiste à orquestração da cena por outro produtor, apenas interessado em filmar a cena central do filme, do beijo apaixonado entre os dois amantes - “a censura, a censura!” grita outro dos presentes à medida que a cena se desenrola. Clara é rodeada por vários homens que gravitam à sua volta, interessados na sua beleza e potencial como estrela de cinema, mas apenas dois são caracterizados a fundo pois estabelecem os pólos que dividem o seu coração: o produtor com quem casa, um homem possessivo e inseguro, de valores conservadores, que apenas deseja um papel domesticado para ela, que depois de a impedir de continuar como actriz devido à natureza dos papeis que lhe são oferecidos e numa tentativa de manter Clara menos miserável inventa uma versão de Joana D’Arc para ela (ou seja, a única possibilidade para ele é ela interpretar uma figura santa) que acaba por ser um fracasso comercial e crítico – Clara, para os outros, nunca vai deixar de ser uma cara bonita que não sabe representar, pelo menos até ao final; o outro homem representado é um diplomata de modos gentis, um diletante sentimental que explora a infelicidade do casamento de Clara para se aproximar dela, mas que apenas está interessado numa aventura com a actriz e que depois dela abandonar o casamento acaba por se afastar dela.
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Antonioni é inteligente na forma como explora as convenções do cinema italiano da altura, na forma como trabalha dentro das normas estabelecidas, numa apropriação desviante de certos princípios, subvertendo-os: a certa altura alguém diz que um filme para ter sucesso tem que ter sexo, política e religião – Antonioni é consciente e crítico desse padrão mas não deixa de ter cenas românticas ou relações ilegítimas, que adquirem um significado diferente pela consciência do que significa a sua utilização. E depois há um momento estarrecedor no filme perto do fim, quando quase de maneira subtil e que passa quase despercebido como seria hábito nos seus filmes mais conhecidos, numa única composição mostra uma imensidade de intenções: Clara, ao mesmo tempo que recebe notícias da sua carreira decadente, segura uma cópia dos girassóis de Van Gogh, que são aqui utilizados como comentário ou metáfora para uma beleza efémera, um destino inescapável – a decadência do tempo, numa advertência em relação ao compromisso final que se seguirá.
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