A Torinói ló (O Cavalo de Turim) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, Hungria 2011, 9/10
primeiro: tendo visto recentemente Werckmeister Harmonies (2000), filme anterior de Bela Tarr, é difícil não ver uma ligação com O Cavalo de Turim a partir daí. Werckmeister Harmonies é um filme muito mais expansivo, quase operático, e mesmo que tratando os mesmos temas (o eclipse da humanidade, a escuridão), declama o que tem a dizer de forma muito mais abrangente do que o minimalismo deste filme. As sinfonias de planos sequências enquadram-se num esquema narrativo mais amplo, e a tela onde Tarr trabalha apresenta mais possibilidades do que neste O Cavalo de Turim, onde tudo se reduz no plano visual (mas não temático). Tarr trabalha como se procurasse agora abreviar a forma ao básico, para tentar passar a mensagem de forma clara, por uma última vez. Em O Cavalo de Turim as alegorias são menos elaboradas, mas por serem mais directas, mais sufocantes.
segundo: é inevitável ver na rotina fatigante do filme uma metáfora, uma redução da vida moderna e do ser humano a um estado básico, quase animalesco: acordar, trabalhar, comer, dormir. O quotidiano repetido, quando despido de artifícios e reduzido ao essencial, pode ser irremediavelmente negro. Por mais que tentemos preencher os dias com distracções, estes acabam sempre por ceder à marca do tempo, como numa contagem decrescente, com esse peso insuportável por cima. Da mesma forma que criamos gaiolas para domesticar animais, acabamos por criar as próprias gaiolas onde nos sentimos confortáveis, onde conseguimos isolar-nos do resto do mundo que nos lembra o desconhecido e a passagem do tempo. Nas gaiolas - e uma delas ocupa proeminentemente um dos vários enquadramentos repetidos - podemos fechar as janelas, tentar esquecer o vento que sopra lá fora. Amanhã tentamos outra vez, talvez (das últimas palavras do filme). Mas o que o filme pretende discutir não se reduz ao minimalismo daquela casa, é muito mais abrangente do que o que é ali representado.
terceiro: Nietzsche é referido logo no inicio do filme, logo será importante analisar o filme à luz da sua matriz de pensamento. Várias teses da sua doutrina podem ser encontradas no filme, mas três em específico ganham maior relevância, dada a sua inter-relação. A noção da excepcionalidade do Homem, inerente a um aperfeiçoamento constante, opõe-se à estagnação que é recriada no filme: ao fechar-se a novas ideias e a conformar-se com o presente, o Homem está a negar o seu melhoramento pessoal, a condenar-se ao declínio. O conflito Apolo(racional)/Dionísio(impulsivo) é outra das linhas que sustentam o filme: se o racional dominar e o Homem se mantiver apenas apoiado nas estruturas que lhe permitem tolerar a rotina, acabará limitado apenas ao que conhece; apenas cedendo ao instinto impulsivo alcançará a transcendência que lhe permitirá atingir novas experiências e investigar o desconhecido, de forma a escapar da gaiola. Este parece ser o papel da personagem que entra na casa a meio do filme, para agitar o status quo. Finalmente, é possível também associar o conceito de niilismo passivo às personagens daquela casa: uma perda completa de esperança, uma resignação e negação à vida - os ciganos que visitam a casa constituirão, por oposição e pelo seu comportamento, um exemplo de niilistas activos. Apesar da estética militante, o filme funciona porque cria uma percepção geral de que algo vai mal, sendo necessário uma ideologia nova para superar o que está errado. E aí será possível ao espectador colocar a ideologia que lhe está mais próxima como solução. Um antídoto a este filme será Stellet Lichte (Luz Silenciosa, 2007) de Carlos Reygadas: é um filme inundado por luz. Um retrato de uma comunidade rural de ritmo igualmente hipnótico, oferece como alternativa a contemplação e a aceitação pacífica da condição humana, onde O Cavalo de Turim apresenta inquietude e tenebrosidade.
quarto: é inevitável, este é um texto estruturado. Que, passe o paradoxo, tenta racionalizar uma experiência primariamente sensorial. A tal personagem que aparece a meio do filme, uma espécie de fantasma de Nietzsche, fala por ele, que estaria entretanto incapacitado. O que terá visto Nietzsche naquele cavalo que o levou a intervir, que significado terá encontrado naquela cena miserável em que o pior do comportamento humano foi exposto? Terá tido perdido a esperança, momentos antes de cair num estupor, tido um vislumbre do que seria a humanidade se ignorasse os seus avisos, a confirmação de que o seu trabalho teria sido em vão? O cavalo seria então a única coisa que valia a pena salvar? Béla Tarr parece acreditar que sim, se na recusa do cavalo em trabalhar e em alimentar-se encontrar-mos uma aniquilação incontornável, inelutável. Tal como na escuridão, tal como no silêncio. Assim é a sua despedida, uma elegia.
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