Under the Skin de Jonathan Glazer, GB/EUA 2013, 9/10
este texto revela detalhes importantes do primeiro acto do filme
Under the Skin (Debaixo da Pele, 2013) é um filme sobre uma alienígena, um organismo predador à procura de homens para matar, mas é o próprio filme que parece ser extra-terrestre. Jonathan Glazer apresenta-nos um filme desprovido dos elementos básicos, onde a narrativa, diálogo, construção de personagens e contexto são deliberadamente desconstruídos, postos de lado, em favor da criação de um ambiente fantasmagórico e realista, transcendental e agreste, para deixar o espectador a flutuar no vazio. Scarlett Johansson dá corpo a um extra-terrestre, que percorre as ruas de Glasgow ao anoitecer, numa carrinha em busca de homens para levar para casa - a história é minimal, porque o que interessa é a forma. A sequência enigmática que inicia o filme dá o mote para a falta de compreensão em relação ao que está a acontecer, e o objectivo não será criar uma história a partir do que vemos, mas sim deixar-nos submergir pelo pulsar do filme. Under the Skin começa com uma série de imagens plásticas, de raios de luz, que dão lugar a circunferências e depois a um globo ocular, que por sua vez dá lugar a um corpo filmado apenas contra uma luz branca. São imagens conceptuais, que contrastam uma originalidade e beleza estonteante com actos horríficos, que nos remetem para o imaginário esterilizado de 2001: A Space Odyssey, mas são as sequências filmadas nas ruas, e que ocupam a maior parte do tempo do filme, que mais surpreendem.
Parte da singularidade de Under the Skin provém da forma como Glazer procura retratar o quotidiano das ruas, mimetizando a forma voyeurista como a personagem de Johansson tenta estudar o comportamento humano. Glazer recorreu a filmagens reais, de câmara escondida, em que não actores eram filmados sem o saber, quando eram interpelados pela actriz. Glazer desmonta assim a natureza sexual predatória do homem, na forma como este fica agora sujeito ao escrutínio do espectador, quando confrontado com a actriz infiltrada como substituto do espectador. A natureza voyeurista do homem à caça fica exposta, indefeso perante a natureza predatória da personagem de Johansson, e acima de tudo da câmara: the hunter gets captured by the game. Esta perversão de papéis é brilhantemente exemplificada nas sequências em que Johansson conduz as vítimas ao seu covil, uma casa transformada em teia de aranha. Assim que passamos a porta, entramos num cenário artificial de completa escuridão, excepto o corpo iluminado de Johansson, que começa a despir-se, e dos homens que a seguem, que imitando-a, não percebem que o chão que pisam transforma-se lentamente num mar de água translúcida mas negra como areia movediça, que os aprisiona. Quando mais tarde uma das vítimas encontra o corpo de outro a flutuar como um fantasma, neste pesadelo subaquático sem luz, o que se segue é um estonteante arrepio, é como descobrir uma nova fobia que desconhecíamos existir.
A personagem de Johansson revela-se, assim, uma louva-deus, como um remoinho lento de fatalismo que vai crescendo, impossível de parar, de escapar. No entanto, duas sequências alteram momentaneamente este caminho, confundem o que vimos até aí: uma cena inesquecível na praia, onde o comportamento da alienígena atinge tais níveis de desumanidade que a tornam próxima da crueldade humana; na outra sequência, quando um dos homens que Johansson captura não é um predador mas um proscrito da sociedade, alguém que caminha escondido nas sombras, alguém que não quer acreditar que seja possível que outra pessoa se mostre interessada nele. Este encontro funcionará como um catalisador dentro do filme, e sem nunca esquecer que a alienígena age como um autómato, um organismo-máquina mas com uma pele que nos leva a identificar sentimentos humanos ao seu comportamento, é ao tentarmos perceber se esta entidade é capaz de sentir que acabamos por nos sentar na carrinha de Johansson, apanhados a tentar observar, presos pelo jogo do filme. Há ainda outro que factor contribui para um sentimento de inquietude permanente ao longo do filme: o som. Entre prolongados silêncios, destaca-se o papel da música ambiente, uma arrepiante advertência que parece surgir no lugar da falta do batimento do coração mecânico e estranho da alienígena - a música dos créditos iniciais atinge níveis de vertigo.
Mais do que um filme de ficção científica, Under The Skin é uma parábola sobre sexualidade, e é no derradeiro filme de Luis Buñuel que encontramos um maior paralelo. A reflexão é evocada em Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto do Desejo, 1977), onde Buñuel explora o poder que as mulheres exercem sobre os homens através da sua sexualidade, onde surgem como objecto proibido, ao mesmo tempo que frágeis, e a quem pertence o poder de escolha. Nesse filme, Buñuel retrata o homem como algo ridículo que se sujeita a tudo no seu comportamento predatório - no caso, um homem demasiado rico e mimado, que tem tudo, excepto o que realmente quer, a aceitação de uma mulher. Mas a mulher era também criticada, igualmente sexo frágil, pela forma como parecia alheia às consequências das suas escolhas, e aos comportamentos que recompensava. O filme acaba literalmente com uma explosão, um atentado ao status quo que tende a persistir. Aqui, ao contrário do filme de Buñuel, a “mulher” está bem ciente do seu poder e das consequências das suas decisões, logo escolhe de forma a satisfazer o próprio desejo. Rejeitando o fatalismo do filme de Buñuel de sujeitar-se a uma ideia de submissão pré-destinada, a “mulher” serve-se agora da objetificação de que é alvo como arma de combate. Em Under the Skin, a perversão é que o objecto do desejo torna-se tangível, finalmente acessível mas com consequências fatais: o homem transforma-se de predator para objecto de caça, e o poder passa para o outro lado.