Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967) de Jean-Pierre Melville
Um samurai perseguido é como um animal ferido: perigoso, sem nada a perder.
Estilo, estilo e mais estilo: este é o mote de Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967), de Jean-Pierre Melville. Porém, não é um exercício vazio, apenas interessado no seu aspecto, mas antes um cuidadoso e elaborado estudo da solidão de um criminoso encostado às cordas. Esta história de um samurai moderno é um filme sobre códigos de honra e comportamentos, que segue códigos de linguagem, que servem aqui para dar corpo a um thriller surpreendentemente minimalista e existencialista.
A primeira cena ajuda a perceber desde logo o plano de intenções de Melville. Num quarto frugal e estéril, vazio de acessórios e quase de vida, um homem está prostrado de costas numa cama a lançar fumo de um cigarro para o tecto, como se estivesse morto desde o início, enquanto passam os créditos e enquanto a chuva bate contra duas janelas, que mais do que apresentarem um portal para o mundo exterior, ofuscam tudo o que exista para além deste quarto-jaula. Numa composição a duas dimensões, que parece imitar um quadro ou uma tira de uma banda desenhada, a ausência de profundidade é substituída passados alguns segundos por um movimento vertigo da câmara, que sinaliza o princípio de uma viagem pelo estado psicológico do seu protagonista. No centro do filme está a personagem interpretada por Alan Delon, que empresta frieza e um olhar sem expressão a este criminoso introvertido, sempre de impecável gabardina e chapéu, cuja economia de palavras e gestos garantem que quando faz uso das mesmas, o faz com uma premeditação cuidada.
Este samurai é um assassino a contrato, que vive segundo um conjunto próprio de regras, uma adaptação do estilo de vida austero dos míticos guerreiros japoneses, dedicados acima de tudo à execução da sua missão, e que aqui é reflectido numa preparação cuidadosa a todos os níveis, num abandonar das coisas materiais, e especialmente no abandonar das coisas sentimentais, como se isso fosse o preço a pagar pela sua destreza. Esta personagem de nome de inspiração americana, Jef Costello, está envolta em mistério permanente, e Melville filma-o por entre ruas escuras e dias de chuva, em quartos e corredores mal iluminados, onde as sombras e o fumo parecem conter movimentos próprios. Tal é o compromisso com uma estética de inspiração noir e os seus tons sombrios e frios, que o filme, apesar de ser a cores, parece por vezes mais próximo de um filme a preto e branco – não surpreende que o próprio Melville tenha dito que “o meu sonho é fazer um filme a cores em preto e branco, onde só há um detalhe minúsculo que nos relembra que estamos realmente a ver um filme a cores”. Mas acima de tudo, Melville filma os gestos, o cuidado ritualístico e procedural (imitado mais tarde pela polícia) com que a personagem prepara o seu ataque, como as luvas brancas que calça antes de cada assassinato, e a forma como utiliza o silêncio como uma arma de forma a não ser detectado.
O que faz um criminoso que escapa a um exaustivo interrogatório da polícia, depois de planear cuidadosamente não um mas dois alibis de forma a garantir que sairá incólume da investigação policial? Regressa ao local do crime, obviamente. Porque nesta primeira “acção” do filme, por todo o planeamento que Jef lhe dedica, há um imprevisto, um desvio que segue os parâmetros do filme noir: é o aparecimento da femme-fatale, neste caso na pior altura, depois de Jef ter morto o seu primeiro alvo. Ao sair do escritório da sua vítima encontra uma rapariga no corredor, e se esta num primeiro campo não o denúncia nem chama por ajuda, no contra-campo seguinte Jef não a elimina, apesar de ser testemunha do crime. Na perdição de Jef por ela começa a ficar claro a dupla leitura do filme, que segundo o próprio Melville pode ser visto como um retrato de solidão total, ou a visão de um homem a sofrer um colapso mental. Tal como em relação a uma outra mulher capaz de fazer tudo por Jef, que espera por ele à noite, este parece incapaz de quebrar a barreira do platónico, paralisado por essa hipótese, como se tivesse medo de magoar os dois. No quarto de Jef há um pequeno pássaro enclausurado numa jaula, que a certo começa a perder o norte, e a atirar-se contra as grades: não é o pássaro que é uma imagem de Jef, mas Jef que torna-se nesse pássaro, sem lugar para fugir.
Considerado como o realizador francês mais americano, não surpreende que um dos livros sobre Melville tenha como subtítulo “An American In Paris”. Rui Nogueira (um português emigrado desde muito novo em França, que teve a honra de entrevistar Melville, além de outros nomes como Hitchcock, Howard Hawks, Nicholas Ray, Orson Welles ou Raoul Walsh – vale a pena o desvio para ler esta entrevista) no seu livro Melville on Melville, compara o francês a Hitchcock, afirmando que “Melville foi um grande realizador americano perdido na França”. Uma citação que aparece durante a primeira cena do filme ajuda a estabelecer a condição solitária da personagem: “Não há maior solidão que a do samurai, excepto talvez a do tigre na selva”, retirada do livro Bushido, o código de conduta para os Samurai, mesmo que Melville tenha admitido posteriormente ter inventado a frase. Esta “invenção” de Melville é indicativa, no sentido em que demonstra uma dimensão auto-consciente do seu cinema, auto-referenciadora dos elementos do cinema. Além da manipulação da profundidade de campo logo na cena inicial, por toda a conformidade com um esquema visual uniforme que vai construindo ao longo do filme, Melville deixa por vezes que o filme perca momentaneamente esse controlo. Quando Jef encontra-se com o homem que lhe encomendou o assassinato, Melville filma o embate como se tratasse de um western num cenário citadino, e assim que as armas aparecem, a câmara foge, como se fosse um comboio a passar ao longe. Noutra altura, quando um inimigo de Jef saca de uma arma este tira as mãos dos bolsos e vemos as luvas brancas calçadas mas sem nenhuma arma nas mãos: num rápido corte surge uma pistola na sua mão quase que por magia. Na entrevista a Rui Nogueira, Melville refere que as luvas brancas são “luvas de editor”: quando aparecem, uma personagem é eliminada.