março 04, 2009

Doubt

Doubt - 6/10
de John Patrick Shanley (adaptado da sua peça de teatro)
com Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams

Confesso que tinha as minhas dúvidas em relação a Doubt: um tema desconfortável (a hipótese de um padre abusar de um rapaz acólito), uma promessa de um tom moralista e passível de sermões próprios do submundo católico onde se desenrola a acção, aliado a uma indeterminação intencional que procuraria deixar-nos no escuro sobre o que de verdade acontece, determinado em espalhar a dúvida mas sem uma resolução – mas o filme acaba por se centrar antes nas vidas de duas freiras, o seu dia-a-dia (uma rotina eficazmente retratada) numa escola privada católica e a sua relação com o padre da paróquia (que obviamente, tem que ter uma posição hierárquica superior para complicar as coisas) e no final a dúvida do título não é apenas referência a um final aberto mas também/antes ligado aos príncipios morais de cada personagem, as suas acções e motivações perante o que pensam ver e principalmente o que acreditam ser a sua fé.


Estilisticamente o filme é bastante conservador, não apresentando desvios em relação a um filme de estúdio Hollywood, apesar da tentativa de utilizar algumas vezes um dutch angle (*) para atingir maior dramatismo. A origem teatral do material é evidente, mas não de uma forma suficiente para que distraía do conteúdo total do filme ou prejudicial para o ritmo a que evoluem as cenas. É especialmente patente na forma como existem 3/4 cenas muito fortes e centrais que definem a história, diálogos-debates de cerca de 10 minutos entre personagens em que as palavras representam tudo e tornam irrelevantes qualquer cenário ou formalismo - o primeiro confronto entre as freiras e o padre, o confronto de Meryl Streep com a mãe do rapaz, a conversa entre Seymour Hoffman e Amy Adams no pátio, o confronto final entre Streep e Hoffman (dois monstros actuais da representação), completado por pequenos momentos-cenas que revelam o quotidiano mas que funcionam também para estabelecer traços de cada personagem, como a fragilidade da freira de Amy Adams na sala de aula (mais uma excelente performance desta actriz, depois de Junebug), a autoridade de Streep na relação com os alunos e durante os jantares com as outras freiras, a jovialidade do padre com os outros padres nos seus jantares e na sua relação com os alunos e é claro os 2 sermões – a centralidade moral do filme (dúvida e intolerância) - vinhetas que ajudam a compor o filme.

Existe um paradigma sobre a fé no filme que é abordado de modo inteligente através de ambiguidades no discurso religioso – fé, quer religiosa (a última frase de Streep no filme), quer das acções das personagens - Streep confronta o padre, dizendo-lhe que apesar de não ter provas concretas acredita cegamente e sem quaisquer dúvidas que ele é culpado de ter feito algo, algo que deixa o padre baralhado, quase perplexo perante tal lógica. Mas não é uma das virtudes e/ou principios da fé o acreditar cegamente em algo, sem provas e ilogicamente, sendo isso uma prova da fé de cada um, crença que é central na vida do padre de Hoffman? (**)
Diz a personagem de Streep que "In the pursuit of wrongdoing, one steps away from God. Of course, there is a price." Ao procurar condenar o padre e proteger as suas alegadas vítimas, a freira estará a agir de modo menos correcto (stepping away from God) uma vez que está a agir sem provas definitivas, baseada numa intuição – e o preço por agir assim é a dúvida na sua crença, uma vez que o seu Deus não aprovaria essa conduta, mas não estará por outro lado mais perto de Deus ao agir cegamente?

(*) The Death of the Dutch Angle
(**) Richard Dawkins in The God Delusion:
"List of religious memes (...)
- Belief in God is a supreme virtue. If you find your belief wavering, work hard at restoring it, and beg God to help your unbelief
- Faith (belief without evidence) is a virtue. The more your beliefs defy the evidence, the more virtuous you are"

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