Michael Mann, 2009 – 6/10
Se State of Play é todo construcção e pouca encenação, em Public Enemies a escolha de abordagem visual tem primazia sobre o resto e o filme entra logo para o meio da acção, com a primeira fuga da prisão, sem grande tempo para construcção de personagens e ambiente. O apurado sentido de encenação de Mann é evidente através de duas perspectivas que pontuam o filme: a escolha de filmar em HD e a permanente opção de filmar com a câmara ao ombro, seguindo de perto as personagens. O estilo HD contrasta com o clássico filme de período em que se poderia enquadrar o filme e é inovador pela forma como não estamos habituados a ver 1930 através de uma câmara móvel e iluminação improvisada, com destaque particular para as cenas nocturnas em que o granulado e ligeira falta de nítidez é mais notório, evidente também no menor tratamento e aspereza da qualidade de imagem, que acaba por resultar em imagens com um esplendor único. A opção por quebrar com o classicismo que seria de esperar num filme de época de gansters escolhendo a câmara handheld é a que tem maior significância e mostra uma opção directa do realizador, com movimentos virtuosos da câmara vagabunda que focam a atenção do espectador para essa encenação. Permite obter fabulosas sequências construídas, com destaque para a fuga inicial em que alguém fica para trás por ter sido baleado e agarra-se ao carro numa tentativa desesperada de escapar, com o plano focado na face da personagem enquanto o pavimento vai passando por trás ou a cena que se desenrola no motel no meio dos bosques em que todo o virtuosismo da encenação sublinha a surrealidade do tiroteio que se desenrola durante longos minutos completamente imerso em caos e confusão, não dando hipótese de distanciamento ao espectador. Mann é habil em construir tensão a partir do nada e diverte-se com isso: depois de Dillinger ser confinado a uma prisão de segurança máxima vemos o exterior da prisão rodeado do exército e suas metralhadoras e é impossível não nos rirmos dado o exagero do aparato e a impossibidade da inevitável fuga de tal sítio; depois mostra-nos passo a passo todas as barreiras de segurança criadas até finalmente chegarmos a Dillinger quase desaparecido no interior dos muros da prisão; de seguida vemos Dillinger a atravessar essas mesmas barreiras uma por uma numa sequência em que a câmara o segue sem parar.
Por outro lado, devido a todo este ênfase do lado visual a caracterização das personagens acaba por ser algo secundário, que resulta em retratos pouco desenvolvidos, sem nunca explorar realmente a complexidade e motivações do conjunto de personagens históricas fascinantes mas que parecem apenas peões na acção do filme sem ter o seu espaço próprio para desenvolverem uma identidade própria. Não existe uma tentativa clara de procurar analisar a psicologia de Dillinger e esta falta de atenção é mais evidenciada nas personagens secundárias: desde os inúmeros fora-da-lei que se confundem uns com os outros (Pretty Boy Floyd, Harry 'Pete' Pierpont, John 'Red' Hamilton, Homer Van Meter são apenas peças utilizadas para encher o cenário), à personagem de Edgar Hoover e especialmente na personagem interpretada por Christian Bale, um retrato uni-dimensional que não permite ao actor explorar o seu talento e que não deixa realmente criar qualquer laço afectiva com as personagens uma vez que não há investimento emocional, por mais perto que a câmara esteja das personagens.
Mesmo assim existem algumas referências à popularidade dos fora-da-lei de Public Enemies e ao seu estatuto de celebridades precoces, figuras admiradas na altura pela maioria da população pela sua destreza-desobediência e acções directas contra os bancos num período (anos 1930) de recessão grave que poderá constituir um comentário social dado o paralelismo com o momento actual – de facto é impossível em 2009 assistir à reprodução de um período que representa um imaginário distante de grave situação social sem procurar quer semelhanças quer diferenças da perpepção e reacção do público em geral.
Se existe alguma validade e até fascínio de uma abordagem cinematografica puramente cénica, em que o aspecto visual se sobrepõe a tudo o resto, ou seja, a verdade através do poder da imagem independente de qualquer história ou personagens, esse desígnio perde algo com a adpoção de convencionalismos a que o filme recorre para avançar a narrativa, como a exposição da história através da personagem de Edgar Hoover e na relação amorosa entre Dillinger e a sua amante (interpretada por Marion Cotillard). A verdade é que o filme funciona melhor nos momentos de acção pura em que o contexto é irrelevante, ou seja onde nada mais interessa além do presente: o tal tiroteio no meio dos bosques ou a cena em que agentes do FBI tentam infiltrar uma casa onde suspeitam estar escondido um dos foragidos – momentos de construcção lenta de tensão em que a imagem se sobrepõe a tudo o resto. É uma intenção que Mann já tinha explorado em Miami Vice (5/10), o domínio da imagem e estilo sobre a construcção de personagens ou eventos, mas que sofre com o carácter vazio e inócuo do retrato das personagens.