setembro 18, 2009

Public Enemies

Michael Mann, 2009 – 6/10


Se State of Play é todo construcção e pouca encenação, em Public Enemies a escolha de abordagem visual tem primazia sobre o resto e o filme entra logo para o meio da acção, com a primeira fuga da prisão, sem grande tempo para construcção de personagens e ambiente. O apurado sentido de encenação de Mann é evidente através de duas perspectivas que pontuam o filme: a escolha de filmar em HD e a permanente opção de filmar com a câmara ao ombro, seguindo de perto as personagens. O estilo HD contrasta com o clássico filme de período em que se poderia enquadrar o filme e é inovador pela forma como não estamos habituados a ver 1930 através de uma câmara móvel e iluminação improvisada, com destaque particular para as cenas nocturnas em que o granulado e ligeira falta de nítidez é mais notório, evidente também no  menor tratamento e aspereza da qualidade de imagem, que acaba por resultar em imagens com um esplendor único. A opção por quebrar com o classicismo que seria de esperar num filme de época de gansters escolhendo a câmara handheld é a que tem maior significância e mostra uma opção directa do realizador, com movimentos virtuosos da câmara vagabunda que focam a atenção do espectador para essa encenação. Permite obter fabulosas sequências construídas, com destaque para a fuga inicial em que alguém fica para trás por ter sido baleado e agarra-se ao carro numa tentativa desesperada de escapar, com o plano focado na face da personagem enquanto o pavimento vai passando por trás ou a cena que se desenrola no motel no meio dos bosques em que todo o virtuosismo da encenação sublinha a surrealidade do tiroteio que se desenrola durante longos minutos completamente imerso em caos e confusão, não dando hipótese de distanciamento ao espectador. Mann é habil em construir tensão a partir do nada e diverte-se com isso: depois de Dillinger ser confinado a uma prisão de segurança máxima vemos o exterior da prisão rodeado do exército e suas metralhadoras e é impossível não nos rirmos dado o exagero do aparato e a impossibidade da inevitável fuga de tal sítio; depois mostra-nos passo a passo todas as barreiras de segurança criadas até finalmente chegarmos a Dillinger quase desaparecido no interior dos muros da prisão; de seguida vemos Dillinger a atravessar essas mesmas barreiras uma por uma numa sequência em que a câmara o segue sem parar.

Por outro lado, devido a todo este ênfase do lado visual a caracterização das personagens acaba por ser algo secundário, que resulta em retratos pouco desenvolvidos, sem nunca explorar realmente a complexidade e motivações do conjunto de personagens históricas fascinantes mas que parecem apenas peões na acção do filme sem ter o seu espaço próprio para desenvolverem uma identidade própria. Não existe uma tentativa clara de procurar analisar a psicologia de Dillinger e esta falta de atenção é mais evidenciada nas personagens secundárias: desde os inúmeros fora-da-lei que se confundem uns com os outros (Pretty Boy Floyd, Harry 'Pete' Pierpont, John 'Red' Hamilton, Homer Van Meter são apenas peças utilizadas para encher o cenário), à personagem de Edgar Hoover e especialmente na personagem interpretada por Christian Bale, um retrato uni-dimensional que não permite ao actor explorar o seu talento e que não deixa realmente criar qualquer laço afectiva com as personagens uma vez que não há investimento emocional, por mais perto que a câmara esteja das personagens. 


Mesmo assim existem algumas referências à popularidade dos fora-da-lei de Public Enemies e ao seu estatuto de celebridades precoces, figuras admiradas na altura pela maioria da população pela sua destreza-desobediência e acções directas contra os bancos num período (anos 1930) de recessão grave que poderá constituir um comentário social dado o paralelismo com o momento actual – de facto é impossível em 2009 assistir à reprodução de um período que representa um imaginário distante de grave situação social sem procurar quer semelhanças quer diferenças da perpepção e reacção do público em geral.

Se existe alguma validade e até fascínio de uma abordagem cinematografica puramente cénica, em que o aspecto visual se sobrepõe a tudo o resto, ou seja, a verdade através do poder da imagem independente de qualquer história ou personagens, esse desígnio perde algo com a adpoção de convencionalismos a que o filme recorre para avançar a narrativa, como a exposição da história através da personagem de Edgar Hoover e na relação amorosa entre Dillinger e a sua amante (interpretada por Marion Cotillard). A verdade é que o filme funciona melhor nos momentos de acção pura em que o contexto é irrelevante, ou seja onde nada mais interessa além do presente: o tal tiroteio no meio dos bosques ou a cena em que agentes do FBI tentam infiltrar uma casa onde suspeitam  estar escondido um dos foragidos – momentos de construcção lenta de tensão em que a imagem se sobrepõe a tudo o resto. É uma intenção que Mann já tinha explorado em Miami Vice (5/10), o domínio da imagem e estilo sobre a construcção de personagens ou eventos, mas que sofre com o carácter vazio e inócuo do retrato das personagens. 

setembro 17, 2009

State of Play

Kevin Macdonald, 2009 – 7/10


Se em Michael Clayton (7/10) Tony Gilroy tinha já abordado o tema da ganância corporativista e dos seus tentáculos pela perspectiva dos círculos de advogados, agora é a vez de Kevin McDonald (depois do Last King of Scotland - 5/10) explorar as ligações subterrâneas de corporações como a Blackwater/Halliburton à política americana sob uma perspectiva jornalística, com a ajuda de Gilroy no argumento. Aqui não há grandes declarações visuais ou escolhas inusitadas na direcção da câmara, pelo contrário, a encenação ocupa um lugar secundário de forma a enfatizar a importância da história apoiada numa cuidadosa preparação e descrição do cenário e personagens, permitindo-se tempo para caracterizar sem muita pressa a cidade chuvosa e escura onde se desenrola a acção com planos do metro de Washington e uma refeição no Obama-famoso Ben’s Chili Bowl, caracterização que passa também pelo lado físico da interpretação de Russel Crowe (num dos seus papeis mais genuínos), um repórter com corte de cabelo e sacola hippie e alguns quilos a mais, cujo pequeno-almoço que consiste em snacks é consumido ao volante do seu velhinho Saab para algum compromisso para que já estará atrasado, passando pela descrição do ambiente e funcionamento da redacção de um jornal sério e tradicional (e por consequência em conflito com as novas tecnologias), pela secretária atulhada de livros e cadernos de Crowe, e também pela sua relação com os seus colegas e a sua reputação e habilidade de conseguir a história. Existem vários momentos que adicionam a esta composição do ambiente, como a jornalista que tem que acordar a meio da noite para ir à esquadra e o polícia que janta à pressa no intervalo do seu turno que a ajuda (utilização de actos triviais para estabelecer contexto), a introdução de uma personagem sem-abrigo, ou a discussão entre editores e jornalistas sobre o rumo e pesquisa da história, a relação de Crowe com o polícia local interpretado pelo impecável Harry Lennix, ou a visão interna de uma reunião entre a direcção do jornal e a polícia devido à retenção pelo jornal de provas cruciais, que envolve questões sobre a ética jornalística que são exploradas não só nesta instância mas na generalidade da forma como Crowe procura obter informação e fontes sobre a história (evocando All The Presiden’ts Men – 8/10), questão moral abordada também pela relação entre Crowe e o político que está no centro de toda a polémica, seu amigo de longa data (Ben Affleck, adequado ao jovem político bem-parecido e em ascensão). 

É um bom documento de intriga política que mantém um ar tenso de paránoia enriquecida pelos testemunhos de pessoas envolvidas nas práticas da empresa suspeita e pessoas ligadas aos trâmites das negociações e lobbying próprios dos círculos de Washington, constitui um bom aviso-denúncia dos perigos bem fundamentados da intromissão de interesses corporativistas na esfera política e do necessário debate que exulta. É também uma boa reflexão e documentação do trabalho de investigação jornalística (já tinha sido o melhor de Frost/Nixon - 5/10), de um glamour perdido de um jornalismo à antiga (responsável) em confronto com necessidades económicas actuais. É entretenimento apelativo pela credibilidade da conspiração utilizada e de certa forma interessante pelos pontos que toca, e no seu todo é mais do que o veículo comercial que seria de esperar para uma produção de Hollywood. Infelizmente no final o lado político passa para segundo plano subsituído por maior ênfase do lado pessoal da história num twist a mais que diminui a força das conclusões morais do filme, mas que é compensado pelos curiosos créditos finais e por um elenco forte (Helen Mirren, Rachel Adams, Robin Wright Penn, Jason Bateman).