da
lista de filmes estreados em Portugal em 2009,
menção honrosa (documentário):
menção honrosa:
Tetro - Francis Ford Coppola - EUA/Argentina
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A solidão de um pode ser a solidão de dois. Com sangue frio se aquece o coração dos dois personagens principais, uma improvável aliança entre um tímido rapaz com problemas com os colegas na escola e uma rapariga que só sai de casa à noite, que vivem na escuridão do isolamento. Com sobriedade no ritmo e paisagens fantasmagóricas, Alfredson cria suspense de cortar a respiração para desviar o olhar e filmar o periférico com contenção quando é necessário, no que é também uma fantasia de vingança. Prova de que menos pode ser mais.

Depois de La Cienaga e La Nina Santa, Martel mergulha sem rede de segurança no marasmo emocional desta mulher perdida, recorrendo apenas a magistrais enquadramentos que expõem todo o horror do vazio da normalidade burguesa. Um tremendo retrato acusador do estado das coisas, numa vertigem sonâmbula que acompanha uma letárgica María Onetto até ao precipício. Martel atinge um estado notável de abstracção que nos deixa com quase nada no fim.

Mesmo tendo vários elementos comuns a outros filmes de Tarantino, como os longos diálogos com referências culturais obscuras (neste caso a G.W. Pabst e H.G. Clouzot), é um registo diferente para Tarantino esta obra de época de escapismo fantasioso. Menos interessado em cenas de violência aleatória (mas não totalmente), dedica-se à composição cuidada de personagens utilizando pausas para criar suspense recorrendo a um ritmo menos frenético mas mais operático, arrastando cenas até ao seu limite, evocando da melhor maneira os quadros de Sergio Leone. Repleto de set-pieces memoráveis e demonstrando uma fé literária no poder do cinema, é um filme composto por pequenos grandes momentos.
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É o primeiro filme de Zonca depois do íntimissimo “
La vie rêvée des anges” de 1998 e se à primeira vista parece ser desde o ínicio outro estudo subjectivo e pessoal de uma personagem perdida no seu mundo próprio de depressão, uma alcoólica desamparada neste caso, interpretada por Tilda Swinton num verdadeiro tour de force, é surpreendente como o subjectivismo se transforma num pesadelo de decisões duvidosas por parte de alguém afundado no seu descalabro enquanto tudo desabafa à sua volta para manter um elevado nível de suspense – tudo pode acontecer a dado momento, a qualquer elipse – tensão que acompanha a passagem de um estudo de uma situação delicada para um estado extremado e emocionalmente caótico, em que a redenção depende da dura rendição aos factos, numa perversão de uma tragédia shakespeariana.
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No último filme como actor Eastwood atinge a reversão final das personagens proscritas dos Westerns ou reaccionárias de Dirty Harry, uma evolução mimetizada na viagem da personagem de Gran Torino e que já vinha a marcar as suas últimas obras como realizador (sendo Million Dollar Baby o melhor exemplo). Sempre solitário e contudo desconfiado das normas sociais, o protagonista é obrigado a re-examinar-se por um confronto menos óbvio em relação aos que está habituado a lutar: é forçado a abandonar a paz do seu isolamento quando a desordem alheia lhe bate à porta e acaba por criar uma relação com dois jovens irmãos vizinhos, identificando-se com os seus problemas de desajustamento social. Contra estereótipos e pressupostos fáceis o filme é resolvido num último surpreendente gesto carregado de simbolismo como acto final de uma carreira, um elogio à compaixão e ao valor de uma atitude desafiadora contra o estado das coisas, sem esquecer que nunca é tarde demais para o fazer.
5.
Afterschool - Antonio Campos - EUA -
trailer
Esta primeira obra de um realizador de 26 anos é porventura o filme mais desanimador de todos de 2009, pela brutalidade com que estabelece dois factos, possivelmente interligados: a) face à mescla de estilos e referências utilizadas pelo jovem realizador (Van Sant, Larry Clark, Haneke), ficamos frente a frente com a pergunta: será que estilisticamente já foi tudo estabelecido e resta apenas a hipótese de apropriação no futuro? b) a indiferença quase aceitação de uma apática indolência moral, de uma perda de esperança e conformismo com uma canibilização sentimental é o futuro para uma geração derrotada de início, confinada entre o youtube e anti-depressivos? Campos explora a ligação entre os dois temas pelo modo como mostra o seu desafecto cénico e constrangimento pelas personagens entregues à sua própria sorte, numa obra cínica, perturbadora e provocadora.
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Com um ínicio estarrecedor, recorrendo ao hiper-realismo para acompanhar a desorientação na introdução do jovem protagonista a uma espiral descendente de loucura, numa composição claustrofóbica que não deixa espaço para o espectador desviar o olhar, Tahar Rahim é assombroso numa viagem de ida (e volta) aos confins da abstracção emocional como meio de sobrevivência. Com a perda da liberdade física compromete-se a moral neste conto de ardência lenta, em que a redenção está sempre presa por um fio (da navalha) em espantosas sequências quase de carácter mitológico, em que o formalismo se desvia do realismo para sublinhar a aura singular da ascensão do inferno do protagonista desta história transformada por momentos em fábula.
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Um corpo preso num fato, um soldado preso num trabalho, um homem encurralado na única forma que tem de fazer alguma diferença, numa tortuosa série infindável de desafios, entorpecido pela procura de uma fuga do seu purgatório. Bigelow sempre filmou acção como poucos mas sabe que é no espaço que dá às personagens para mostrarem a sua complexidade que fica a ganhar. Se a procura do perigo é forma do protagonista sentir algo de real, é a sua derradeira dessensibilização à realidade que o conduz à anestesia emocional e que o condena, sublimemente exemplificado por uma cena final na América que muda todo o tom do filme, contextualizando tudo o que vimos antes e o amargo que vem a seguir.

Um homem preso num corpo, à procura de liberdade, sempre. Se Che é composto por duas partes que funcionam com uma identidade própria, e "The Argentine" é a introdução que define as razões e o plano ideológico mas também muito mais que isso (filme de aventura desconstrutivo da Cuba de Batista), é com "Guerrila" que Soderbergh define a sua marca artística e se atira para a selva sul-americana lado a lado com Che, como que lhe confiando a sua vida num acto de fé. É no entanto quando se considera as duas partes como um todo que se descobre um verdadeiro épico sufocante na sua escala e entrega à solidão de Che, um homem encontrado e perdido na guerra, trágicamente incapaz de apatia e resignação, através de um filme-poema de silêncios e respirações malsofridas. Passamos o filme colados a Benicio del Toro desaparecido em Che, numa procura de descodificação do homem-mito, mas é quando o filme muda na cena final para o seu ponto de vista que ficamos presos ao mito.

É a inversão perfeita numa subversão de Aronofsky do arco convencional dos filmes tradicionais com uma mensagem, que atesta da desesperação retratada. Uma adaptação do socialismo de intervenção dos irmãos Dardenne, exemplificado no subjectivismo com que acompanhamos um Mickey Rourke na sua gloriosa tristeza, sublinhado por uma candura no modo como se cria empatia com a sua personagem, um lutador marcado pelas cicatrizes do passado à procura de reparar ligações presentes e de uma salvação possível. O sucesso do filme passa também pela janela de esperança fugaz que apresenta, de um vislumbre trágico do que poderia ser, um minimalismo afectivo na sua solidariedade. É o retrato final numa colecção de 2009 de homens e mulheres em rota de colisão com a sua auto-destruição, auto-inflingida ou não, numa combustão que é o melhor substituto a ficar parado.