maio 20, 2011

News from Home (1977)

News from Home, de Chantal Akerman, 1977, 10/10


Todas estas pessoas desaparecem. Todos aqueles sonhos (planos) desapareceram incompletos, inacabados. Tal como as torres do World Trade Center que dominam as imagens finais do filme, em que abandonamos Nova Iorque à sua alienação orgulhosa, as pessoas que desaparecem e são substituídas por outras são o centro de um filme nas margens. Chantal Akerman filma fragmentos desconexos de uma cidade desintegrada, paisagens como partes de uma insofrível "rat race" infindável, preenchida apenas por trivialidades necessárias à sobrevivência que nos apagam lentamente.

São testemunhos da passagem de pessoas pela cidade que é testemunha própria da massa anónima de pessoas que vão passando por Nova Iorque e que ainda haverão de passar, sem deixar marca, em permanente circulação para lado algum. A camâra é fixa, sempre fixa, ou numa rua suja e quase deserta, ou a espreitar uma cozinha escurecida de um restaurante ou no metro entre paragens indistintas com multidões que se esvaziam - são as formas de Akerman tentar encontrar algo através das pessoas, algo além da cavernosa solidão que transparece dessas multidões. Akerman parece querer mostrar que uma metrópole como Nova Iorque é um gigante com cavidades no coração - as pessoas. O resultado são enquadramentos com qualidades hopperianas que aludem à tristeza nostálgica de que fala Alain de Botton ("On Seeing and Noticing"). Ao longo do filme vamos ouvindo as cartas da mãe de Akerman, que se sucedem como as pessoas na rua sem nenhum significado especial, banalidades na sua essência própria da vida. Estamos em 1977 e há uma crise económica, Akerman salta de emprego em emprego para sustentar a sua arte, a mãe queixa-se da saúde e das pessoas, a vida é difícil. Nova Iorque está vazia.

maio 08, 2011

Pina (3D)

Pina de Wim Wenders, Alemanha/França 2011, 9/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2012


Transferir a linguagem de Pina Bausch para o cinema foi o desafio de Wenders ao celebrar o trabalho da famosa coreógrafa. Quando nos referimos a Pina estamos a falar de alguém que trabalhou uma nova forma de linguagem - linguagem quase tangente ao cinema, ou pelo menos com ambições de extravasar as dimensões do palco. Era portanto obrigatório ultrapassar as limitações da simples recriação, e o problema não era só como capturar as peças de Bausch sem se tornar num mero registo anónimo, mas como fazer justiça à sua obra e à sua intemporalidade - inovar tal como Pina sempre fazia e conseguir que as suas peças atingissem o especator num total envolvimento. Mesmo com a participação de Pina Bausch, o projecto desenvolveu-se lentamente durante vários anos, numa colaboração que se apresentava de difícil concretização. Faltava dimensão, o mais importante, faltava descobrir como encenar a encenação sem ser demasiado teatral. Só com o aperfeiçoamento da técnica 3D é que isso acabaria por se tornar possível, mas tristemente, Pina acabaria por morrer dias antes de se iniciarem as filmagens. Foi necessário que Wenders, agora sozinho na sua visão, desse um novo rumo ao projecto, e o resultado é uma belíssima homenagem à obra e legado de Pina, e à influência que ela deixa sobre os interpretes da sua visão, sobre os que lhe chegaram mais perto.

O filme começa por jogar com a percepção do palco, com a falsidade da representação desse palco no cinema, ao sentar-nos num teatro com algumas filas de espectadores à nossa frente, como se estivessemos num teatro verdadeiro. Mas é ao passar, literalmente, para o lado de lá da cortina, com a chegada dos bailarinos, que entramos no filme, percebendo as possibilidades que Wenders quer oferecer. As peças apresentadas, que formam a linha narrativa do filme, são também as personagens principais do filme, já que os bailarinos se tornam anónimos, dissolvem-se na massa de corpos que suportam as peças, apesar dos breves depoimentos de cada um em que partilham as suas experiências com Pina. A própria Pina aparece por breves momentos em ensaios, não como figura central do filme, já que esse protagonismo é atribuido à sua obra. Da mesma forma que, através da exposição do seu método de trabalho, percebemos como Pina levava as pessoas a procurar e encontrar a sua obra a partir de si mesmos, não a partir dela.

O fôlego torna-se intermitente com a sucessão de números de dança, desde o inicial Rite of Spring, em que grupos separados de mulheres e homens se comportam como matilhas, num palco de terra batida, passando por Café Müller, onde bailarinas de olhos fechados criam caminhos entre cadeiras diligentemente desviadas por um homem. Estas peças icónicas da sua carreira (e da história da dança contemporânea) são apresentadas de modo envolvente, mesmo para quem não é conhecedor da matéria. É a habitação do espaço físico e a forma como é ocupado, raramente conseguida antes, que permite o filme ousar aproximar-se dos movimentos trabalhados dos bailarinos e replicar o sentimento de assistir a um espectáculo ao vivo.

É também quando Wenders transporta a acção para fora do seu habitat normal, que o filme se transfigura, é a forma de Wenders acrescentar a sua re-imaginação de contexto ao material de Pina. Ao colocar os bailarinos em cenários naturais à volta de Wuppertal, a cidade que Pina adoptou como ponto inicial de inspiração, somos presenteados não só com exteriores magníficos, mas com uma re-interpretação, uma re-visualização das peças, livres para se expandirem, para fugirem ao casulo do palco, não só através do 3D.

Com o filme, Wenders atinge o que se propunha e algo mais: um reinventar de possibilidades do cinema em capturar o que acontece em palco e transbordar isso para algo mais; um redescobrimento do trabalho de Pina Bausch, pela forma como lhe concede novo contexto, levando-o também a um novo público, que não teve a hipótese de o ver ao vivo; e uma renovação pessoal, já que encontra aqui o veículo perfeito para a continuação do seu cinema cerebral-sentimental. Há ainda tempo no final do filme para, depois de termos ouvido Jobim e Caetano Veloso, sermos presenteados com uma última dança de Pina ao som de um fado, que é a melhor conclusão que se poderia pedir, para guardar isto perto de nós.