junho 05, 2010

I vinti (1953)

I vinti (Os vencidos) de Michelangelo Antonioni, 1953, 6/10

I venti é Antonioni com o indicador de cinismo e amargor no máximo, logo no início de carreira. Um ataque incriminador à geração a viver a adolescência no periodo pós-guerra, é também um exercício experimentalista na estrutura do filme. Com um prólogo violentíssimo em tom documental, que sob um voice-over acusatório destila imagens de protestos e recortes de jornais com notícias sobre crimes para estabelecer o ponto de partida, uma reflexão-manifesto sobre o descarrilamento moral de uma parte dessa geração, que depois da miséria da guerra vive agora em segurança económica e vê a partir disso uma atracção pelo hedonismo e fascínio mediático na procura de afirmação individual, tudo abordado e desmascarado no discurso inicial:

"Estas histórias são os feitos daquela que foi chamada de geração queimada, daqueles que no tempo da guerra eram crianças e que quando abriram os olhos viram no mundo um espectáculo de violência. E tão imponente e invasor era esse espectáculo que parecia velar qualquer outro valor como a bondade, a generosidade, a inteligência e o sacrifício. Aquela violência parecia triunfante, segura de si, a sua lei era o desprezo de cada lei, a sua característica social era o desprezo de cada sociedade, no triunfo do indivíduo audaz, cínico, destituído de remorsos, que dá origem a um novo tipo de violência, bem diferente daquele que nasce da miséria e desigualdades socias. Não era um qualquer complexo de inferioridade social que os impelia ao delito, mas o desejo de praticar gestos excepcionais, de emergir. Tudo se unia num só ideal: a celebração da violência como triunfo pessoal. (..) contamos as nossas histórias, não as embelezaremos, nem enriqueceremos de um fascínio que na realidade não têm. Contaremos sem colori-las, sem ênfase porque vista a sua realidade observada sem ornamentos é uma realidade triste e incapaz de seduzir alguém."

O filme é dividido em três capítulos estanques que contam a mesma história em contextos sociais semelhantes e diferenciam-se essencialmente pelos personagens e pela localização: França, Itália e Inglaterra. O capítulo francês é talvez o melhor conseguido: acompanhamos um grupo de jovens numa viagem ao campo que parece à primeira vista uma escapadela às aulas mas que tem contornos mais sinistros. A construção do segmento estabelece a linha narrativa que será seguida nos 3 capítulos: depois de introduzir as várias personagens à saída de casa e sublinhar o alheamento por parte dos pais, e estabelecer que as personagens são todos filhos da classe média longe da miséria pós-guerra, o filme introduz logo algumas pistas para o que se vai desenrolar a seguir – neste caso um dos rapazes surropia uma pistola do armário do pai e outro prepara as falsas aparências que vai tentar sustentar. É este personagem que estará no centro desta história: um rapaz com pretensões a playboy que engana os seus colegas mantendo uma ar de riqueza imunda e que se vangloria disso à frente dos outros, acendendo cigarros em notas a arder – é a inveja que provoca nos outros ainda dependentes dos seus pais que vai ser a sua condenação. É criado um painel de personagens com diferentes motivações: uma lânguida rapariga é provavelmente a mais inteligente do grupo pela forma como manipula os corações dos outros rapazes, sem realmente estar interessada em alguém, apenas procura uma forma de sair dali, uma aventura, e enquanto que um dos rapazes vai tomar a acção responsável pelo seu descalabro colectivo apenas para agradar a essa rapariga, o seu irmão acaba por o abandonar e entrega-lo no fim. Apesar do cinismo pretendido existe ainda algum fascínio sentimental pelo destino destas personagens, o distanciamento ainda não é total, existe algum interesse em explorar as motivações das personagens e uma ligação ao seu inevitável destino trágico, em investigar a perda de inocência e acção irreflectida, espelho da imaturidade e impulsividade dos envolvidos.

Se o segmento francês funciona precisamente pela réstia de compaixão e cinismo bem medido, os capítulos seguintes relevam um maior distanciamento, que embora funcione como manifesto crítico, não acompanham o capítulo francês na exploração das personagens e da sua queda no abismo. O capítulo italiano é marcado por uma secura emocional, uma exposição-constatação dos factos sem preocupação de empatia, abandonando as personagens às suas escolhas e mostrando actos violentos sem grande comiseração ou surpresa pelos mesmos, algo explorado também por Bertolucci na sua primeira obra “La commare secca” (1962) baseado num argumento áspero de Pasolini. Aqui acompanhamos um jovem, que apesar de bem na vida, procura ainda mais para se afirmar indivualmente, neste caso recorrendo ao crime, que é exemplificado pela forma como assassina a sangue frio e sem escrúpulos um guarda nocturno – no dia seguinte confessa-se à namorada, mas confessa-se sobretudo sem arrependimento, perdido num mar de narcisismo, incapaz ele próprio de empatia, sem se aperceber da sua ruína até ser tarde demais. É talvez o capítulo mais convencional, com tangentes a um cinema noir mas efectivo na construção de um desespero reprimido. O capítulo inglês é sobretudo fruto do carácter estranho da personagem principal e da sua carência mórbida e demanda por recognição mediática do seu génio auto-proclamado, numa exploração mais directa do papel dos jornais na afirmação dos indíviduos que procuram a glória através do crime certos da atenção sobre eles próprios que se seguirá - acompanhamos um repórter cansado do mundo à medida que investiga um homicídio e é apresentado ao protagonista deste segmento, uma testemunha do crime que acaba por confessar o crime a troco de uma coluna no jornal, insanidade apenas comparável ao sorriso com que ouve o relato do seu feito em tribunal. Antonioni usa aqui o velho jornalista para contrapor desilusão à imaturidade do assassino e porventura reverberar também o seu estado de espírito.

Antonioni recorre sistemáticamente a uma estrutura de composição que utiliza durante este filme, que é ainda reflexo de um formalismo clássico – a delinquência aqui é apenas na história escolhida. Uma composição normal consiste em 3 momentos definidos durante o plano de cerca de um minuto de duração: 1) a introdução ou preparação, em que escolhe a colocação da câmara e estabelece o fundo de acção, fundamentado essencialmente na localização escolhida para a cena 2) o desenvolvimento, em que as personagens caminham entre marcas pré-definidas até chegaram ao centro da composição e atingir o momento definidor da cena em que o seu objectivo é atingido 3) o epílogo ou conclusão, em que a duração se arrasta alguns segundos depois do objectivo central de cada cena, normalmente observando as personagens à medida que abandonam o enquadramento, proporcionando espaço livre para a reflexão. É um método utilizado consistentemente, quase de forma rígida, sem grandes desvios excepto no capítulo italiano onde durante uma cena de acção há por momentos uma montagem dinâmica e com enquadramentos mais livres, e é uma escolha deliberada que foca a atenção apenas na história e personagens, que serve o propósito enunciado de não embelezar as histórias, filmando sem ornamentos para chamar a atenção para o essencial – recorrendo mais uma vez ao prólogo:
"Derramar sangue tinha para eles o único objectivo de afirmar o vitorioso culto de si mesmo. Quando estes protagonistas se apercebem da sua miséria de e de serem vencedores na mais inútil das batalhas, já é tarde."

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