Numa época marcada pela democratização da informação e pela difusão da acessibilidade de meios visuais nunca o documentário foi um género tão popular e nunca apareceram tantos filmes a estrear como na última década, originando uma abundância de diferentes títulos e temas ao mesmo tempo que um certo cinema de intervenção ganhava mais espaço, aproveitando a popularidade recente do documentário para levar às massas mensagens de temas sensíveis que anteriormente não teriam tamanha divulgação. Seria portanto injusto não fazer uma referência a filmes que se aproveitaram das novas potencialidades tecnológicas para produzir documentários de baixo orçamento, mesmo trabalhando fora do sistema, sem que isso significasse perda de clareza. "
Loose Change" ou "
Zeitgeist" são exemplos disso, e mesmo que perdidos nas próprias premissas marcaram uma janela para o futuro na evolução do género, tal como o americano Robert Greenwald que atráves da produção de documentarios em série (
Outfoxed,
Unprecedented,
Iraq For Sale) de menor duração e produção barata sobre assuntos políticos constituem uma espécie de guerrilha contra-informativa às visões da cultura dominante. Aqui fica a primeira parte de uma selecção muito subjectiva dos melhores títulos da década:
É a história da primeira crise económica da década e francamente premonitória em relação ao que acontece quando se confia a supervisão de empresas multinacionais como a Enron entregues a si próprias: a corrupção moral e ganância reflexo do sistema desregulatório capitalista acabam por canibalizar tudo à sua volta, e como que assistindo ao desmoronar de um castelo de cartas, é uma exposição da irresponsabilidade corporativista com consequências directas sobre a população, e é acima de tudo uma lição recente de um embuste já esquecido.
É preciso alguém que sobrevive na exploração das margens do cinema como Varda para ir à procura destas pessoas que habitam um lugar subterrâneo na sociedade, sobrevivendo através dos restos não aproveitados de outros para quem são invisíveis. Um retrato emocionalmente devastador mas ao mesmo tempo enternecedor pela forma como Varda coloca estas pessoas no centro do filme, é também a história pessoal de como Varda se interessa pelo que o resto da sociedade tenta esquecer.
18. Jesus Camp (2006) - Heidi Ewing & Rachel Grady – EUA É provavelmente um dos mais aterrorizadores filmes da última década e o pior é que é tudo real. O filme mostra-nos Jesus Camp, um campo de férias para crianças idealizado por evangelistas americanos onde as crianças são expostas aos perigos do aborto ou de ser demasiado tolerante ou pouco activo na defesa da sua igreja e a necessidade de introduzir pessoas no governo para influenciar políticas. É na verdade um campo de doutrinação, em que estas crianças são sujeitas a uma lavagem ao cérebro por pessoas que em entrevistas no filme não tem pejo em afirmar que se revêem como equivalentes a extremistas muçulmanos que ensinam os filhos a sacrificar a vida como soldados de deus, mas com a mensagem “certa”. As imagens de crianças a lamentarem-se por supostos pecados que cometeram são suficientes para deixar qualquer um com violentos calafrios.
É um relato incriminador da indústria alimentar americana e da forma como esta tem sucessivamente e progressivamente deteriorado as condições de produção e qualidade dos produtos alimentares numa lógica de ganância-lucro máximo que beneficia também da desinformação do público: ora é exactamente contrariar esse estado e contribuir para uma exposição das práticas generalizadas na indústria que o filme propõe. Durante o documentário somos expostos a uma evolução cronológica dos métodos das corporações que dominam o mercado como fornecedores das grandes cadeias de fast-food e supermercados e das consequentes necessidades em aumentar a oferta para baixar os custos de produção: os animais deixaram de crescer ao ar livre para serem enclausurados em jaulas para colheita em série e são injectados com hormonas de crescimento artificial para reduzir o tempo que demoram a desenvolver-se, com claro declínio em termos de qualidade de vida dos animais. É uma importante chamada de atenção para algo que embora não seja novidade, apresenta uma evolução desoladora nos últimos anos à medida que a conjectura económica afecta as escolhas alimentares.
16. De fem benspænd (The Five Obstructions) (2003) - Jørgen Leth – Dinamarca Nesta colaboração entre Lars von Trier e Jorgen Leth cabe todo o papel do cinema como catarse emocional e a criação artística como veículo de introspecção pessoal. Von Trier orquestra um plano para obrigar Leth a filmar cinco diferentes versões da mesma história, e além de confirmar o papel necessário dos limites na criação artística como motivo para procurar novas respostas, sujeita igualmente Leth a auto-examinar-se na forma como reage perante estas obstrucções, resultando num dos mais importantes tratados sobre a (de)construção do cinema.
Michael Moore teve uma década em cheio que o catapultou para o centro do movimento do cinema documental contemporâneo, como figura central de um conjunto de filmes que atingiu enorme popularidade e com
Bowling for Columbine (2002),
Fahrenheit 9/11 (2004), e
Sicko (2007) atingiu a sua trilogia fundamental. Mas o filme mais importante será este fervoroso Fahrenheit, como obra de contra-poder e exposição do aproveitamento político do 11 de Setembro pela administração Bush para atacar liberdades cívicas e impingir uma guerra ao resto do mundo sob falsos pretextos, sem esquecer a eleição roubada de 2000. E se Moore é realmente exígio em criar pequenos momentos acusatórios que contaminam o imaginário popular como o confronto com Heston ou as gravações inéditas de Columbine, neste filme consegue descobrir uma das imagens icónicas desta década que quem tenha visto o documentário dificilmente se esquecerá: Bush algures numa escola na Florida, a receber as notícias do segundo ataque ao WTC e ficar sete infindáveis minutos sem reagir, sem saber o que fazer.
Se visualmente é pouco apelativo por afinal não passar de uma simples conferência ou sequência de gráficos, este documentário é indubitalvente um dos mais importantes documentos da última década por toda a informação essencial que compendia e que compensa completamente o lado visual. É toda uma revelação assustadora e um alerta para uma contagem decrescente, um apelo à acção que definiu um ponto sem retorno no movimento ecológico e um assunto que deveria ser prioritário para todos, que aqui é fundamentado neste instrumento educativo de inestimável valor. Se o culto à figura de Al Gore é aqui exagerado é preciso contextualizar que este é o homem que apenas não substituiu Bush e o seu domínio de 8 anos devido a uma decisão do tribunal supremo americano.
"A baía da vergonha” em português é uma inflamadora obra extremamente bem executada naquilo que um documentário deve ser como obra de informação, divulgação de matéria sensível e até como documento político: o filme incide sobre a cidade japonesa de Taiji e a sua baía secreta onde todos os anos são massacrados cerca de 23.000 golfinhos numa demonstração de crueldade inimaginável, ao mesmo tempo que esta brutalidade é escondida do resto do mundo. De uma forma concisa e persuaviva, o documentário demonstra claramente o ponto que pretende passar, e a confrontação com a realidade não deixa espaço para o espectador olhar para o lado: como diz alguém no filme ”Ou se é um activista, ou se é um inactivista”. Porém, acima de tudo o filme tem o mérito de apresentar uma mensagem inspiradora na forma como mostra que através do activismo e da acção de um pequeno grupo de pessoas empenhadas é possivel mudar algo, deixando um apelo sentido contra o conformismo.
Não é um filme que se destaque pela encenação mas que vive sobretudo da história que conta e da sua importância actual. Naomi Klein, entre escrever “No Logo” e “The Shock Doctrine” viajou para a Argentina com Lewis para acompanhar de perto as repercussões do descalabro da moeda nacional e uma das mais graves crises económicas dos últimos 40 anos. Dois anos depois da crise de 2001 encontramos um país em ruptura com o modelo ultra-liberal adoptado pelo antigo presidente Medem baseado no pacote de medidas sugeridas pelo FMI, mas o filme não vale apenas por recordar o que aconteceu mas também por documentar o que se passa nessa altura nas ruas e fábricas argentinas em que desponta um novo movimento de união entre trabalhadores solidificado num novo modelo de cooperativa a partir das fábricas encerradas no seguimento da crise, que aqui é testado ao mesmo tempo que se decide o futuro do país nas eleições presidenciais, com Medem a tentar regressar ao poder.
O mais completo documentário sobre a guerra no Iraque é uma crítica devastadora para as justificações políticas da invasão e para as decisões de condução da guerra no terreno. Incidindo sobre os primeiros dois anos da guerra, isto é, até à ao ponto de quase guerra civil em 2004, o filme mostra a sequência de erros em cadeia que levaram à deterioração insustentável da situação no Iraque e a falta de preparação antes da guerra torna-se completamente transparente e reveladora de uma arrogância desesperante. O filme é especialmente pungente na forma como entrevista pessoas no terreno, militares ou civis experientes, que rapidamente viram a sua vida em perigo devido a decisões que se revelam mais políticas do que baseadas em qualquer conhecimento da situação ou do contexto, e que são muitas vezes instauradas por jovens sem experiência prática escolhidos para o seu posto pela filiação partidária - apenas um exemplo entre muitos que ajudam a compreender o que aconteceu no Iraque e ter uma visão geral de uma ocupação, que para todos os efeitos, ainda não terminou.