março 05, 2010

Food Inc.

Food Inc., de Robert Kenner, EUA 2008, 8/10

É um documentário que assemelha-se por vezes a um filme de terror, tal é o relato incriminador da indústria alimentar americana e a forma como esta tem sucessivamente e progressivamente deteriorado as condições de produção e qualidade dos produtos alimentares numa lógica de ganância-lucro máximo que ajudado por uma desregularização governamental beneficia também da desinformação do público: ora é exactamente contrariar esse estado e contribuir para uma exposição das práticas generalizadas na indústria que o filme se propõe. Recorrendo a entrevistas com conceituados autores como Eric Schlosser (Fast Food Nation, 2001) e Michael Pollan (The Omnivore's Dilemma, 2006) revela factos alarmantes sobre o que acontece com os alimentos até chegarem ao consumidor.

Durante o filme somos expostos a uma evolução cronológica dos métodos das grandes corporações que dominam o mercado de distribuição de matéria prima como fornecedores das grandes cadeias de fast-food e supermercados e das consequentes necessidades em aumentar a oferta para baixar os custos de produção: os animais deixaram de crescer ao ar livre para serem enclausurados em jaulas para colheita em série e são injectados com hormonas de crescimento artificial para reduzir o tempo que demoram a desenvolver-se, com claro declínio em termos de qualidade e preocupações sobre a transmissão das hormonas para a cadeia alimentar. Também é explicado como essas corporações subcontractam na maior parte a sua produção a pequenos agricultores que são obrigados a reger a sua operação segundo certas linhas para maximizar a produção de forma a conseguirem pagar os empréstimos concedidos por essas mesmas corporações para os agricultores manterem a sua actividade, num ciclo vicioso que tem como resultado óbvio a perda de condições sanitárias e de segurança quer para os animais quer para os trabalhadores ilegais usados nessas fábricas; ao mesmo tempo os agricultores são obrigados a utilizar sementes transgénicas alteradas cuja segurança alimentar nunca foi realmente provada – utilizando um testemunho de um dos poucos agricultores que ainda se recusa a usar tais sementes ele revela como a sua plantação foi contaminada pelas sementes transgénicas dos campos vizinhos e está a ser processado pela Monsanto (exposta também no documentário “Le monde selon Monsanto”) por infrigimento de patentes, numa campanha agressiva de domínio para uniformização das culturas.

O filme é acima de tudo corajoso pelo assunto que aborda apesar dos poucos meios disponíveis: não há grandes momentos cinematógrafos e vive essencialmente de dois trunfos bem jogados: da obtenção de imagens inéditas (tal como "The Cove") como prova irrefutável das condições deploráveis praticadas e de testemunhos de pessoas afectadas directamente pelas consequências dessas práticas predadoras e insensíveis ao bem público, como é o caso de uma família que perdeu uma criança depois desta ter comido um hamburger de carne contaminada pela bactéria e.coli - não há argumento mais convincente no filme do que o facto de as empresas envolvidas estarem conscientes que juntar um grande número de animais em espaços fechados sem condições sanitárias exponencia o perigo de contágio de bactérias ou doenças entre os animais, mas que preferem utilizar um tratamento mais barato baseado em amoníaco do que melhorar as condições, e que qualquer indemnização que venham a pagar a famílias como a entrevistada será mais que compensada pelo aumento das margens de lucro. Ouvimos também de uma família de poucos rendimentos que ilustra bem as dificuldades para uma certa parte parte da população em ter acesso a uma alimentação saudável quando os preços dos vegetais são mais altos do que um McMenu ou 1 litro de refrigerante é mais barato que uma garrafa de água, cujas consequências são demonstradas pelo surto de diabetes e obesidade que afecta esta família, uma epidemia que ameaça alastrar-se às familias pobres americanas sem dinheiro para pagar os custos médicos associados, tal como o domínio das corporações assume proporções alarmantes e ameaça infiltrar-se nas nossas escolhas do dia a dia (exemplo: pela primeira vez desde 1998 a Comissão Europeia autorizou esta semana o cultivo de um transgénico). É um documento essencial e uma importante chamada de atenção para algo que embora não seja novidade, apresenta uma evolução desoladora nos últimos anos à medida que a conjectura económica afecta as escolhas alimentares.


6 comentários:

Dioniso disse...

Sem dúvida um documentário impressionante. Sobre a caracterização da indústria alimentar, já Frederick Weiseman em “Meat” (1976) mostrava a escala gigantesca de um negócio que ultrapassa a razoabilidade da criação e abate de animais, das condições dos trabalhadores, da frieza com se abordam as diferentes fases do processo de comercialização, e agora mais recentemente e ainda pouco estudado, as consequências da alteração genética dos alimentos. As colheitas de milho em desertos, a necessidade de levar gigantescas quantidades de água até lá, o desiquilíbrio ecológico, a desertifição dos solos, a destruição e o nada.

Acho interessante o contraste desta situação com o criador de gado que alimenta o seu gado em grandes vales, carregados de erva fresca e sustentadamente, num clima arejado e desconstraído... e seria tão tudo tão melhor. A figura deste personagem enfatiza ainda mais este contraponto à ganância e à maximização de lucros.

Um documentário obrigatório e muito bem feito porque consegue construir um discurso muito sólido e importantíssimo como plataforma de informação e de questionamento sobre as nossas práticas no mundo num sentido pedagógico e crítico.
Embora num tom próximo a Michael Moore, o documentário constrói-se num estilo que resulta muito bem dada a fácil consciencialização dos problemas que daí resultam.

Joao Araujo disse...

Obrigado pelo referencia a “Meat”, vou ter que procurar ver pois parece bastante interessante. Se de facto o que Food Inc mostra não é nada de novo, consegue mesmo assim ser bastante informativo sobre a continuação das práticas conhecidas e acima de tudo sobre o crescente domínio centralizado que o tipo de corporações expostas vai ganhando sobre a agricultura (especialmente tendo em conta as notícias que sairam esta semana…). É verdade, esqueci-me de referir esse personagem que mencionaste, funciona bastante bem para estabelecer o contraste com os outros agricultores cheios de dívidas e problemas pelo rumo que escolheram enquanto ele contenta-se em utilizar e respeitar o que a natureza lhe oferece.
e se por exemplo em The Cove há alguma esperança em alterar o que está errado (especialmente ao nível da comercialização da carne tóxica), aqui há quase um panorama desolador tendo em conta as soluções que o filme apresenta que passam acima de tudo por atitudes individuais, o que parece pouco para contrariar uma indústria tão predatória…

imartins disse...

Food Inc. aborda questões muito importantes de uma forma que atinge um poderoso efeito dramático. No entanto, e tal como muitos outros documentários do género, executa-o de uma forma pouco objectiva, carregada de clichés em que os temas são tratados de uma forma superficial. O documentário depende bastante do choque visual que muitas vezes desencadeia uma profunda sensação de desconforto. Um modelo que se repete mas que talvez tenha algum impacto na transformação de hábitos de alimentação(?) Potencialmente, um dos méritos de Food Inc.

Relativamente aos seus predecessores, Food Inc. adiciona muito pouco e os problemas de fundo continuam a não ser abordados. Note-se a ausência da necessária discussão sobre as causas da utilização de métodos de cultura intensiva e do desenvolvimento de novas técnicas agrícolas, as soluções mais viáveis para o actual padrão de crescimento da população humana. Uma perspectiva interessante sobre este ponto expõe como o constante desenvolvimento tecnológico tem evitado as catástrofes populacionais previstas por Malthus (ver http://www.nature.com/nature/journal/v418/n6898/full/nature01013.html).

Obviamente, que as condições de higiene são extremamente importantes e a deterioração das mesmas pode causar graves problemas de enormes dimensões – mais uma vez um problema de desregulação que é bem conhecido e retratado em muitos outros documentários.

Por outro lado, ao publicitar o consumo de alimentos “biológicos” Food Inc. apresenta uma falsa solução para o problema. Métodos de produção verdadeiramente naturais não são uma alternativa viável e representam um retrocesso relativamente a vários avanços tecnológicos. A solução “Eat organic” criaria um agravamento do desequilíbrio na distribuição mundial de alimentos em que os países pobres ficariam ainda mais famintos.

A produção em condições ditas “biológicas” coloca vários problemas em termos de controlo de qualidade e higiene (para ser justo o documentário deveria também expor as condições de higiene em ambientes “biológicos”). O caso da EHEC (uma estirpe de E. Coli) é paradigmático. Ocorrências da doença causada pela EHEC são mais frequentes em ambientes rurais devido às reduzidas medidas de higiene e à proximidade entre população animal e humana. No entanto, ocorrências em grandes cadeias de distribuição alimentar podem ter consequências muito mais amplas (daí serem mais mediáticas e mais conhecidas). Não deixa de ser infeliz que mortes de crianças em ambientes rurais (por exemplo, em certas partes da Alemanha) não tenham o mesmo efeito mediático.

O documentário alimenta mais mitos. Numa era em que se estima que 50% da população mundial depende do aumento do output agrícola permitido pelo desenvolvimento de fertilizantes químicos (fixação de azoto pelo processo de Haber) é difícil falar de alimentos estritamente “biológicos” ou de produção “natural”. A alteração da composição genética foi e é um dos métodos cruciais na domesticação de animais e plantas para fins agrícolas, nomeadamente, pelo processos de hibridação e selecção artificial. Através destes mecanismos novas estirpes ou raças são desenvolvidas com o objectivo de alcançar qualidades superiores relativamente às espécies que ocorrem naturalmente. O recente desenvolvimento de OGMs (por métodos mais sofisticados e que permitem maior controlo e selecção das alterações genéticas) é uma evolução tecnológica do conceito agrícola. É difícil prever o impacto ambiental destas novas alterações (um assunto complexo que deverá ser estudado) no entanto, poderemos dizer que os OGMs irão ser introduzidos num ambiente em que o balanço “natural” já foi alterado pela quantidade desproporcional de culturas híbridas.
O problema criado pela Monsanto parece-me mais um de desregulação económica (que permite o controlo de um mercado por uma multinacional) e de defesa abusiva e agressiva do estatuto da patente (algo que está dependente dos direitos conferidos por uma patente) do que um problema alimentar ou de saúde pública.

imartins disse...

Por tudo isto fiquei um pouco reticente sobre tudo o resto que o documentário expõe (momentos "Hey pig" também não ajudaram). Contudo, Food Inc. consegue algo de extremamente relevante, na medida em que, estimulou a discussão em torno de um assunto tão básico como critico para a sociedade americana. É pena que tal resulte mais do impacto visceral do que da sua qualidade documental.

PS: O levantamento de certas restrições por parte das autoridades europeias não é surpreendente dada a mudança na relação entre consumo e produção de alimentos na UE (http://www.euractiv.com/en/cap/europe-warned-looming-food-import-surge/article-180580).
PS2: Future of Food, uma serie da BBC, aborda o desequilibro da distribuição alimentar mundial.

Dioniso disse...

Acho curioso, no mínimo, que no meio de tanta referência, de tanta sugestão e argumentação científica se levante a questão do mito. Não será o discurso da necessidade de alimentar o terceiro mundo e o tal aumento assutador da população uma desculpa para aumentar a manipulação genética nos alimentos? E não será tudo isto uma forma encoberta de cirar problemas inexistentes para maximizar lucros e capitais e claro, criar um mito de necessidade?

http://www.wfp.org/hunger/faqs

O discurso do mito é realmente importante porque consegue encobrir o real problema. De facto, o mundo produz quantidade suficiente de comida para toda a gente. A questão está na sua distribuição e na incapacidade de ser armazenado por muito tempo, na incapacidade de muitos países se aproximarem do mercado internacional, da pobreza e da falta de dinheiro, etc. Por isso, fazer com que toda a gente tenha algo para comer é uma questão muito mais política e económica do que científica. Se os métodos de produção são sustentáveis, naturalmente que não, veja-se os casos da pesca ou as culturas intensivas que fazem a exploração total dos solos, o desiquilibrio ecológico de regiões inteiras e consumos de água incomportáveis. Há também um problema de organização e falta estrutura muita coisa, mas um coisa sabemos: produzimos alimentos para todos.

O que me irrita mais é o discurso de legitimar tudo porque há pessoas a morrer à fome. Como se nos EUA, que estão cheios de carne e cereais, não morrem todos os dias pessoas com fome. O Terceiro mundo, infelizmente não tem capacidade de autonomia nem meios para fazer exploração agrícola sustentadamente. A sabedoria chinesa já dizia que era melhor que dar o peixe é ensinar a pescar... e ter condições para tal. Falta-me sugerir apenas o Darwin’s Nightmare de Huber Sauper para perceber do que se está a falar.

imartins disse...

De facto produzimos alimento para todos, mas fazêmo-lo de forma desequilibrada. Desequilibrada no sentido em que não é sustentável e desequilibrada no sentido em que se concentra em certas partes do globo - daí os problemas politico-económicos e, como referi, o desequilíbrio na distribuição alimentar mundial. De modo a colmatar estes desequilíbrios teremos que melhorar os métodos de produção - tornando-os mais eficazes e com menos impacto no ambiente - e uniformizar a distribuição de alimentos - o que envolve esforços, diria mesmo, grandes mudanças a nível político e económico. O problema da distribuição não é só um de distribuição dos produtos mas também do conhecimento e da tecnologia (o proverbio chinês é de facto muito pertinente).
Nesta conjectura é bastante alarmante ver que uma das zonas mais desenvolvidas do mundo (a UE) caminha no sentido de se tornar um importador net de alimentos (ver a última das duas referências do meu primeiro comentário). Tal apenas contribuirá para que desastres como aquele bem documentado por Haubert Sauper ocorram com mais frequência.
Voltando a Food Inc., o documentário consegue expor graves problemas (aspecto em que não é inovador) mas não consegue apresentar soluções viáveis para os mesmos (aspecto em que poderia ser inovador), conduzindo a discussão num sentido fútil. Por estas razões, partilho alguma dessa irritação; é irritante ver que as alternativas oferecidas para o actual status quo estão apenas acessíveis à parte mais favorecida da população. Enquanto esta se entretém na escolha do alimento mais (pseudo-)biológico e esforços são conduzidos para sustentar e promover um método agrícola ineficiente, populações menos favorecidas arcam com o peso de um sistema politico-económico que se alimenta da sua condição e que garante a sua apatia.