abril 10, 2013

Jagten - The Hunt (2012)

Jagten

Jagten (A Caça) de Thomas Vinterberg, Dinamarca 2012, 9/10

No filme de 1960, Jungfrukällan (A Fonte da Virgem), de Ingmar Bergman, uma família depois de perceber que os estranhos a quem deram guarida na sua casa são os mesmos que antes tinham violada a filha mais nova, acaba por exercer uma vingança violenta sobre os intrusos, pondo em prática a sua própria justiça. Esse filme ilustra uma certa moralidade nórdica, em que uma civilidade exemplar é corrompida por um comportamento vingativo de carácter religioso, em relação ao que julgam um ataque à tranquilidade e aos alicerces do seu modo de vida - não olhes ao que eu faço mas antes para o que eu digo. Este é um sentimento que está sempre presente em Jagten, e é transversal a vários filmes escandinavos, exposto quer por Bergman ou presente na psicologia dos filmes de Lars von Trier. É algo a que Vinterberg já tinha aludido em Festen, o seu filme de 1998, quando perante uma sala de jantar repleta de convidados, o filho anuncia que em criança foi abusado sexualmente pelo pai aniversariante - ninguém sabe bem como reagir, mas o silêncio revela o desconforto pela ruptura com a normalidade, preferindo ignorar o que ouviram, à espera que tudo seja esquecido. Em Jagten, a influência religiosa é ainda mais acentuada, quando na pequena comunidade onde decorre a acção do filme, a modernidade convive com a religião, e se toda a aldeia está presente na missa de Natal, é porque a igreja é o local onde decorre a cena chave do filme, onde a condenação convive com a expiação.

Jagten começa por mostrar o quotidiano da personagem principal, Lucas, um professor de infantário, para quem as coisas começam lentamente a correr bem depois de terem corrido mal, antes de começarem a correr pior. Recém-divorciado e no meio de uma luta de custódia pelo filho, Lucas parece contente com o seu emprego, com a sua integração na comunidade e pelo apoio dos seus amigos, e até envolvido num romance promissor com uma colega de trabalho. Mas uma sequência de eventos, que Vinterberg ilustra cuidadosamente a diferentes níveis, de modo a estabelecer desde logo as escolhas que se seguem, vai abalar a vida de Lucas, quando uma criança do infantário o acusa de abusos sexuais. Uma das virtudes do filme é o facto de não deixar dúvidas em relação ao que aconteceu, eliminando a ambiguidade simples para explorar a complexidade de terrenos mais pantanosos. A partir da denúncia tudo complica-se, em grande parte pelo modo como a directora do infantário tenta resolver o que aconteceu, e as pessoas próximas de Lucas começam a abandona-lo. É o início de um longo processo de deserção violenta pela comunidade, que prefere a solução mais imediata para o problema, mais correctiva, como se fosse necessário estancar qualquer possível contágio.

O filme, que tinha começado com um ritual de grupo, um mergulho alegre de um bando de amigos num lado gelado, acaba com uma caça, outro evento de grupo, que aqui ilustra o estilhaço da comunidade, transformando-se num momento de total solidão e abandono. O mergulho inicial é um de vários eventos comunitários, de convívio de grupo, a que assistimos ao longo do filme, como o ritual de bebida e cânticos entre amigos ou a própria caça, rituais inclusivos em que ninguém pode-deve ficar de fora, sob a suspeita de ser olhado de lado, de passar por diferente - e Lucas contenta-se em ser parte participativa. Jagten debruça-se sobre como a mentalidade de grupo actua, e como esta é inerente ao comportamento religioso, à necessidade de julgar os outros pela sua conduta. A procura de qualquer desvio-traição em relação à comunidade afigura-se como uma necessidade de sobrevivência, um processo de caça mental. The Idiots de Trier construía-se à volta de um grupo de pessoas que se tentavam afastar do comportamento considerado aceitável e que acabam castigadas por isso. Em Festen, o filho depois da denúncia é agredido e abandonado por membros da família, castigado por quebrar a ordem, enquanto um convidado negro tem que suportar uma sala embriagada em cantigas racistas - é o desfazer das aparências civis. Agora Vinterberg mergulha numa escuridão ainda mais profunda, ilustrada pela cena onde o filho de Lucas é agredido por antigos amigos do pai, ruindo não só a fachada social de civilidade, mas os próprios fundamentos da sociedade onde tal é possível acontecer. No final continua a existir debaixo da superfície o tal sentimento de dualidade, entre a falsa paz social e a fragilidade do tecido comunitário. Se tudo parecia resolvido, Lucas não consegue esquecer as cicatrizes, porque há feridas que cortam demasiado fundo.

Little Dieter Needs to Fly (1997)

Little Dieter Needs to Fly

Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh.