Jagten (A Caça) de Thomas Vinterberg, Dinamarca 2012, 9/10
No filme de 1960, Jungfrukällan (A Fonte da Virgem), de Ingmar Bergman, uma família depois de perceber que os estranhos a quem deram guarida na sua casa são os mesmos que antes tinham violada a filha mais nova, acaba por exercer uma vingança violenta sobre os intrusos, pondo em prática a sua própria justiça. Esse filme ilustra uma certa moralidade nórdica, em que uma civilidade exemplar é corrompida por um comportamento vingativo de carácter religioso, em relação ao que julgam um ataque à tranquilidade e aos alicerces do seu modo de vida - não olhes ao que eu faço mas antes para o que eu digo. Este é um sentimento que está sempre presente em Jagten, e é transversal a vários filmes escandinavos, exposto quer por Bergman ou presente na psicologia dos filmes de Lars von Trier. É algo a que Vinterberg já tinha aludido em Festen, o seu filme de 1998, quando perante uma sala de jantar repleta de convidados, o filho anuncia que em criança foi abusado sexualmente pelo pai aniversariante - ninguém sabe bem como reagir, mas o silêncio revela o desconforto pela ruptura com a normalidade, preferindo ignorar o que ouviram, à espera que tudo seja esquecido. Em Jagten, a influência religiosa é ainda mais acentuada, quando na pequena comunidade onde decorre a acção do filme, a modernidade convive com a religião, e se toda a aldeia está presente na missa de Natal, é porque a igreja é o local onde decorre a cena chave do filme, onde a condenação convive com a expiação.
Jagten começa por mostrar o quotidiano da personagem principal, Lucas, um professor de infantário, para quem as coisas começam lentamente a correr bem depois de terem corrido mal, antes de começarem a correr pior. Recém-divorciado e no meio de uma luta de custódia pelo filho, Lucas parece contente com o seu emprego, com a sua integração na comunidade e pelo apoio dos seus amigos, e até envolvido num romance promissor com uma colega de trabalho. Mas uma sequência de eventos, que Vinterberg ilustra cuidadosamente a diferentes níveis, de modo a estabelecer desde logo as escolhas que se seguem, vai abalar a vida de Lucas, quando uma criança do infantário o acusa de abusos sexuais. Uma das virtudes do filme é o facto de não deixar dúvidas em relação ao que aconteceu, eliminando a ambiguidade simples para explorar a complexidade de terrenos mais pantanosos. A partir da denúncia tudo complica-se, em grande parte pelo modo como a directora do infantário tenta resolver o que aconteceu, e as pessoas próximas de Lucas começam a abandona-lo. É o início de um longo processo de deserção violenta pela comunidade, que prefere a solução mais imediata para o problema, mais correctiva, como se fosse necessário estancar qualquer possível contágio.
O filme, que tinha começado com um ritual de grupo, um mergulho alegre de um bando de amigos num lado gelado, acaba com uma caça, outro evento de grupo, que aqui ilustra o estilhaço da comunidade, transformando-se num momento de total solidão e abandono. O mergulho inicial é um de vários eventos comunitários, de convívio de grupo, a que assistimos ao longo do filme, como o ritual de bebida e cânticos entre amigos ou a própria caça, rituais inclusivos em que ninguém pode-deve ficar de fora, sob a suspeita de ser olhado de lado, de passar por diferente - e Lucas contenta-se em ser parte participativa. Jagten debruça-se sobre como a mentalidade de grupo actua, e como esta é inerente ao comportamento religioso, à necessidade de julgar os outros pela sua conduta. A procura de qualquer desvio-traição em relação à comunidade afigura-se como uma necessidade de sobrevivência, um processo de caça mental. The Idiots de Trier construía-se à volta de um grupo de pessoas que se tentavam afastar do comportamento considerado aceitável e que acabam castigadas por isso. Em Festen, o filho depois da denúncia é agredido e abandonado por membros da família, castigado por quebrar a ordem, enquanto um convidado negro tem que suportar uma sala embriagada em cantigas racistas - é o desfazer das aparências civis. Agora Vinterberg mergulha numa escuridão ainda mais profunda, ilustrada pela cena onde o filho de Lucas é agredido por antigos amigos do pai, ruindo não só a fachada social de civilidade, mas os próprios fundamentos da sociedade onde tal é possível acontecer. No final continua a existir debaixo da superfície o tal sentimento de dualidade, entre a falsa paz social e a fragilidade do tecido comunitário. Se tudo parecia resolvido, Lucas não consegue esquecer as cicatrizes, porque há feridas que cortam demasiado fundo.