Al Midan (The Square), 2013, Egipto, 9/10
nomeado para Oscar Melhor documentário 2014
nomeado para Oscar Melhor documentário 2014
Um filme sobre a praça Tahrir poderia ser apenas sobre os eventos que ocorreram em Janeiro de 2011 e o primeiro momento da primavera árabe, sobre a história que poderia dar origem a vários filmes. Mas este é um filme sobre as várias histórias que se seguiram, que acompanha a luta do povo egípcio mesmo depois de os olhares ocidentais desistirem de o fazer. Da realizadora de Control Room (2004), Al Midan é uma espécie de filme-guerrilha feito a partir da colaboração e colagem de várias fontes, que nos mostra com clareza as várias etapas da revolução egípcia, desde o pedido inicial de demissão de Mubarak, às manifestações contra a usurpação do poder pelos militares, e os protestos contra o governo de Morsi e da Irmandade Muçulmana.
Contar a história do filme seria descrever a cronologia dos acontecimentos no Cairo, epicentro da revolução árabe. Mas o que também distingue o filme é o facto de acompanhar de perto algumas personagens, e o arco narrativo de cada um ao longo do filme. É um mecanismo utilizado frequentemente por filmes de ficção, para o espectador melhor se identificar com a história, que é, aqui, inteligentemente adoptado pelo filme para criar um retrato mais íntimo e mais próximo da acção. Al Midan é todo sobre estar perto da acção, utilizando várias formas para capturar os eventos, desde câmaras fotográficas a telemóveis, e se o filme recorre por vezes a diferentes tipos de media, como vídeos da internet e gravações de discursos televisivos, nunca compromete a sua qualidade. Não deixa de ser surpreendente que o resultado final apresente imagens de uma clareza tremenda, pela presença da realizadora e da sua equipa no sítio certo, na altura certa, mesmo que isso implique muitas vezes estar debaixo de fogo. Isso deve-se, em parte, a um espírito de criação coletiva em que a câmara passava de mão em mão, através do qual diferentes personagens trabalham para um mesmo fim, tal como os revolucionários do filme - vemos algumas vezes diferentes pessoas a correrem para pegarem numa câmara e apontarem-na para a praça, para gravar o momento. O sentimento era que era imperativo registar o que estava a acontecer, e aqui o que é importante é mostrar o que aconteceu.
O filme apresenta uma diversidade notável de figuras que ajudam a mostrar a natureza do movimento, nas suas diferentes vertentes e motivações. Um dos trunfos do filme é precisamente que, ao invés de mostrar os habituais depoimentos através de entrevistas controladas, as declarações das personagens surgirem como trocas de ideias em conversas, com direito a contraditório imediato. Dentro deste mosaico de personagens, algumas merecem destaque pelo seu caminho ao longo do filme. Uma delas é Khalid Abdalla, actor britânico de descendência egípcia, cuja notoriedade será importante para apresentar o ponto de vista dos ocupantes junto dos media internacionais. Khalid, mais velho que muitos dos seus colegas, é inabalável na sua vontade de mudança, mas parece mais pragmático pela consciência das dificuldades pela frente, e é visível como é afectado pelo desgaste dos diferentes retrocessos e derrotas. Outra das figuras importantes é Magdy, que é indissociável da sua condição de membro da Irmandade Muçulmana. Mesmo que apresente ideias próprias, e apesar de Magdy respeitar e ser respeitado pelos seus companheiros, acaba por ver-se em conflito consigo mesmo quanto ao que fazer - a evolução de membro de uma organização clandestina para organização opressora deixa as suas marcas. Por fim, Ahmed, um dos mais novos, é a energia contagiante do filme, um dos membros mais activos no terreno (é creditado como co-director de fotografia no filme) e sempre disposto a debater, até lhe falhar a voz, com quem acha erradas as escolhas da revolução. Numa das cenas mais extraordinárias do filme, logo após um dos primeiros confrontos mais violentos na praça, vemos Ahmed escondido num corredor escuro, iluminado apenas pela luz da câmara, enquanto este reconta o que acabou de testemunhar, ainda a tremer - é a urgência do filme à vista.
Esta é uma história notável, contada de forma não menos notável e completamente cativante. Numa das cenas perto do fim, uma equipa projecta parte deste filme na própria praça, e as reações são de uma comoção em surdina mas reveladora - este visionamento permite perspectiva sobre o tempo que entretanto passou, permite que as pessoas da praça percebam que ficou tudo registado, toda a luta, e muitos vêem pela primeira vez os acontecimentos sob uma nova luz. Este é um filme sobre a importância da vitória do povo egípcio, de ganhar uma cultura democrática e de exigência, finalmente. Uma revolução que não se cala quando a solução é igual ou pior que a anterior, depois de tantos anos de silêncio. E ter a consciência que é um longo caminho, mas uma viagem que vale a pena - temos muito a aprender com este exemplo.