Eldorado XXI (2016) de Salomé Lamas, 9/10
texto retirado da cobertura ao Porto/Post/Doc 2016 publicado aqui
Outro filme que representa uma verdadeira viagem às trevas é Eldorado XXI (2016) de Salomé Lamas. A diferença é que aqui o pesadelo é visível à superfície, ocupa toda a paisagem, e por isso é mais obsceno. O filme representa uma continuação do trabalho de Lamas no estudo de comunidades que sobrevivem nas margens da sociedade, e ao mesmo tempo de afirmação de um rigor formal – a forma como aqui filma a natureza remete para a sua anterior curta A Torre (2015), particularmente pelo uso do plano fixo – mas acima de tudo, reafirma um trabalho sobre a representação da memória, indicador da dedicação a registar um tempo que perdura enquanto não se extingue. O tema do filme é La Rinconada, uma remota aldeia mineira no Peru, situada a 5500 metros de altitude, onde uma legião de pessoas que se confundem partiu num último suspiro, à procura de uma sobrevivência condenada à partida. Após uns breves planos a mostrar a localização desta colónia mineira, a câmara fixa-se numa encosta a observar uma procissão de trabalhadores anónimos num sobe e desce, num plano que se prolonga por quase uma hora, enquanto a escuridão se apodera lentamente da imagem. É um plano duro, equivalente à aridez do local e desamparo daquelas pessoas, mas que se revela recompensador com a passagem do tempo. Após alguns minutos surge uma emissão da rádio local a acompanhar as imagens, e ouvimos relatos das condições de vida, das histórias do passado de algumas das pessoas, das dificuldades e implicações na saúde daquele trabalho.
O filme estabelece assim com aquele plano um diálogo com o espectador, que muito antes de ver as condições em que vivem e trabalham aquelas pessoas, começa a imaginar e a tentar recriar como será possível a vida naquele sítio e naquele momento, algo que será desvendado apenas nos planos seguintes. Apesar de alguns momentos notáveis que sublinham a coragem de algumas das pessoas que estão numa situação frágil, e em particular mulheres, ao organizarem-se para ultrapassar carências daquela comunidade, Eldorado XXI é um verdadeiro pesadelo anestesiante que funciona como um murro no estômago. O paralelo criado entre o sacrifício daquelas pessoas numa última esperança de subsistência, num sítio onde a esperança já não chega, e a destruição sobre a natureza, que aparece como derradeiro legado de um capitalismo predatório, funciona como uma metáfora para a humanidade. Também por isso, Eldorado XXI foi um justo vencedor da competição do festival, e não deixa de ser curiosa a ligação com o vencedor do ano passado, Beixi Moshuo (Behemoth, 2015), um filme que começa com uma série de explosões numa mina. Behemoth é o nome de uma criatura mitológica que se alimentava de montanhas e El Dorado remete para uma ideia de encontrar riquezas milagrosamente – são as lendas do passado a voltar como avisos contemporâneos.
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