outubro 21, 2010

Exit Through the Gift Shop

Exit Through the Gift Shop de Banksy, UK/EUA 2010, 9/10


texto também disponível no Ipsilon: http://ipsilon.publico.pt/Oscares/texto.aspx?id=277940

Um filme-demolição

Banksy, prolífero e incógnito artista de intervenção conhecido pela sua arte-terrorismo, atira-se a um novo formato neste auto-intitulado primeiro "street art disaster movie" da mesma forma que ataca uma parede em branco numa qualquer rua em Londres debaixo de uma câmara de segurança - é preciso agitar, provocar. É um portento golpe de estado em película a um certo panorama artístico contemporâneo este filme equivalente a um graffiti desafiador. De elevada acidez na forma como utiliza um novo registo para deixar a sua marca de desconstrução, Banksy ataca a crescente comercialização da street art e o excesso de promoção e hype de alguns artistas que utilizam a divulgação como substituição do talento. Criticando a apropriação desta arte por outras formas como a publicidade e a perda de pureza de algo que começou inocentemente por reclamar espaços públicos para si, acaba com uma fantástica declaração sobre o estado actual das coisas. Assumindo o lado artificial de qualquer filme, mesmo o de um inserido num género institucionalmente associado à verdade como o documentário, Banksy parte para uma exploração do subgénero mockumentary – um prankumentary na verdade - na forma como joga com expectativas e com a validade da informação apresentada. É realmente uma boratização de um género que é fabricada para através de um registo menos sério desarmar a audiência, mas sem deixar de apresentar uma mensagem-crítica importante que é capaz de passar despercebida no jogo de manipulação apresentado.

Depois da inebriante sequência inicial de créditos com o fabuloso hino de Richard Hawley ("Tonight the streets are ours") a pairar sobre uma montagem de imagens de graffiters em acção em cenas ridiculamente cool, o filme começa com a introdução do próprio Banksy (se é mesmo ele) que escondido na sombra se senta no seu trono para começar a dirigir-nos: "What is the film about?" Banksy: "The film is the story of what happened when this guy tried to make a documentary about me but he was actually a lot more interesting than I am, so now the film is kinda of about him."

Assim somos introduzidos a Thierry Guetta - depois de um segundo de desconfiança, mais interessante que Banksy? - vedeta fabricada por Banksy para representar de um modo mais ligeiro aquela pessoa que está sempre presente e acompanha qualquer graffiter nas suas acções para registar em vídeo as intervenções (qualquer artista-marca passa também pela sua auto-promoção) e de um modo mais cáustico os tipos de pessoas que se colam a estes artistas à procura de validação pessoal apesar da falta de trabalho original. Guetta é uma fabulosa construção numa caricatura tipificada, o francês excêntrico que apesar de viver há décadas na América ainda mal consegue articular-se em inglês e alguém que substitui a falta de talento com impertinência. Sempre de câmara em punho grava todos os momentos da sua vida, banalizando esse registo e efectivamente retirando importância aos momentos que deveria filmar. O seu propósito é mesmo a presença junto de artistas consagrados, uma espécie de stalker artístico - obviamente que guarda as cassetes em caixas para nunca mais rever o que filmou. Aliás, logo no início somos apresentados a uma pista para a mensagem séria do filme que aparecerá mais tarde: Guetta ganha a vida a vender roupa com defeitos que apelida de roupa de designer, permitindo-se assim aumentar o preço para pessoas crédulas desejosas de tal material.


A apresentação da personagem de Guetta, o veículo narrativo do filme, permite-nos entrar no submundo destes artistas que reclamam as ruas como suas para espaço de manifestação contra-cultural e chegar perto de Shepard Fairey, Space Invader, Monsiuer A, Borf e Swoon entre outros, para um olhar íntimo aos nomes mais icónicos deste vibrante movimento que é aqui apresentado. É esta rara aproximação que nos permite assistir de perto a estes artistas furtivos em acção a manipular a escuridão à procura do local-delito certo e é a própria natureza ilícita dos seus actos que provoca uma maior curiosidade - quase que queremos absorver um pouco daquela adrenalina. Através de alegadas filmagens de Guetta temos acesso a momentos inesquecíveis como Banksy disfarçado a colocar uma moldura sua num museu em NY, ou Fairey a subir a um telhado na Praça da Concórdia em Paris para colocar furtivamente um dos seus gigantes de marca, ou Invader a espalhar os seus desenhos no sinal de Hollywood, ou a fantástica aparição de Banksy no muro da Palestina - um olhar ao modus operandi outrora inacessível destes fora-da-lei mediáticos. Uma exposição de Banksy em LA é desculpa para mostrar toda a relevância que o movimento street art obteve atingindo o mainstream. As obras de Banksy passam a ser vistas como uma comodidade valiosa para ser coleccionada e não é surpresa que a sua exposição seja visitada por celebridades vápidas de Hollywood, incapazes de lidar com o elefante colocado na sala por Banksy para desarmar a própria importância daquela exposição na capital da vaidade e aparências, algo que será exposto na parte final do filme.

É no último acto do filme que Banksy parte para a ruptura com uma tradicional celebração-exposição do movimento. Num processo de comentário sardónico em relação a tudo que agora rodeia esse movimento começa por expor o pretensiosismo de Guetta com a apresentação da versão final do documentário que este supostamente editou: “Life Remote Control”. É mais uma construção exagerada que funciona como uma crítica a filmes que se levam demasiado a sério na sua inovação abstracta e experimentalismo e ao mesmo tempo como uma defesa de Banksy contra críticas ao convencionalismo formal que escolheu para apresentar a sua história. Banksy propõe a Guetta que este se dedique a fazer a sua própria arte que ele se encarregará do rumo do documentário dando mais tarde origem à melhor frase do filme: "Eu costumava incentivar toda a gente a fazer arte. Agora nem por isso".

Inspirado pelas palavras de apoio Guetta adopta o pseudónimo Mr Brainwash e prepara uma exposição em L.A., imitando Banksy. É aqui que o filme descarrila num rodopio de mensagens críticas sobre o paradigma artístico aqui questionado. A curiosidade em volta de um artista completamente desconhecido mas patrocinado pelos maiores nomes atinge níveis absurdos e o hype à volta do evento-bomba leva a que esgotem rapidamente as entradas para a inauguração. Guetta chega a vender obras no valor de 1 milhão de dólares mesmo antes de alguém conhecer o seu trabalho. As palavras de apoio de Banksy e Fairey abrem as portas do mundo artístico a Guetta e permitem-lhe saltar etapas, efectivamente validando-o como artista apenas através de auto-promoção, mesmo sem apresentar qualquer trabalho. É a forma de Banksy questionar como é que a sociedade elege os seus autores de eleição, quem e como é que se fabricam as opiniões que depois são seguidas pelas massas, sempre num jogo subjugado a interesses económicos no que é uma demonstração factual da mercantilização da street art. Deixou de ser algo puro que apenas existia nas ruas e era de todos para poder ser comprado em uma qualquer gift shop e especialmente algo que deixa de ter valor intrínseco mas valor que lhe é atribuído por outros. O gesto anti-autoritário passou a conformismo simples e neste caso ninguém sabe porque é que o trabalho de Mr Brainwash é valioso, apenas o é porque alguém disse que sim, que é o gracejo do filme. Porque parece existir um conjunto de pessoas que seguem  sem espírito crítico a opinião geral instituída através dos media, com medo de serem excluídas de uma parte da sociedade, porque senão apreciam é porque não percebem, então têm que gostar para pertencer. Têm tanto que pertencer, especialmente em L.A., que até derrubam as barreiras de segurança para poderem entrar na exposição.


Guetta, elevado quase da noite para o dia a figura líder do movimento que tenta infiltrar, é então mais um caso de um imperador que vai nu já que o próprio trabalho apresentado por si não tem qualquer carácter de crítica política (ao invés de Banksy e Fairey) e as suas obras são pouco mais que cópias desinspiradas e derivativas do trabalho de outros. A facilidade com que conquista a crítica e a população geral parece deixar Banksy confuso mas pouco surpreendido e acima de tudo divertido com a vitória do absurdismo. A própria rapidez da ascensão de Guetta parece deixa-lo perdido dentro da sua megalomania. Com a aproximação da data de inauguração da sua exposição vemo-lo a "criar" obras em rápida sucessão, efectivamente dependendo de assistentes que sucumbem ao seu novo estatuto ditatorial para criarem algo a partir das suas vagas linhas de orientação. A falta de intervenção artística de Guetta nas obras que serão criadas em série pelos seus assistentes não poderia ser mais explícita (a única vez que o vemos perto de uma lata de tinta é quando entorna uma na mala de um jipe). É mais uma crítica de Banksy à forma como os assistentes são utilizados e se entregam ao que parece ser uma fábrica de manufacturação de réplicas fáceis e desprovidas de qualquer fio de autor, como publicitários que entregam o seu talento a outros, aqui meros peões nas mãos de Guetta. Banksy numa vertiginosa sucessão de golpes leva a casa abaixo e arrasa tudo e todos neste filme-demolição. Será o equivalente a colocar uma peça no British Museum mas menos arriscado.

Banksy e Fairey surgem nesta colaboração como uma versão moderna de Duchamp e Picabia na forma como extravasam a forma que começaram por explorar para partir para um registo mais ambicioso. Parodiando todo o espectáculo à volta da street art enfiada numa galeria e que com a subida de popularidade  abandonou o subterrâneo e passou a fazer parte da cultura consumista, questionam assim o papel da arte nessa sociedade. A realidade é que Guetta pode não ser uma criação artística dos dois, apesar de todas as pistas que apontam para isso e que são deixadas ao longo do filme (e de outras opiniões nesse sentido*), mas isso não deixaria de ser cómico-trágico se fosse verdade. E Banksy é extremamente seco nas palavras com que fecha o filme: "maybe it means art is a bit of a joke".

*
Here's Why the Banksy Movie Is a Banksy Prank
Is Banksy’s ‘Exit Through the Giftshop’ a hoax too far?


outubro 18, 2010

Sally Menke

em discurso directo:

"The thing with Tarantino is the mix-and-match. We do study other films and other scenes but only to get the vibe we need for our scene – like in Kill Bill when Uma [Thurman]'s facing off the 5.6.7.8's and we looked at some Sergio Leone close-ups, to see how we wanted to cut that scene. Our style is to mimic, not homage, but it's all about recontextualising the film language to make it fresh within the new genre. It's incredibly detailed. There's nothing laissez-faire about Quentin's approach, but I know his film voice, always have done.

Music is one of his obsessions, so I've cut a lot of great scenes to music. He's very specific and will play music on set all day to get everyone in the mood. I think he goes to sleep with his iPod on when we're filming, because the music becomes the rhythm of his directing. Oddly, I don't cut to music. I just make the scene work emotionally and dramatically, and then Quentin will come in and lay the track over it and we'll tweak it to the beats."

outubro 14, 2010

Manoro

Manoro de Brillante Mendoza, Filipinas 2006 – 6/10


Manoro começa por ser um um registo puramente documental, com a câmara estacionada a capturar momentos da realidade para mais tarde deixar-se infiltrar por um registo ficcionado que ajuda a compor a carta de intenções do filme. Logo no início somos confrontados com um cartão que refere o problema de analfabetização nas Filipinas e vemos o trabalho de uma ONG em tentar expandir a educação a crianças desfavorecidas e a primeira sequência mostra-nos um grupo dessas crianças no último dia de aulas num caos trivializado pela sua habituação. É quando Mendoza segue estas crianças quando são transportadas para as suas aldeias remotas que somos confrontados com a dura realidade da sua existência, aldeias onde mesmo assim a sua educação revela importância pela forma como lhes vai permitir ensinar os familiares mais velhos a escrever o nome de forma a poder votarem nas próximas eleições presidenciais. As crianças tornam-se o professor para o resto da aldeia, ganham um próposito, mas não é muito claro se é um esforço útil para aquela população.

É portanto acima de tudo uma notação documental - reforçado pelo uso de actores não profissionais - da importância da educação e das consequências directas no quotidiano filipino desta demonstração do poder de um pequeno gesto que representa uma evolução mínima mas que tem efeitos directos sobre a vida das pessoas pela eliminação de barreiras socias. Mas Mendoza entra num registo ficcionado para através do quotidiano dessas aldeias gravar a distância em relação ao resto do mundo, do ritmo parco e da lentidão de ensinar aos mais velhos como podem votar, e se é enternecedor pela forma como estes prestam atenção ao comando dos mais novos e como os mais novos ganham uma aplicação prática para a educação que tiveram – o acto democrático adquire para eles a ideia de algo relevante, o que nem sempre é compartilhada pelos mais velhos – é a entrada no seu dia a dia exógeno e de pobreza que permite compreender a tese do filme que reside no facto de uma educação e de uma participação democrática quando confrontados com esta realidade exposta e alongada no filme se tornar quase numa noção estrangeira às vidas das pessoas que esta tentativa de ajuda de alfabetização tenta atingir, que apenas o filme consegue atingir na intimidade dos gestos das suas vidas.

Logo o contraste criado por Mendoza acaba por revelar um tom amargo, dividido entre as composições contemplativas das dificuldades quotidianas e da perturbação que a educação traz a estas populações momentaneamente: o progresso frugal que esta educação permite acaba por ter resultados mistos. Se a educação permite a integração desta população quase esquecida no acto democrático, acaba por ficar um sentimento de irrelevância dessa mesma participação tal é a distância em relação ao mundo em que tentam entrar, algo que acaba no fim por se revelar nalguma desilusão dos mais novos e que é ilustrada num exemplo: depois de ter aprendido a escrever o nome em letra cursiva os mais velhos quando confrontados com o seu nome escrito a letra de impressa bloqueiam porque é algo que desconhecem. O conflito entre o progresso da educação e o distúrbio do isolamento é apenas resolvido na última sequência do filme quando no fim do dia todos se juntam no centro da aldeia e enquanto os que não votaram e os que votaram concordam sobre a pouca importância disso, celebram a comunidade que ali vivem através do esforço de alguém pouco interessado em votar que acompanhamos durante o dia inteiro à caça de um javali, que depois oferece esse fruto ao resto da aldeia, junta no seu isolamento e abandono e fica óbvio que o importante para eles é a partilha e convivência naquele círculo fechado independemente do que acontece a uma distância consíderavel - é uma distância já demasiada entranhada. É uma imagem que Mendoza chega no fim deste filme para expor a sua mensagem legítima mas sempre pouco fracturante, de uma forma quase reprimida no seu realismo social, longe do tom que iria explorar mais tarde.