fevereiro 21, 2015

Citizenfour (2014)

Citizenfour

Citizenfour de Laura Poitras, EUA 2014, 9/10
vencedor Oscar Melhor Documentário

Citizenfour é um documentário atípico, já que decorre quase todo num quarto de hotel, durante uma longa entrevista-confissão. Porém, os elementos visuais do filme são sintomáticos dos dias que correm: ecrãs que simulam computadores com textos informativos, trocas de emails e chats online que fornecem contexto, telemóveis desligados e cartões microsd, fios usb de portáteis e câmaras, e uma pessoa só, que prende o destino do mundo durante um momento. Mas é também sobre muito mais que aquele quarto, que aquelas conversas secretas, que as palavras enigmáticas que vão surgindo nos diferentes ecrãs, dos jornalistas que fazem emissões à porta do hotel, ou a própria internet: é uma história sobre todos nós. Citizenfour é o pseudónimo usado por Edward Snowden nas comunicações com Laura Poitras, a realizadora do filme, que está a ser vigiada pelo governo americano desde o seu primeiro filme, e que é uma das pessoas que Snowden contacta para revelar o seu segredo (o outro é Glenn Greenwald, jornalista do The Guardian). Snowden é empregado por uma agência de segurança contratada pelo governo americano para espiar as comunicações online entre cidadãos americanos e estrangeiros. Com este acesso ganha conhecimento das ilegalidades praticadas em nome desta missão, dos programas secretos de espionagem em curso, e começa a coleccionar um arquivo imenso de documentos, que serão usados como provas a distribuir pelos meios de comunicação. Se o filme aparece mais de um ano depois dos acontecimentos retratados, quando a maior parte da história já é conhecida, será através de Citizenfour que descobrimos o que acontecia por trás dos bastidores, durante a preparação de uma narrativa para o público compreender os factos, e por consequência, que vemos de perto as dúvidas e a explicação da motivação de Snowden, expandindo o impacto desses acontecimentos, que ganham assim novo fôlego.

Com Citizenfour temos acesso ao discurso directo de Snowden, preocupado desde o início com que não fosse ele a notícia, que a sua história pessoal não ofuscasse a exposição dos factos denunciados, como acaba eventualmente por acontecer nestes casos, como no exemplo de Julian Assange e as Wikileaks. Os factos, assustadores só por si, ganham assim outra dimensão arrepiante, já que Snowden é o mais eloquente a falar sobre as implicações dos métodos que tenta expor, por estar ele próprio por dentro do sistema que denuncia. De rosto fechado e gestos nervosos, se Snowden parece assustado com o próprio destino, é resultado do seu conhecimento das capacidades de espionagem que entram na casa de todos nós, e até onde os responsáveis estão dispostos a ir para esconder isso do público. O alcance dessa paranóia, que acaba por revelar-se justificada, é exemplificada ao longo do filme com pequenos detalhes práticos, como quando Snowden pede aos presentes para retirem as baterias dos telemóveis, ou quando desliga a linha do telefone do quarto de hotel, ou ainda quando se esconde debaixo de uma toalha para escrever num portátil, para não vermos quais as teclas que pressiona, numa imagem icónica, como um fantasma iluminado pela luz do ecrã.

Num filme dominado por tecnologia, a repetição das imagens no quarto do hotel nunca significa uma monotonia de interesse. A presença de outros dois jornalistas que o entrevistam serve visualmente como substituto do espectador, como quando vemos os seus olhares de estupefacção perante os factos enunciados por Snowden, e perante a destreza informática deste. A exiguidade do espaço de acção funciona também como uma lembrança constante da necessidade de segredo, do aprisionamento de Snowden ao quarto por questões de segurança e à limitação de movimentos por parte dos envolvidos nesta história. Laura Poitras permite-se ainda humanizar a figura de Snowden, quando contrasta a sua preocupação com todos os detalhes logísticos com um desleixo na sua apresentação, e quando este fala da sua relação com a namorada.

No fim de Citizenfour, Snowden acaba com destino incerto, vítima da sua consciência, enquanto se tenta organizar uma missão para o deslocar em segredo para outro local. Snowden acabará por encontrar refúgio na Rússia, onde encontramos a imagem final do filme, que resume o filme todo numa composição: Snowden encontra-se na cozinha, reencontrado com a sua namorada, numa cena quotidiana de intimidade, a qual observamos à distância através de uma janela, uma imagem irónica para um filme sobre a invasão de privacidade. Este filme sobre a história de Edward Snowden é afinal sobre a história colectiva de todos nós no início do século, e é mais um exemplo de como, se antes as histórias eram sobre organizações ou entidades colectivas, agora são sobre os indivíduos que enfrentam sozinhos essas entidades, como no caso de Bradly Manning ou Snowden.

Sobre Dirty Wars, filme de Jeremy Scahill sobre os segredos da guerra americana ao terrorismo, tinha escrito que “mas acima de tudo somos confrontados, através de Scahill, com a conclusão que se antigamente era possível um jornalista mudar o mundo com o que denunciava, o sentimento é que agora isso é impossível, pois as denúncias de direitos perdidos acabam engolidas por um mar de propaganda e indiferença – no fim do filme, os mesmos que Scahill tenta denunciar acabam celebrados, enquanto as vítimas e a justiça acabam esquecidas.” Agora, mesmo que as consequências dos factos revelados ainda sejam mínimas, fica pelo menos a esperança de que as acções de uma pessoa ainda podem ser ter impacto, desde que seja possível ouvir o seu lado da história.

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