Citizenfour de Laura Poitras, EUA 2014, 9/10
vencedor Oscar Melhor Documentário
Citizenfour é um documentário atípico, já que decorre quase todo
num quarto de hotel, durante uma longa entrevista-confissão. Porém, os
elementos visuais do filme são sintomáticos dos dias que correm: ecrãs que
simulam computadores com textos informativos, trocas de emails e chats online que
fornecem contexto, telemóveis desligados e cartões microsd, fios usb de portáteis e câmaras, e uma pessoa só, que
prende o destino do mundo durante um momento. Mas é também sobre muito mais que
aquele quarto, que aquelas conversas secretas, que as palavras enigmáticas que
vão surgindo nos diferentes ecrãs, dos jornalistas que fazem emissões à porta
do hotel, ou a própria internet: é uma história sobre todos nós. Citizenfour é o pseudónimo usado por
Edward Snowden nas comunicações com Laura Poitras, a realizadora do filme, que
está a ser vigiada pelo governo americano desde o seu primeiro filme, e que é
uma das pessoas que Snowden contacta para revelar o seu segredo (o outro é Glenn Greenwald, jornalista do The Guardian). Snowden é
empregado por uma agência de segurança contratada pelo governo americano para
espiar as comunicações online entre
cidadãos americanos e estrangeiros. Com este acesso ganha conhecimento das
ilegalidades praticadas em nome desta missão, dos programas secretos de
espionagem em curso, e começa a coleccionar um arquivo imenso de documentos,
que serão usados como provas a distribuir pelos meios de comunicação. Se o
filme aparece mais de um ano depois dos acontecimentos retratados, quando a
maior parte da história já é conhecida, será através de Citizenfour que descobrimos o que acontecia por trás dos
bastidores, durante a preparação de uma narrativa para o público compreender os
factos, e por consequência, que vemos de perto as dúvidas e a explicação da
motivação de Snowden, expandindo o impacto desses acontecimentos, que
ganham assim novo fôlego.
Com Citizenfour temos acesso ao discurso directo de Snowden, preocupado
desde o início com que não fosse ele a notícia, que a sua história pessoal não
ofuscasse a exposição dos factos denunciados, como acaba eventualmente por
acontecer nestes casos, como no exemplo de Julian Assange e as Wikileaks. Os factos, assustadores só
por si, ganham assim outra dimensão arrepiante, já que Snowden é o mais
eloquente a falar sobre as implicações dos métodos que tenta expor, por estar
ele próprio por dentro do sistema que denuncia. De rosto fechado e gestos nervosos, se
Snowden parece assustado com o próprio destino, é
resultado do seu conhecimento das capacidades de espionagem que entram na casa de
todos nós, e até onde os responsáveis estão dispostos a ir para esconder isso
do público. O alcance dessa paranóia, que acaba por revelar-se justificada, é
exemplificada ao longo do filme com pequenos detalhes práticos, como quando
Snowden pede aos presentes para retirem as baterias dos telemóveis, ou quando
desliga a linha do telefone do quarto de hotel, ou ainda quando se esconde
debaixo de uma toalha para escrever num portátil, para não vermos quais as
teclas que pressiona, numa imagem icónica, como um fantasma iluminado pela luz
do ecrã.
Num filme dominado por
tecnologia, a repetição das imagens no quarto do hotel nunca significa uma monotonia
de interesse. A presença de outros dois jornalistas que o entrevistam serve
visualmente como substituto do espectador, como quando vemos os seus olhares de
estupefacção perante os factos enunciados por Snowden, e perante a destreza
informática deste. A exiguidade do espaço de acção funciona também como uma
lembrança constante da necessidade de segredo, do aprisionamento de Snowden ao
quarto por questões de segurança e à limitação de movimentos por parte dos
envolvidos nesta história. Laura Poitras permite-se ainda humanizar a figura de
Snowden, quando contrasta a sua preocupação com todos os detalhes logísticos
com um desleixo na sua apresentação, e quando este fala da sua relação com a
namorada.
No fim de Citizenfour, Snowden acaba com destino incerto, vítima da sua
consciência, enquanto se tenta organizar uma missão para o deslocar em segredo
para outro local. Snowden acabará por encontrar refúgio na Rússia, onde
encontramos a imagem final do filme, que resume o filme todo numa composição: Snowden encontra-se
na cozinha, reencontrado com a sua namorada, numa cena quotidiana de
intimidade, a qual observamos à distância através de uma janela, uma imagem
irónica para um filme sobre a invasão de privacidade. Este filme sobre a
história de Edward Snowden é afinal sobre a história colectiva de todos nós no
início do século, e é mais um exemplo de como, se antes as histórias eram sobre
organizações ou entidades colectivas, agora são sobre os indivíduos que
enfrentam sozinhos essas entidades, como no caso de Bradly Manning ou Snowden.
Sobre Dirty Wars, filme de Jeremy Scahill sobre os segredos da guerra
americana ao terrorismo, tinha escrito que “mas acima de tudo somos
confrontados, através de Scahill, com a conclusão que se antigamente era
possível um jornalista mudar o mundo com o que denunciava, o sentimento é que
agora isso é impossível, pois as denúncias de direitos perdidos acabam
engolidas por um mar de propaganda e indiferença – no fim do filme, os mesmos
que Scahill tenta denunciar acabam celebrados, enquanto as vítimas e a justiça
acabam esquecidas.” Agora, mesmo que as consequências dos factos revelados ainda
sejam mínimas, fica pelo menos a esperança de que as acções de uma pessoa ainda podem ser ter impacto, desde que seja possível ouvir o seu
lado da história.
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