junho 27, 2014

Under the Skin (2013)

Under the Skin

Under the Skin de Jonathan Glazer, GB/EUA 2013, 9/10

este texto revela detalhes importantes do primeiro acto do filme

Under the Skin (Debaixo da Pele, 2013) é um filme sobre uma alienígena, um organismo predador à procura de homens para matar, mas é o próprio filme que parece ser extra-terrestre. Jonathan Glazer apresenta-nos um filme desprovido dos elementos básicos, onde a narrativa, diálogo, construção de personagens e contexto são deliberadamente desconstruídos, postos de lado, em favor da criação de um ambiente fantasmagórico e realista, transcendental e agreste, para deixar o espectador a flutuar no vazio. Scarlett Johansson dá corpo a um extra-terrestre, que percorre as ruas de Glasgow ao anoitecer, numa carrinha em busca de homens para levar para casa - a história é minimal, porque o que interessa é a forma. A sequência enigmática que inicia o filme dá o mote para a falta de compreensão em relação ao que está a acontecer, e o objectivo não será criar uma história a partir do que vemos, mas sim deixar-nos submergir pelo pulsar do filme. Under the Skin começa com uma série de imagens plásticas, de raios de luz, que dão lugar a circunferências e depois a um globo ocular, que por sua vez dá lugar a um corpo filmado apenas contra uma luz branca. São imagens conceptuais, que contrastam uma originalidade e beleza estonteante com actos horríficos, que nos remetem para o imaginário esterilizado de 2001: A Space Odyssey, mas são as sequências filmadas nas ruas, e que ocupam a maior parte do tempo do filme, que mais surpreendem.

Parte da singularidade de Under the Skin provém da forma como Glazer procura retratar o quotidiano das ruas, mimetizando a forma voyeurista como a personagem de Johansson tenta estudar o comportamento humano. Glazer recorreu a filmagens reais, de câmara escondida, em que não actores eram filmados sem o saber, quando eram interpelados pela actriz. Glazer desmonta assim a natureza sexual predatória do homem, na forma como este fica agora sujeito ao escrutínio do espectador, quando confrontado com a actriz infiltrada como substituto do espectador. A natureza voyeurista do homem à caça fica exposta, indefeso perante a natureza predatória da personagem de Johansson, e acima de tudo da câmara: the hunter gets captured by the game. Esta perversão de papéis é brilhantemente exemplificada nas sequências em que Johansson conduz as vítimas ao seu covil, uma casa transformada em teia de aranha. Assim que passamos a porta, entramos num cenário artificial de completa escuridão, excepto o corpo iluminado de Johansson, que começa a despir-se, e dos homens que a seguem, que imitando-a, não percebem que o chão que pisam transforma-se lentamente num mar de água translúcida mas negra como areia movediça, que os aprisiona. Quando mais tarde uma das vítimas encontra o corpo de outro a flutuar como um fantasma, neste pesadelo subaquático sem luz, o que se segue é um estonteante arrepio, é como descobrir uma nova fobia que desconhecíamos existir.

A personagem de Johansson revela-se, assim, uma louva-deus, como um remoinho lento de fatalismo que vai crescendo, impossível de parar, de escapar. No entanto, duas sequências alteram momentaneamente este caminho, confundem o que vimos até aí: uma cena inesquecível na praia, onde o comportamento da alienígena atinge tais níveis de desumanidade que a tornam próxima da crueldade humana; na outra sequência, quando um dos homens que Johansson captura não é um predador mas um proscrito da sociedade, alguém que caminha escondido nas sombras, alguém que não quer acreditar que seja possível que outra pessoa se mostre interessada nele. Este encontro funcionará como um catalisador dentro do filme, e sem nunca esquecer que a alienígena age como um autómato, um organismo-máquina mas com uma pele que nos leva a identificar sentimentos humanos ao seu comportamento, é ao tentarmos perceber se esta entidade é capaz de sentir que acabamos por nos sentar na carrinha de Johansson, apanhados a tentar observar, presos pelo jogo do filme. Há ainda outro que factor contribui para um sentimento de inquietude permanente ao longo do filme: o som. Entre prolongados silêncios, destaca-se o papel da música ambiente, uma arrepiante advertência que parece surgir no lugar da falta do batimento do coração mecânico e estranho da alienígena - a música dos créditos iniciais atinge níveis de vertigo

Mais do que um filme de ficção científica, Under The Skin é uma parábola sobre sexualidade, e é no derradeiro filme de Luis Buñuel que encontramos um maior paralelo. A reflexão é evocada em Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto do Desejo, 1977), onde Buñuel explora o poder que as mulheres exercem sobre os homens através da sua sexualidade, onde surgem como objecto proibido, ao mesmo tempo que frágeis, e a quem pertence o poder de escolha. Nesse filme, Buñuel retrata o homem como algo ridículo que se sujeita a tudo no seu comportamento predatório - no caso, um homem demasiado rico e mimado, que tem tudo, excepto o que realmente quer, a aceitação de uma mulher. Mas a mulher era também criticada, igualmente sexo frágil, pela forma como parecia alheia às consequências das suas escolhas, e aos comportamentos que recompensava. O filme acaba literalmente com uma explosão, um atentado ao status quo que tende a persistir. Aqui, ao contrário do filme de Buñuel, a “mulher” está bem ciente do seu poder e das consequências das suas decisões, logo escolhe de forma a satisfazer o próprio desejo. Rejeitando o fatalismo do filme de Buñuel de sujeitar-se a uma ideia de submissão pré-destinada, a “mulher” serve-se agora da objetificação de que é alvo como arma de combate. Em Under the Skin, a perversão é que o objecto do desejo torna-se tangível, finalmente acessível mas com consequências fatais: o homem transforma-se de predator para objecto de caça, e o poder passa para o outro lado. 

junho 17, 2014

Bir zamanlar Anadolu’da (Once Upon a Time in Anatolia)

Bir zamanlar Anadolu’da (Once Upon a Time in Anatolia, 2011)

o texto sobre o Bir zamanlar Anadolu’da (Era Uma Vez na Anatólia), o meu filme preferido de 2012, pode ser lido no ÀPaladeWalsh

maio 22, 2014

Balada da Praia dos Cães (1987)

Balada da Praia dos Cães (1987)

texto sobre Balada da Praia dos Cães (1987) de José Fonseca e Costa para o ÀPaladeWalsh.com

abril 08, 2014

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras

texto sobre Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras para o ÀPaladeWalsh.com

março 12, 2014

L’Atalante (1934) de Jean Vigo

L’Atalante (1934)

texto sobre L’Atalante (1934) de Jean Vigo para o ÀPaladeWalsh.com

março 02, 2014

Dirty Wars (2013)

Dirty Wars (2013)

Dirty Wars (2013) de Rick Rowley, EUA, 7/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário

Dirty Wars é um filme-diário sobre o jornalista americano Jeremy Scahill e um determinado momento na sua vida, em que uma investigação revela dados cada vez mais assustadores e os caminhos percorridos tornam-se cada vez mais perigosos. Scahill é um investigador freelancer, colaborador da revista The Nation, que ganhou proeminência com a exposição das operações da Blackwater durante a guerra do Iraque. No início do filme encontra-se no Afeganistão numa missão de rotina, mas insatisfeito com as acções de propaganda do exército americano que é obrigado a seguir, decide sair sozinho da zona permitida aos jornalistas, para investigar rumores de um ataque a civis. O que descobre numa aldeia acaba por revelar-se chocante, pela violência envolvida, pelos indícios de interferência americana no que aconteceu, e pelos esforços destes em eliminar as provas dessa intervenção.

O filme utiliza uma diversidade de fontes para acompanhar visualmente o texto da narração de Scahill, escrito pelo próprio. Desde imagens de arquivo, a imagens de monitores e tablets à medida que Scahill pesquisa websites à procura de provas, a imagens de Scahill a olhar preocupado ou a andar pelas ruas absorto nos seus pensamentos, o filme não é especialmente estimulante ou inventivo a este nível. O documentário permite conhecermos o dia-a-dia e o método de trabalho de um jornalista de guerra, e a solidão da profissão. O trunfo do filme acaba por ser as imagens recolhidas no Afeganistão e Iémen, onde assistimos a depoimentos dos familiares das vítimas. Dirty Wars coloca-nos assim ao lado de Scahill, para acompanharmos os desenvolvimentos do caso, e sentir os calafrios com as declarações das pessoas que Scahill entrevista e os factos que vai descobrindo, ao mesmo tempo que ele.


Ao longo da investigação do filme, somos apresentados à unidade ultra-secreta do exército americano JSOC (Joint Special Operations Command) e ao rasto de sangue que deixa nos países onde actua; à existência de uma kill list, que passou do baralho de cartas do Iraque a uma lista com centenas de pessoas que podem ser assassinadas a qualquer momento; à descoberta de um americano nessa lista, que terá sido condenado pelo seu país sem direito a julgamento ou defesa; aos ataques por drone e os seus “danos colaterais”. Mas acima de tudo somos confrontados, através de Scahill, com a conclusão que se antigamente era possível um jornalista mudar o mundo com o que denunciava (ex: watergate, pentagon papers), o sentimento é que agora isso é impossível, pois as denúncias de direitos perdidos acabam engolidas por um mar de propaganda e indiferença – no fim do filme, os mesmos que Scahill tenta denunciar acabam celebrados (por altura da morte de Bin Laden), enquanto as vítimas e a justiça acabam esquecidas.

março 01, 2014

The Act of Killing (2012)

The Act of Killing

The Act of Killing de Joshua Oppenheimer e Anónimo, 2012, Dinamarca, 10/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2014

"As I found myself becoming close to this community of survivors, I felt as though I’d walked into Germany 40 years after the Holocaust and the Nazis were still in power" - Joshua Oppenheimer

Logo no início somos avisados que este filme é o resultado de uma série de entrevistas a antigos militares indonésios envolvidos num genocídio, e do processo, através do qual, lhes foi pedido que dirigissem recriações dos actos que cometeram, de forma a registar para a posterioridade tais acontecimentos. O filme acaba, assim, por ser também sobre as consequências deste processo de revisionismo da história e da memória. À medida que surgem as primeiras imagens de The Act of Killing, a incredulidade vai-se acumulando, pondo em causa a natureza do que vemos.

A incredulidade não é em relação à veracidade dos factos narrados, que fazem parte da história da Indonésia no período de 1965-66, durante o qual cerca de um milhão de indonésios foram assassinados, mas sim em relação à forma assombrosa como os participantes do filme contam o seu papel nesses actos. Os participantes no massacre, que aceitam falar para a câmara, relatam com orgulho detalhes macabros dos assassinatos cometidos, celebrando o que fizeram como se se tratasse de um feito heróico. Na sua ingenuidade e ausência de consciência da câmara como prova incriminatória, parece que assistimos a um documentário dos primórdios do género, quando as pessoas agiam livres de constrangimentos, porque ainda não estavam habituadas a uma máquina de filmar e às suas consequências. Mas Oppenheimer leva mais longe do que seria expectável esta espécie de confissão tornada expiação: colaborando com um dos executores que entrevista, arranja forma deste criar um filme sobre o seu passado, com vinhetas que se tornam cada vez mais surreais e absurdas, que confirmam uma espécie de atrofia da memória. O resultado que se segue ultrapassa em muito o conceito inicial - são as tais consequências que o filme avisava.

No centro do filme está um par de personagens: Anwar Congo, um antigo paramilitar, confesso responsável pela tortura e morte de cerca de mil pessoas, e um dos seus protegidos, Herman Koto, responsável por manter a continuidade do regime que os sustenta. Herman é o mais novo, e se de aparência inofensiva, talvez por passar como inapropriado alívio cómico nas recriações, é uma figura sinistra, por ser completamente alheado dos horrores cometidos no passado – era demasiado novo na altura, e é algo que não lhe pesa na consciência. Numa das sequências do filme Herman tenta candidatar-se a um cargo político, e apesar de explicar todo o processo de corrupção que envolve ganhar tal posto, é mesmo assim incapaz de o fazer - fica sumariado o ridículo da sua existência. Já Anwar é uma personagem mais complexa, consciente dos horrores que as suas vítimas sofreram, mas guardado por um sentimento de impunidade de quem ganhou a guerra e se sente, assim, no direito de re-escrever a história, pelo menos na sua imaginação. 

Uma das primeiras sequências do filme com Anwar contém a chave do filme: pouco depois de revelar a Oppenheimer o seu passado, decide leva-lo a um terraço onde executou centenas de pessoas, para melhor mostrar como o fazia. Nesse espaço desolador e banal, Anwar recorre a um stand in para fazer de vítima, enquanto demonstra como atava um fio à volta do pescoço da vítima até esta asfixiar. Anwar chega mesmo a enrolar o fio à volta do próprio pescoço para não ficarem dúvidas, colocando-se assim no papel de vítima. Explica como recorria frequentemente ao álcool e a drogas para ultrapassar os seus actos, mesmo que não assuma vergonha pelo que fazia - era apenas uma tarefa extenuante. Pouco depois, quando confrontado com a gravação desta primeira rudimentar recriação, se Anwar parece perturbado pelo que vê, parece mais preocupado com os detalhes que estavam errados: as roupas usadas, a falta de sangue. Surge assim a ideia de partir para recriações mais elaboradas, para tentar perceber até que ponto se escondem a culpa e os pesadelos do passado.

Para ajudar a compreender o gosto pelo teatral de Anwar, que gostava de imaginar-se como uma espécie de gangster local, este confessa-se admirador e inspirado pelos filmes que via no cinema. Numa das sequências mais frias do filme, Anwar revela como era frequente ele e os seus colegas verem filmes que os deixavam com boa disposição, e como dançavam pela rua a imitar os seus heróis dos filmes americanos até ao tal terraço, onde de seguida torturavam e assassinavam. Torna-se, assim, natural que a maior parte das cenas imaginadas pareçam inspiradas pelos filmes que Anwar conheceu, e que, neste jogo perigoso  em que Oppenheimer acede a produzir as recriações imaginadas por Anwar, corra o risco destas se tornarem desligadas da realidade.

As recriações que o filme apresenta são o que o colocam num patamar diferente, mais próximo de um filme de não ficção, ou de um documentário da imaginação, como Oppenheimer gosta de dizer. Desde recriações de cenas de interrogatório e tortura, que passam do mais rudimentar a sequências ao estilo dos filmes noir de Hollywood, até a sequências musicais, o filme vai descendo até ao fim num sonho febril, alucinado, digno de Herzog. Oppenheimer trabalha com Anwar para criar estas cenas, mas também o confronta com os resultados, e é quando lhe mostra as gravações, que encontramos uma consciência em tumulto. Numa sequência em que Anwar recorre à ajuda de um antigo amigo, que era também paramilitar, este vira-se contra o filme, alertando os envolvidos para o perigo do que estão a fazer, ao mostrarem que não eram as suas vítimas os cruéis e sádicos brutais, mas eles mesmos.

“I think in cinéma vérité, by contrast, it was all about giving people the space to perform on camera, to imagine, to stage themselves on camera as a way of documenting how they see themselves and make sense of their world. In that sense I think cinéma vérité is trying to do something fundamentally more profound than Direct Cinema. I think Direct Cinema’s trying to be insightful by looking at reality in a very close way, while in fact much more is staged than we like to think. In cinéma vérité it’s about trying to make something invisible visible – the role of fantasy and imagination in everyday life” - Joshua Oppenheimer

O mecanismo de confrontar os sujeitos do documentário com a gravação das próprias entrevistas sugere que Jean Rouch terá sido uma influência (em especial Chronique d'un été, 1960), algo visível também nos princípios do cinema vérité de Rouch, que o filme explora – a encenação de uma história para apresentar um retracto mais claro e próximo da realidade, para chegar a uma verdade com mais impacto. Mas The Act of Killing parece também um descendente directo do cinema de Herzog, que é aqui produtor executivo, tal é a proximidade com o cinema do alemão, com os sacrifícios que este acredita serem necessários para chegar ao fulcral de uma história, com a importância de dar uma dimensão cénica a uma história para mostrar a sua verdade – Oppenheimer revela-se um digno herdeiro de Herzog.

Por fim, The Act of Killing deixa uma série de questões em aberto sobre o estado actual da Indonésia, sobre as implicações políticas que a manutenção do actual regime envolve. Mesmo que Oppenheimer seja pouco explícito nessa ligação, utilizando apenas imagens de alguns dos entrevistados em passeio por centros comerciais, suposto símbolo de progresso e de uma Indonésia moderna, fica claro que este regime existe com a permissividade do ocidente, pelo acesso a trabalho a baixo custo que permite a multinacionais aumentarem as suas margens de lucro. Seremos então testemunhas ou cúmplices, no abandono do ocidente e na sua passividade perante um regime genocida, apenas para acesso a roupas mais baratas? A empatia com o assassino que se desenvolve ao longo do filme provém dessa ligação com o espectador ocidental? É esse também o nosso Act of Killing?

fevereiro 27, 2014

Al Midan (The Square, 2013)

Al Midan (The Square)

Al Midan (The Square), 2013, Egipto, 9/10
nomeado para Oscar Melhor documentário 2014

Um filme sobre a praça Tahrir poderia ser apenas sobre os eventos que ocorreram em Janeiro de 2011 e o primeiro momento da primavera árabe, sobre a história que poderia dar origem a vários filmes. Mas este é um filme sobre as várias histórias que se seguiram, que acompanha a luta do povo egípcio mesmo depois de os olhares ocidentais desistirem de o fazer. Da realizadora de Control Room (2004), Al Midan é uma espécie de filme-guerrilha feito a partir da colaboração e colagem de várias fontes, que nos mostra com clareza as várias etapas da revolução egípcia, desde o pedido inicial de demissão de Mubarak, às manifestações contra a usurpação do poder pelos militares, e os protestos contra o governo de Morsi e da Irmandade Muçulmana.

Contar a história do filme seria descrever a cronologia dos acontecimentos no Cairo, epicentro da revolução árabe. Mas o que também distingue o filme é o facto de acompanhar de perto algumas personagens, e o arco narrativo de cada um ao longo do filme. É um mecanismo utilizado frequentemente por filmes de ficção, para o espectador melhor se identificar com a história, que é, aqui, inteligentemente adoptado pelo filme para criar um retrato mais íntimo e mais próximo da acção. Al Midan é todo sobre estar perto da acção, utilizando várias formas para capturar os eventos, desde câmaras fotográficas a telemóveis, e se o filme recorre por vezes a diferentes tipos de media, como vídeos da internet e gravações de discursos televisivos, nunca compromete a sua qualidade. Não deixa de ser surpreendente que o resultado final apresente imagens de uma clareza tremenda, pela presença da realizadora e da sua equipa no sítio certo, na altura certa, mesmo que isso implique muitas vezes estar debaixo de fogo. Isso deve-se, em parte, a um espírito de criação coletiva em que a câmara passava de mão em mão, através do qual diferentes personagens trabalham para um mesmo fim, tal como os revolucionários do filme - vemos algumas vezes diferentes pessoas a correrem para pegarem numa câmara e apontarem-na para a praça, para gravar o momento. O sentimento era que era imperativo registar o que estava a acontecer, e aqui o que é importante é mostrar o que aconteceu.

O filme apresenta uma diversidade notável de figuras que ajudam a mostrar a natureza do movimento, nas suas diferentes vertentes e motivações. Um dos trunfos do filme é precisamente que, ao invés de mostrar os habituais depoimentos através de entrevistas controladas, as declarações das personagens surgirem como trocas de ideias em conversas, com direito a contraditório imediato. Dentro deste mosaico de personagens, algumas merecem destaque pelo seu caminho ao longo do filme. Uma delas é Khalid Abdalla, actor britânico de descendência egípcia, cuja notoriedade será importante para apresentar o ponto de vista dos ocupantes junto dos media internacionais. Khalid, mais velho que muitos dos seus colegas, é inabalável na sua vontade de mudança, mas parece mais pragmático pela consciência das dificuldades pela frente, e é visível como é afectado pelo desgaste dos diferentes retrocessos e derrotas. Outra das figuras importantes é Magdy, que é indissociável da sua condição de membro da Irmandade Muçulmana. Mesmo que apresente ideias próprias, e apesar de Magdy respeitar e ser respeitado pelos seus companheiros, acaba por ver-se em conflito consigo mesmo quanto ao que fazer - a evolução de membro de uma organização clandestina para organização opressora deixa as suas marcas. Por fim, Ahmed, um dos mais novos, é a energia contagiante do filme, um dos membros mais activos no terreno (é creditado como co-director de fotografia no filme) e sempre disposto a debater, até lhe falhar a voz, com quem acha erradas as escolhas da revolução. Numa das cenas mais extraordinárias do filme, logo após um dos primeiros confrontos mais violentos na praça, vemos Ahmed escondido num corredor escuro, iluminado apenas pela luz da câmara, enquanto este reconta o que acabou de testemunhar, ainda a tremer - é a urgência do filme à vista.

Esta é uma história notável, contada de forma não menos notável e completamente cativante. Numa das cenas perto do fim, uma equipa projecta parte deste filme na própria praça, e as reações são de uma comoção em surdina mas reveladora - este visionamento permite perspectiva sobre o tempo que entretanto passou, permite que as pessoas da praça percebam que ficou tudo registado, toda a luta, e muitos vêem pela primeira vez os acontecimentos sob uma nova luz. Este é um filme sobre a importância da vitória do povo egípcio, de ganhar uma cultura democrática e de exigência, finalmente. Uma revolução que não se cala quando a solução é igual ou pior que a anterior, depois de tantos anos de silêncio. E ter a consciência que é um longo caminho, mas uma viagem que vale a pena - temos muito a aprender com este exemplo.