março 07, 2010

The Cove

The Cove, de Louie Psihoyos, EUA 2009, 9/10

The Cove, traduzido para português como “The Cove – a baía da vergonha” é uma inflamadora obra extremamente bem executada naquilo que um documentário deve ser como obra de informação, divulgação de matéria sensível e até como documento político: o filme incide sobre a cidade japonesa de Taiji e a sua baía secreta onde todos os anos são massacrados cerca de 23.000 golfinhos numa demonstração de crueldade inimaginável, ao mesmo tempo que esta brutalidade é escondida do resto do mundo. A cidade, que supostamente celebra a vida marinha através de museus e viagens turísticas a bordo de barcos com a forma de um golfinho e tem uma longa tradição na pesca de baleias que entretanto caiu em declínio, é na verdade cúmplice de uma operação que é mantida debaixo de total secretismo explicitado na desconfiança em relação a qualquer estranho, chegando mesmo à intimidação física para quem mostrar demasiada interesse pela mencionada baía, onde abundam os sinais de proibição de fotos.

De uma forma concisa e persuaviva, o documentário demonstra claramente o ponto que pretende passar, utilizando várias etapas narrativas que vão intercalando com o projecto de obter imagens inéditas do massacre. Começando por introduzir Richard O'Barry, responsável por capturar e treinar os golfinhos da série televisiva “Flipper”, somos confrontados com um homem amargo e paranóico que se sente culpado pela expansão da popularidade dos animais que resultou na sua crescente procura e captura em aquários como o Seaworld ou Zoomarine, aqui desmentidos como inocente diversão familiar – se O’Barry parece acreditar que um dos golfinhos da série suicidou-se nos seus braços devido a depressão, o filme faz um bom argumento em explicar como esses animais em cativeiro desenvolvem úlceras e outros problemas de saúde relacionados com o stress devido ao ambiente sonoro em que são enclausurados - durante emocionais depoimentos O’Barry mostra um longo lamento em relação ao seu passado e isso ajuda a enquadrar a sua transformação para um importante activista defensor dos direitos dos animais. O filme tenta também criar um quadro de empatia em relação aos golfinhos, tentando demonstrar a sua inteligência superior e explorando a sua relação com os humanos com recurso a relatos de pessoas cuja vida foi possivelmente salva pela acção dos mesmos. Outro ponto fulcral do filme é tentar encontrar resposta para as razões do massacre: se em cada ano são escolhidos alguns golfinhos para serem vendidos a parques aquáticos (por cerca de 150.000$ cada um), a venda da sua carne para consumo nem sequer é muito popular no Japão, onde acaba por ser comercializada como carne de baleia, o que acaba por ser um crime para a saúde pública dada a demonstração dos altamente tóxicos níveis de mercúrio na sua carne – um dos pontos mais sinistros do filme é a revelação dos planos de servir a carne aos estudantes dissimulada como carne de baleia nas cantinas locais, estabelecendo que o filme não se trata apenas de direitos animais mas igualmente de uma questão de direitos humanos . O documentário expõe ainda como o Japão tenta todos os anos inverter a interdição mundial de pesca de baleias que prevalece desde 1986 na International Whailing Commision, onde tem uma posição quase isolada em relação ao resto do mundo, com excepção de algumas pequenas nações africanas ou das Caraíbas que vendem os seus votos.

Além da narrativa informativa e humanista, há também outro lado do filme que que aborda a própria tarefa da execução do filme e da sua missão arriscada de infiltrar a baía em Taiji para obter as imagens incriminadoras. Somos apresentados à equipa de super-activistas, que inclui por exemplo uma recordista mundial em apneia, à medida que cada um procura explicar por palavras os fortes sentimentos que os movem nesta acção e se mostram afectados pelo que vão descobrindo e pelo assédio de que são alvo pelas autoridades uma vez chegados ao local. Recorrendo a uma parafernália de gadgets electrónicos para captação audio e video que passam por camâras disfarçadas de rochas ou sub-aquáticas, o filme consegue impor uma dinâmica de filme de aventura ou thriller que só ajuda a prender a atenção e a envolver emocionalmente o espectador.

Porque é exactamente disso que se trata afinal em “The Cove” – se a argumentação ou racionalização apresentados não forem suficientes, o filme caminha todo ele para uma sequência que é impossível deixar qualquer um insensível: usando uma composição de sons gravados dos golfinhos no momento em que são encurralados na baía e imagens de vídeo da matança, até ao ecrã ficar literalmente vermelho de sangue derramado, observando a reacção mortificada dos membros da equipa (entre os quais Richard O’Barry) à medida que visionam as gravações, a confrontação com a realidade não deixa espaço para o espectador olhar para o lado: como diz alguém no filme ”Ou se é um activista, ou se é um inactivista”. Porém, acima de tudo o filme tem o mérito de apresentar uma mensagem inspiradora na forma como mostra que através do activismo e da acção de um pequeno grupo de pessoas empenhadas é possivel mudar algo, deixando um apelo sentido contra o conformismo.


4 comentários:

Dioniso disse...

Excelente comentário.

De facto, Richard O'Barry, o protagonista deste movimento/ grupo activista, apresenta-se como uma pessoas debilitada e emocionalmente instável. Achei muito interessante o facto de referires que ele quer acreditar que o golfinho morreu nos seus braços com uma depressão que ele podia ver e sentir. Ele espelha um sentimento de culpa, um desconcerto do seu lugar no mundo pela morte de um animal que agora o motiva numa luta, que como ele diz, tem ocupado os seus dias desde então.

Mas é neste espírito que se ergue um documentário muito forte e coerente. Concordo, em tom de thriller, e cativante por isso também. Um excelente exemplo de pedagogia cívica e participativa na busca de uma revisão do que andamos cá a fazer. Penso que nos faltam mais exemplos destes e a importância deste trabalho poderá despoletar um sentido crítico ainda maior e assim, o cinema cumpre em pleno a sua função.

O momento mais fraco do filme foi sem dúvida o momento em que O’Barry entra na reunião com o monitor a passar as imagens que ninguém conhecia. Na verdade, aquela sinistra organização, sem qualquer credibilidade, sem qualquer consciência global, não me pareceu o cenário ideal para mudar as coisas. Pedia-se um momento muito muito forte, chocante, marcante, uma explosão emocional. Lembrei-me dos grandes painéis publicitários dos edifícios de Tokyo passarem as imagens. As ruas iluminadas com leds vermelhos, do sangue, da morte; as pessoas a assistirem ao que se passa no seu país, à vergonha política, ao assassinato massivo de animais. Era necessário um grafismo mais arrojado, mais forte, mais ambicioso.

Posto isto, achei o plano subaquático fantástico, vê-se tudo sem precisarmos de assistir a nada, apenas o sangue, qual corante entornado violentamente na água. O fim é outro ponto de grande força do filme. Impávido, Richard O'Barry continua a divulgação do que se passa no Japão nas multidões frias e flutuantes que atravessam rapidamente as passadeiras. Uma mensagem de desespero a pedir às pessoas que se mexam, que façam alguma coisa. Parece que tudo continua como antes, ninguém sabe ou quer saber de nada... ou talvez não, talvez das poucas pessoas que pararam para olhar para o monitor que trazia ao peito se tornem multidões e O'Barry consiga em vida aquilo por que tanto luta – Fim à Crueldade.

P.S. - Calculo que quisesses dizer “crueldade inimaginável”.

imartins disse...

Um documentário ímpar que é alvo aqui de comentários e observações muito interessantes.
Gostaria de adicionar que o filme tem tido também um grande impacto na realidade de Taiji, ao provocar uma redução das excursões de caça e ao parar um alegado esquema de alargamento desta prática a outras partes do Japão. A meu ver, o sucesso resulta de uma mistura rara (se não mesmo, única) de sensibilidade e pragmatismo.
Achei surpreendente o facto de, apesar da sua recepção crítica, os produtores do filme estarem com problemas em conseguir o retorno do investimento. Felizmente, algo que mudará com a atribuição do Oscar e com a chegada de “The Cove” ao mercado europeu. É necessário que este tipo de activismo seja promovido.
em http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=124047256,
“JOSH: I'm assuming it paid itself back then.
Mr. PSIHOYOS: Why would you do that? It is the film business. We're going to lose money on this.
CONAN: You're going to lose money on this. This is a film that's played all over this country, at least, in first-run theaters and now it's out on DVD and doing pretty well.
Mr. PSIHOYOS: Boy, you have different reports than I do. No, we're - I mean, listen, it's a very popular film in terms of people that see it love it. I mean, we've won, you know, just about every award you can get in the doc business this year. But still, it's - people have - it has this fear component. People are afraid to see it, even though it's a PG-13. You know, you'll see more violence in a television cop show than you're going to see in "The Cove." But it has a stigma attached to it, like your going to see dolphins get hurt.”

Joao Araujo disse...

oops... obrigado e corrigido!

Pois, o Rick O'Barry realmente dá uma outra complexidade que torna o documentário ainda mais cativante. Se é facil ter empatia com o seu remorso também é possível deduzir que ele carrega consigo algumas cicatrizes emocionais que o atormentam o tempo todo, como se todo o trabalho que ele faça agora não seja nunca suficiente para reparar o quanto ele se sente responsável pelo que já aconteceu. É uma surpresa do filme, este retrato.

E tens razão, a cena final em que O'Barry invade uma reunião do IWC não teve o impacto necessário, especialmente depois daquela poderosa sequência do massacre que é o culminar do filme todo (e nem sequer perto da tua sugestão, realmente seria lindo utilizar aqueles neons/ecrãs todos para provocar uma reacção maior) mas é relativamente compensado pelas imagens dele em Tokyo a fazer frente às massas indiferentes...

O plano subaquático é inesquecível - um dos melhores do ano: se é inevitável sermos confrontados com imagens do massacre e se receava o quão gráfico isso poderia ser, a escolha dessa imagem é ao mesmo tempo contida e profundamente chocante.

Os Oscares são o programa anual mais visto no Japão logo o mais decepcionante da noite de domingo foi que apesar da vitória de "The Cove" cortaram a palavra ao realizador e não incluiram a categoria no compacto que acaba por ser a versão mais em vista em países estrangeiros, mas pelo menos o prémio está a trazer alguma atenção ao assunto...

Joao Araujo disse...

"But still, it's - people have - it has this fear component. People are afraid to see it, even though it's a PG-13. You know, you'll see more violence in a television cop show than you're going to see in "The Cove." But it has a stigma attached to it, like your going to see dolphins get hurt.”

Wow - esta frase devia fazer parte da campanha públicitária do filme - realmente é um estigma que tem que perder, conheço inúmeras pessoas que ainda não viram o filme precisamente por isto o que não deixa de ser uma pena especialmente agora que o filme está em vários cinemas, é um filme demasiado importante para deixar passar...