The Act of Killing de Joshua Oppenheimer e Anónimo, 2012, Dinamarca, 10/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2014
"As I found myself becoming close to this community of survivors, I felt as though I’d walked into Germany 40 years after the Holocaust and the Nazis were still in power" - Joshua Oppenheimer
Logo no início somos avisados que
este filme é o resultado de uma série de entrevistas a antigos militares
indonésios envolvidos num genocídio, e do processo, através do qual, lhes foi
pedido que dirigissem recriações dos actos que cometeram, de forma a registar
para a posterioridade tais acontecimentos. O filme acaba, assim, por ser também
sobre as consequências deste processo de revisionismo da história e da memória.
À medida que surgem as primeiras imagens de The Act of Killing, a incredulidade vai-se acumulando, pondo em
causa a natureza do que vemos.
A incredulidade não é em relação
à veracidade dos factos narrados, que fazem parte da história da Indonésia no
período de 1965-66, durante o qual cerca de um milhão de indonésios foram
assassinados, mas sim em relação à forma assombrosa como os participantes do
filme contam o seu papel nesses actos. Os participantes no massacre, que
aceitam falar para a câmara, relatam com orgulho detalhes macabros dos
assassinatos cometidos, celebrando o que fizeram como se se tratasse de um
feito heróico. Na sua ingenuidade e ausência de consciência da câmara como
prova incriminatória, parece que assistimos a um documentário dos primórdios do
género, quando as pessoas agiam livres de constrangimentos, porque ainda não
estavam habituadas a uma máquina de filmar e às suas consequências. Mas
Oppenheimer leva mais longe do que seria expectável esta espécie de confissão
tornada expiação: colaborando com um dos executores que entrevista, arranja
forma deste criar um filme sobre o seu passado, com vinhetas que se tornam cada
vez mais surreais e absurdas, que confirmam uma espécie de atrofia da memória.
O resultado que se segue ultrapassa em muito o conceito inicial - são as tais
consequências que o filme avisava.
No centro do filme está um par de
personagens: Anwar Congo, um antigo paramilitar, confesso responsável pela
tortura e morte de cerca de mil pessoas, e um dos seus protegidos, Herman Koto,
responsável por manter a continuidade do regime que os sustenta. Herman é o
mais novo, e se de aparência inofensiva, talvez por passar como inapropriado
alívio cómico nas recriações, é uma figura sinistra, por ser completamente
alheado dos horrores cometidos no passado – era demasiado novo na altura, e é
algo que não lhe pesa na consciência. Numa das sequências do filme Herman tenta
candidatar-se a um cargo político, e apesar de explicar todo o processo de
corrupção que envolve ganhar tal posto, é mesmo assim incapaz de o fazer - fica
sumariado o ridículo da sua existência. Já Anwar é uma personagem mais
complexa, consciente dos horrores que as suas vítimas sofreram, mas guardado
por um sentimento de impunidade de quem ganhou a guerra e se sente, assim, no
direito de re-escrever a história, pelo menos na sua imaginação.
Uma das primeiras sequências do
filme com Anwar contém a chave do filme: pouco depois de revelar a Oppenheimer
o seu passado, decide leva-lo a um terraço onde executou centenas de pessoas,
para melhor mostrar como o fazia. Nesse espaço desolador e banal, Anwar recorre
a um stand in para fazer de vítima,
enquanto demonstra como atava um fio à volta do pescoço da vítima até esta
asfixiar. Anwar chega mesmo a enrolar o fio à volta do próprio pescoço para não
ficarem dúvidas, colocando-se assim no papel de vítima. Explica como recorria
frequentemente ao álcool e a drogas para ultrapassar os seus actos, mesmo que
não assuma vergonha pelo que fazia - era apenas uma tarefa extenuante. Pouco
depois, quando confrontado com a gravação desta primeira rudimentar recriação,
se Anwar parece perturbado pelo que vê, parece mais preocupado com os detalhes
que estavam errados: as roupas usadas, a falta de sangue. Surge assim a ideia
de partir para recriações mais elaboradas, para tentar perceber até que ponto
se escondem a culpa e os pesadelos do passado.
Para ajudar a compreender o gosto
pelo teatral de Anwar, que gostava de imaginar-se como uma espécie de gangster local, este confessa-se
admirador e inspirado pelos filmes que via no cinema. Numa das sequências mais
frias do filme, Anwar revela como era frequente ele e os seus colegas verem
filmes que os deixavam com boa disposição, e como dançavam pela rua a imitar os
seus heróis dos filmes americanos até ao tal terraço, onde de seguida
torturavam e assassinavam. Torna-se, assim, natural que a maior parte das cenas
imaginadas pareçam inspiradas pelos filmes que Anwar conheceu, e que, neste
jogo perigoso em que Oppenheimer acede a
produzir as recriações imaginadas por Anwar, corra o risco destas se tornarem
desligadas da realidade.
As recriações que o filme
apresenta são o que o colocam num patamar diferente, mais próximo de um filme
de não ficção, ou de um documentário da imaginação, como Oppenheimer gosta de
dizer. Desde recriações de cenas de interrogatório e tortura, que passam do
mais rudimentar a sequências ao estilo dos filmes noir de Hollywood, até a sequências musicais, o filme vai descendo
até ao fim num sonho febril, alucinado, digno de Herzog. Oppenheimer trabalha
com Anwar para criar estas cenas, mas também o confronta com os resultados, e é
quando lhe mostra as gravações, que encontramos uma consciência em tumulto.
Numa sequência em que Anwar recorre à ajuda de um antigo amigo, que era também
paramilitar, este vira-se contra o filme, alertando os envolvidos para o perigo
do que estão a fazer, ao mostrarem que não eram as suas vítimas os cruéis e
sádicos brutais, mas eles mesmos.
“I think in cinéma
vérité, by contrast, it was all about giving people the space to perform on
camera, to imagine, to stage themselves on camera as a way of documenting how
they see themselves and make sense of their world. In that sense I think cinéma
vérité is trying to do something fundamentally more profound than Direct
Cinema. I think Direct Cinema’s trying to be insightful by looking at reality
in a very close way, while in fact much more is staged than we like to think.
In cinéma vérité it’s about trying to make something invisible visible – the
role of fantasy and imagination in everyday life” - Joshua Oppenheimer
O mecanismo de confrontar os sujeitos
do documentário com a gravação das próprias entrevistas sugere que Jean Rouch
terá sido uma influência (em especial Chronique
d'un été, 1960), algo visível também nos princípios do cinema vérité de
Rouch, que o filme explora – a encenação de uma história para apresentar um retracto
mais claro e próximo da realidade, para chegar a uma verdade com mais impacto.
Mas The Act of Killing parece também
um descendente directo do cinema de Herzog, que é aqui produtor executivo, tal
é a proximidade com o cinema do alemão, com os sacrifícios que este acredita
serem necessários para chegar ao fulcral de uma história, com a importância de
dar uma dimensão cénica a uma história para mostrar a sua verdade – Oppenheimer
revela-se um digno herdeiro de Herzog.
Por fim, The Act of
Killing deixa uma série de questões em aberto sobre o estado actual da
Indonésia, sobre as implicações políticas que a manutenção do actual regime
envolve. Mesmo que Oppenheimer seja pouco explícito nessa ligação,
utilizando apenas imagens de alguns dos entrevistados em passeio por centros
comerciais, suposto símbolo de progresso e de uma Indonésia moderna, fica claro
que este regime existe com a permissividade do ocidente, pelo acesso a trabalho a
baixo custo que permite a multinacionais aumentarem as suas margens de lucro.
Seremos então testemunhas ou cúmplices, no abandono do ocidente e na sua
passividade perante um regime genocida, apenas para acesso a roupas mais
baratas? A empatia com o assassino que se desenvolve ao longo do filme provém
dessa ligação com o espectador ocidental? É esse também o nosso Act of Killing?