dezembro 27, 2012

top2012

Amour

o meu top de 2012 para o À Pala de Walsh. ainda não são os junkie awards (gostava ainda de ver alguns filmes para chegar a uma lista definitiva), mas quase:

10. Attenberg de Athina Rachel Tsangari, Grécia

9. Le Havre de Aki Kaurismäki, Finlândia

8. Take Shelter (Procurem Abrigo) de Jeff Nichols, EUA

7. Wuthering Heights (O Monte dos Vendavais) de Andrea Arnold, Reino Unido

6. Martha Marcy May Marlene de Sean Durkin, EUA

5. Bir zamanlar Anadolu'da (Era Uma Vez na Anatólia) de Nuri Bilge Ceylan, Turquia

4. Tabu de Miguel Gomes, Portugal

3. Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto) de Joachim Trier, Noruega

2. Amour (Amor) de Michael Haneke, Áustria/França

1. A torinói ló (O Cavalo de Turim) de Béla Tarr, Hungria

o top completo pode ser lido aqui: http://apaladewalsh.com/2012/12/24/os-melhores-filmes-de-2012/

Saikaku ichidai onna (A Vida de O'Haru, 1952)

A Vida de O'Haru

Saikaku ichidai onna (A Vida de O'Haru) de Kenji Mizoguchi, 1952, 10/10

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh

novembro 24, 2012

Tout Va Bien (1972)

Tout Va Bien

Tout Va Bien, de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, França, 1972, 8/10

o texto pode ser lido no À pala de Walsh

novembro 06, 2012

eleições americanas (iii): The War Room (1993)

The War Room

The War Room, de Chris Hegedus e D.A. Pennebaker, 1993, 8/10
mini-ciclo eleições americanas (iii)

A war room a que se refere o título do filme é a sala caótica da sede de campanha de Bill Clinton, onde as duas principais figuras do filme tentam coordenar as operações e gerir uma equipa frenética e pouco disciplinada. São adjectivos também aplicáveis à própria campanha, marcada por um registo menos convencional, que ao quebrar com regras do passado conseguiu acabar com um longo ciclo de vitórias do partido republicano. Estamos em 1992, na eleição que opôs Bill Clinton a George Bush (e Ross Perot) e Hegedus e Pennebaker têm acesso ilimitado aos bastidores da campanha. O filme centra a acção nos dois responsáveis máximos do partido democrático, mas é James Carville, o estratega principal, que domina a atenção. Carville é abrasivo, é ele próprio uma figura pouco convencional dentro de um mundo fechado de políticos presos aos seus fatos e sondagens debaixo dos braços. A sua agressividade e vontade de vencer transbordam para as pessoas que o acompanham e isso reflecte-se na forma como a campanha é dirigida.

"it's possible to go to a situation and simply film what you see there, what happens there, what goes on, and let everybody decide whether it tells them about any of these things" - Pennebaker, 1971

O documentário aproxima-se da abordagem "direct cinema", caracterizada pela tentativa de minimizar o impacto do processo de filmagem, de maneira a capturar a realidade de forma mais natural, sem interferir com o que está a filmar. Sem recorrer a entrevistas tradicionais ou a narrações que conduzam a acção, a câmara procura apenas ser uma mera testemunha, uma presença mínima, mas mesmo assim observamos algumas alturas onde os intervenientes estão conscientes da presença da câmara e agem de acordo com isso. Se de facto assistimos desta forma ao quotidiano exaustivo de uma campanha política, entre reuniões informais para definir a agenda do dia e telefonemas intermináveis com os media, temos também acesso a momentos memoráveis, como a preparação para debates ou a elaboração dos discursos de vitória e derrota de Clinton. Uma vez que nunca existe contextualização, nem uma referência temporal, estes momentos acabam por perder algum do seu impacto, porque tornam-se equivalentes aos momentos mais triviais. Mas é uma escolha, que ao permitir uma normalização destes processos políticos, consegue eliminar o espectáculo da política, porque o importante é o filme como um todo e não apenas momentos isolados. Porque os momentos em que a câmara é quase a única testemunha, em que funciona como um confessionário para a posterioridade das emoções que afectam os intervenientes nos momentos mais intensos, mais que compensam qualquer constrangimento estilístico. Prova disso é a força das imagens finais, onde o discurso final de Carville aos seus colegas sobrepõe-se ao discurso de vitória de Clinton - que tem sempre uma presença periférica no filme - efectivamente validando Carville como figura central e reconhecendo a sua importância  na política americana.

outubro 13, 2012

eleições americanas (ii): So Goes the Nation (2006)

so goes the nation

...So Goes the Nation de Adam Del Deo e James D. Stern, 2006, 8/10 - trailer
mini-ciclo eleições americanas (ii)

Este é um documentário que retrata os últimos dias da campanha de 2004, que opôs George W. Bush a John Kerry. A expressão que diz "as Ohio goes... so goes the nation" tem fundamento no facto de nunca nenhum candidato presidencial ter sido eleito sem vencer o estado de Ohio - com a excepção de JFK em 1968. E de facto, na eleição de 2004, Ohio viria a revelar-se decisivo. As sondagens realizadas à saída das urnas não conseguiam prever um vencedor e Ohio foi mesmo o último estado a revelar os resultados da noite, com o vencedor do estado a ganhar a eleição nacional. Há muito tempo que se suspeitava que Ohio teria o papel decisivo que a Florida teve em 2000 e durante meses a fio isso reflectiu-se numa intensa batalha política. Um dos trunfos do filme é a escolha em utilizar Ohio como uma amostra do que aconteceu a nível nacional, amplificando quanto renhida e casa a casa foi a luta por votos.

O documentário é bastante convencional, seguindo duas linhas narrativas paralelas: por um lado, entrevistas a estrategas de posições com considerável importância nas duas campanhas, que comentam a campanha com a distância que o tempo permite; por outro lado um grupo de pessoas que está envolvido em acções directas no terreno, que tenta convencer os últimos indecisos. Estas campanhas que decorrem próximas dos eleitores revelam-se atípicas, na forma como muitas vezes decidem-se por visitas porta a porta, com voluntários a percorrer as ruas que lhes são atribuídas. Além dos partidos, há sempre grande interferência de vários grupos ligados a determinadas plataformas e as eleições de 2004 foram especialmente influenciadas pelas culture wars, em que assuntos fracturantes a nível moral foram utilizados para mobilizar grande parte dos eleitores.

Mas são as imagens do próprio dia da eleição, com as filas intermináveis de pessoas debaixo de chuva à espera da sua vez de votar, e os momentos imediatos ao anúncio dos resultados, que constituem o ponto forte do filme e que permitem observar a comoção que afecta os envolvidos. É notável verificar a convivência paralela entre uma quase ingenuidade e entusiasmo honesto pelo processo democrático, e o papel das dirty politics, que transpira quer através da supressão de votos, quer através de campanhas negativas e ataques pessoais. É uma dualidade em confronto na parte final do filme, entre o entusiasmo e o pessimismo, entre a perseverança da esperança que uma pessoa pode fazer a diferença e entre a procura duvidosa de brechas na lei para diminuir o número de votos no oponente. Mais que um evento político, as eleições são também um evento cultural e para isso ajuda a cultura do espectáculo, que rodeia e define os momentos capturados no filme. A realidade longínqua, a que as pessoas retratadas no filme assistem na televisão das suas casas, transforma-se em algo palpável, faz parte da sua vida, nem que seja por breves momentos.

2004: G. W. Bush: 50.8% / John Kerry:  48.7%
sondagem Ohio: Obama: 47% / Romney: 46%

outubro 03, 2012

eleições americanas (i): Game Change (2012)

Game Change

Game Change (2012), 6/10
mini-ciclo eleições americanas (i)

Game Change é um filme feito para a televisão, do realizador Jay Roach, responsável pelo elucidador Recount (2008). Tal como Recount, que era sobre a confusão das recontagens de votos na Florida em 2000, este é um filme que ficciona eventos reais, recriados através de depoimentos das pessoas que viveram as situações descritas, recolhidos no livro homónimo publicado em 2010. Trata da campanha de 2008, mais especificamente da escolha de McCain em apontar Sarah Palin como a sua candidata a vice-presidente. McCain decidiu apostar numa jogada arriscada que alterasse a dinâmica da campanha e reduzisse a vantagem que Obama detinha desde as primárias e do embate com Hillary Clinton. Mas considerando a falta de tempo e a pressão para agitar o cenário político, a escolha de Palin, em grande parte devido à sua imagem de conservadora carismática, não foi suficientemente acautelada. As vantagens iniciais pareciam ofuscar as desvantagens, mas rapidamente a impreparação e incompetência de Palin viriam ao de cima, e a jogada de McCain revelar-se-ia um golpe de marketing falhado, com consequências catastróficas para a sua campanha.

Interessado, acima de tudo, em explorar o fenómeno da celebrização da política, não assistimos, em Game Change, a grandes manobras de bastidores, debates sobre estratégias ou trocas de ideias de índole política. A grande decisão estratégica estava tomada, restava minimizar o erro, isto é, esconder Palin do escrutínio público. Palin transforma-se instantaneamente numa celebridade, numa estrela de um mau reality show, e à medida que a data das eleições se aproxima, surgem as exibições de egoísmo infantil.  A preparação para uma primeira entrevista e para o debate revelam um preocupante autismo por parte de Palin, e sucedem-se os problemas de comunicação dentro da própria campanha republicana. A maior preocupação de Game Change é mostrar que Palin, antes de ser uma figura política com convicções, é uma actriz, uma figura oca, à qual se aplica uma matriz ideológica e se ministram talking points, sem esta realmente saber o que defende. O importante será apenas a imagem pública, é a única coisa que interessa, pois a aparência e todo o aparato à sua volta escondem alguém profundamente vazio. Não admira que Palin se concentre apenas em manipular a sua imagem e fuja ao diálogo, porque tudo o que não seja baseado num guião previamente definido e preparado está fora do controlo. Game Change, apesar de uma linguagem televisiva dinâmica, perde-se ao relevar demasiada atenção a uma figura secundária, um fait-divers, no que foi uma eleição histórica.

setembro 07, 2012

Oslo, 31. august


Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto) de Joachim Trier, Noruega 2011, 9/10

O filme anterior de Joachim Trier, Reprise, é uma pérola escondida do cinema indie da última década, que mais cedo ou mais tarde se descobre. Uma verdadeira sinfonia de corações miseráveis, é magnífico quanto à miríade de técnicas e efeitos cinematográficos usados para pintar um quadro repleto de voracidade e sobre a necessidade de agarrar a vida. Trier apresenta-se assim como um prodígio incapaz de conter a própria emoção em traduzir para imagens a sua pitoresca esquizofrenia visual. Cheio de ideias novas, Trier assemelha-se a um Wes Anderson hiper-activo pela altura de Royal Tenenbaums, mas num plano mais amargo e menos cerebral, mais rendido ao instinto.

Com o seu segundo filme, após cinco anos de um longo interregno e dos 13 prémios internacionais de Reprise, Trier apresenta Oslo, 31 August como um recomeço que escapa à personagem do seu filme. Mostra-se mais sedado, menos confiante nas possibilidades do futuro e da redenção através do amor. A primeira vez que vemos a personagem principal (Anders), depois de um belíssimo prólogo que acaba com uma demolição, este fixa-se no seu reflexo numa janela, como uma aparição a olhar-se ao espelho. O que sucede a seguir é revelador porque a opção de Trier coloca, desde cedo, o filme no contexto da depressão, em vez de o cingir ao tema da dependência da personagem principal. Na verdade, a partir daquele momento Anders não recupera mais, não volta a respirar bem.

Apesar do filme rodopiar em torno da dependência de Anders, o problema que vai dirigindo o rumo do filme é a depressão sugerida pela vida pós regeneração, e a impossibilidade de um recomeço dentro de uma qualquer normalidade. É esta ideia de normalidade, como uma não-existência que a vida sem dependência lhe deixa, que assusta Anders. Sente-se invisível, como um voyeur condenado a ver o mundo de fora e isso rouba-lhe o ar. Este sentimento é exponenciado por Trier ao escolher representar a acção quase sempre em tempo real, condensando as dúvidas da personagem a um só dia em que o tempo parece ser contado ao minuto.

O retrato da monotonia da vida familiar, que lhe é apresentado numa visita a um amigo que no passado terá tido problemas semelhantes, lembra a Anders o receio de enfrentar responsabilidades adultas. Esse amigo está agora rendido aos aborrecimentos da classe média, onde as peças, uma vez todas encaixadas, formam uma maqueta exígua do resto da vida, planeada mas sem qualquer escapatória de um caminho mais ou menos igual, mais ou menos sóbrio, sem surpresas. Noutras ocasiões Anders vislumbra, na reacção dos amigos, os que ainda o recebem, uma confirmação do seu falhanço, do seu carácter irrecuperável, de tudo que odeia em si próprio.

Trier, que tinha dotado Reprise de inúmeros efeitos como slow-motions, flashbacks, flashforwards e travellings de olhos fechados em bicicletas, aqui prefere fixar-se no desamparo na face de Anders à medida que o mundo lhe passa ao lado, à medida que o tempo passa por si. Trier trabalha com silêncios e pausas para nos permitir espaço para pensar, para compreendermos - e é esse espaço que a personagem principal tenta evitar, porque o preenche com pensamentos, porque não consegue adormecer a cabeça. Por muito que Anders tente ocupar esse vazio com as conversas que ouve sentado sozinho num café, ou numa festa onde conhecidos se tornaram estranhos, a auto-destruição e velhos hábitos lutam para não voltarem à superfície. O dia caminha para o fim, esta biografia num dia também, e 31 de Agosto é ainda o último dia de Verão em Oslo.

texto publicado também em: http://revistasombra.com/?p=643

agosto 16, 2012

Junkie Awards 2011

os melhores filmes de 2011, na 14ª edição Junkie Awards.
os melhores documentários serão abordados em mensagem própria.

menções honrosas:
Habemus Papam de Nanni Moretti, Itália
Submarine de Richard Ayoade, Reino Unido
Bal de Semih Kaplanoglu, Turquia
Black Swan de Darren Aronofsky, EUA
Blue Valentine de Derek Cianfrance, EUA
Le Quattro Volte de Michelangelo Frammartino, Itália
Hadewijch de Bruno Dumont, França
Sangue do meu Sangue de João Canijo, Portugal
Road to Nowhere de Monte Hellman, EUA
Drive de Nicolas Winding Refn, EUA
Lourdes de Jessica Hausner, Aústria

top2011:

Attenberg 10. Attenberg de Athina Rachel Tsangari, Grécia
Fantástica distopia modernista, Attenberg é um filme que encapsula a alienação das suas personagens, afastadas da sociedade - uma com problemas afectivos, outra com problemas com a humanidade. Com a participação do realizador de Canino, apresenta contudo uma gramática própria mas que apresenta igual interesse na forma como a linguagem pode ser explorada para redefinir ideias e sexualidade. A história de um pai que está a morrer e que, nostálgico, se afirma como um romântico anti-progresso, e da sua filha que se apresenta sem noções pré-determinadas, como uma folha em branca disposta a ser educada por novas experiências, proporciona uma dinâmica inquietante.


Poesia
9. Shi (Poetry) de Chang-dong Lee, Coreia do Sul
Nesta triste fábula, descobrir o prazer pelas palavras no momento em que se começa a perder a memória é apenas mais uma tragédia. Uma senhora de idade, ao perceber que não consegue lembrar-se de certas palavras, decide inscrever-se num workshop de poesia e descobre novas formas de se exprimir. Mas se encontra novas formas de ver o mundo à sua volta, é confrontada com um mundo que está a desabar. Abalada pelo crime cometido pelo neto, que levou ao suicídio de uma colega da escola, a avó é confrontada com uma sociedade patriarca e antiquada, que marginaliza os seus esforços para corrigir o que está errado e deixar uma marca que perdure, para não desaparecer.


O Miúdo da Bicicleta
8. Le Gamin au Velo de Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélgica
Os irmãos Dardenne podem oscilar entre filmes mais ou menos pessimistas, mas acabam sempre suscitar uma forte reacção emocional. Mesmo utilizando estratagemas recorrentes, conseguem através de variações subtis dar primazia à história, que despojada de outros artifícios, permite que sobressaia o humanismo das suas personagens. De facto, a dedicação às personagens e a imersão total no filme enquanto espaço fechado narrativo, sem nada à volta, permite suster uma incerteza em relação ao que vai acontecer a seguir. Esta pequena história, de um rapaz abandonado pelo pai e que procura adaptar-se a uma nova casa e a novos amigos, reforça a aproximação a um realismo único, que ao mesmo tempo que é cínico e derrotista, sobrevive graças a vislumbres de esperança. A obsessão do rapaz com a bicicleta, que envolve estar sempre perto dela, encontra paralelo na obsessão dos Dardenne em ocupar sempre o mesmo espaço da personagem principal.


Uma Separação
7. A Separation de Asghar Farhadi, Irão
É comum sentir um sentimento de aprisionamento nos filmes iranianos, pela forma como a casa e as suas paredes confinam os seus habitantes a uma claustrofobia paranóica, como se as paredes estivessem quase a desabar sobre eles para revelar quem está do lado de fora a julgar. Tal como em Crimson Gold (Panahi, 2003), quando a personagem pobre entra em casa de alguém muito rico e apercebe-se que está preso à sua condição social, quando entramos nas casas das personagens em A Separation estamos a ser convidados a julgar. Desde o início, o espectador é colocado na posição de juiz dos vários dilemas morais que vão surgindo: é também uma questão de fé, mas fé no sentido de ser fiel ao que se acredita ser correcto versus fazer o que é necessário para sobreviver. As paredes dos corredores do tribunal transpiram uma teia burocrática que vai revelando pouco a pouco, através de uma catarse kafkiana, pormenores de cada personagem. Enquanto isso, a câmara ao ombro, mais que enquadrar, aponta.


Incendies
6. Incendies de Denis Villeneuve, Canada
Ora por vezes como uma grandiosa opera cuja tragédia é ensurdecedora, ora reduzido ao intimismo de um cântico numa cela, Incendies é uma épica jornada emocional. As primeiras sequências dão o mote demolidor para o que vai ser o resto do filme: primeiro, uma sequência em slow motion revela-nos um grupo de crianças a ser preparado para entrar num qualquer exército de uma qualquer guerra; a seguir um advogado explica aos filhos herdeiros de uma mãe que esta pediu-lhes que contactassem o pai e um irmão, ambos desconhecidos para eles. A crueldade da história é a crueldade da realidade. Entre linhas narrativas entrelaçadas (lembrando outro filme canadiano, The Sweet Hereafter) o filme avança pelo escuro e as personagens descobrem-se pela forma como resolvem complexas questões morais, colocando dessa forma o espectador em risco, obrigando-o a escolher também.


Um Ano Mais
5. Another Year de Mike Leigh, Reino Unido
Com o realismo social que costuma caracterizar os seus filmes, Leigh continua a desferir golpes que abalam a normalização da miseralibilidade pela sociedade, que mostram as feridas da resignação gradual à solidão. Trabalhando com variações mais amplas do que por exemplo os Dardenne, Another Year, pela sua simplicidade e crueza formal, é um filme mais próximo de Secrets and Lies do que outros filmes do britânico, o que é um bom sinal. É de solidão de que fala o filme, e da história de um casal reformado que funciona como refúgio para os amigos que pairam à sua volta, afectados pelo desespero calado da desistência, da passagem do tempo - inevitável, reflecte-se no próprio título filme, ele próprio uma lembrança que magoa. É um filme áspero e natural como o tema que aborda, que é afinal mundano, que é inundado pelo humanismo com que um olhar consegue superar a falta de palavras.


O Atalho
4. Meek's Cutoff de Kelly Reichardt, EUA
Drama intimista de um minimalismo árido, é um filme disfarçado de western que nunca chega a ser. Despojado como as paisagens desoladoras através das quais os colonos se perdem, é uma parábola perfeita para uma América perdida, sem rumo. Com uma visão feminista, oferece uma janela para o futuro, um caminho possível entre várias bifurcações. Mas é também uma janela para o passado, para o início de uma ideia de novo mundo, que anuncia desde logo feridas duradouras - o conflito contra os nativos, contra os que ocupam o mesmo espaço, o instinto de sobrevivência que é instinto de predador. Contrapondo o vasto espaço deserto com o desamparo das personagens, Reichardt é inabalável na forma como filma de forma seca a tensão das relações de poder dentro do filme.


Melancholia
3. Melancholia de Lars Von Trier, Dinamarca
Com Melancholia, von Trier mostra-nos que o fim do mundo não tem necessariamente que ser algo mau. Mostra também um von Trier algo diferente do seu trabalho mais recente: normalmente muito directo na mensagem que pretende transmitir e na forma como dirige o espectador para chegar a determinadas conclusões, aqui é muito mais ambíguo e permite mais espaço ao espectador para se sentir perdido, desertado. É impossível não ver semelhanças entre a decadência burguesa da primeira parte do filme e Viridiana (Bunuel, 1961), como se de facto o legado de Bunuel fosse uma chave para ver nesta fábula de auto-destruição o ridículo da existência humana. É ainda na segunda parte do filme, no inevitável declínio, que Trier oferece-nos imagens de beleza singular que ilustram toda a amplitude da falta de respostas, a procura de redenção e a vontade de capitulação que parecem seduzir von Trier.


A Árvore da Vida
2. Tree of Life de Terence Mallick, EUA
Tree of Life será o filme que está mais perto de ser uma súmula da obra de Mallick, o passo que este demorou a tomar depois de várias divagações. É o culminar do seu estilo naturalista, que aqui atinge a perfeição, no sentido em que procura chegar o mais próximo possível do modo como vemos e recordamos a vida, com movimentos de câmara desprendidos e memórias fragmentadas. É um filme sobre memórias, é a tentativa de mimetizar o modo como retemos a vida através de imagens - e dessa forma pode-se considerar um filme impressionista, pela forma como procura vencer a ilusão de que estamos a assistir a algo construído, de que não estamos apenas de olhos fechados. Traçando um paralelo entre a história completa do universo e a história de uma só pessoa, o filme é ao mesmo tempo uma celebração e elegia da vida humana, da impossibilidade de voltar atrás e do que está perdido. Ao procurar respostas nos conflitos entre o instinto e a razão, entre o amor e o sacrifício, Mallick desvenda por entre momentos fugitivos um filme demasiado belo para descrever apenas com palavras.


O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores
1. Loong Boonmee raleuk chat (Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives) de Apichatpong Weerasethakul, Tailândia
Um filme que começa a meio com um longo abraço, que representa o início do fim, que é uma despedida. Um homem confrontado com aparições do seu passado, que por estar a morrer, enfrenta a sua mortalidade, o que resta da história de uma vida fugaz e o que vai desaparecer. É uma história comovente sobre os últimos momentos de um amor, sobre a tentativa de agarrar memórias que se esvanecem, na altura em que ganham maior importância, porque são tudo o que restam. Há alguns pontos de contacto entre este filme e Tree of Life, quer no interesse da representação da memória, quer na nostalgia pelo que guardamos do passado - daí ter considerado durante muito tempo escolher estes dois filmes como o melhor do ano, ex aequo. Sobre este "Loong Boonmee...", tudo o mais que tinha a dizer escrevi aqui.

agosto 01, 2012

Obrigação

Obrigação

Obrigação de João Canijo, Portugal 2012, 6/10

Obrigação é um filme encomenda (do Festival Curtas Vila do Conde) e é também um filme inacabado. Isto segundo as próprias palavras de Canijo, que ao apresentar o filme desculpou-se com a falta de tempo para montar o filme, e porventura, encontrar uma narrativa mais clara dentro do material filmado, pelo menos enquanto não surgir uma versão (prometida?) mais longa do filme. Aproximando-se muito mais de um registo documental clássico do que de uma ficção disfarçada de documentário, a única intrusão é a participação de Anabela Moreira. Como que um objecto estranho que nunca consegue pertencer ao grupo, a actriz (creditada como co-argumentista) intromete-se na realidade filmada como substituto do realizador, não tanto dirigindo as outras mulheres do filme que estão a interpretar-se a elas próprias (se é que há interpretação), mas extraindo informação sem interferir no rumo da acção. Esse papel pertence à personagem principal, uma alpha-male sob a forma de empresária controladora, que está sempre no centro da encenação, no espaço cedido por Canijo. É um espaço ocupado sempre por esta personagem, que de vez em quando permite a presença de outras pessoas, através do qual acompanhamos o quotidiano desta mulher de um homem do mar, e como ela se entrega a essa tarefa sagrada de ocupar-se de tudo que seja necessário. É ao mesmo tempo uma prova de que é capaz de o fazer (sozinha), e que consegue ser mais do que isso, do que lhe é esperado. É desta forma muito próxima da personagem mãe de Rita Blanco em Sangue do Meu Sangue. Tal como outras figuras femininas dos filmes de Canijo, são mulheres a tentarem provar o seu amor, a tentarem provar que são fortes. A ausência constante do marido é assim aqui ultrapassada, mesmo que o filme fale mais da saudade do que a mostre.

O filme é clinicamente metódico na forma como representa a semana de trabalho, com longas sequências triviais como a viagem para a lota ou a distribuição do peixe que entretanto chegou por barco. De resto, pouco mais que o trabalho é mostrado e os poucos momentos de descanso são sempre ou com o trabalho em mente ou interrompidos pelo trabalho - e aí reside parte da explicação do título do filme, como é um fardo sempre presente. Talvez por não usar a sua equipa técnica própria ou por interesse numa tangente a um documentário, a encenação está longe da sofisticação de Sangue do Meu Sangue e Obrigação chega a estar perto de uma linguagem televisiva. Se haviam acusações de artificialidade quanto à forma como Canijo, em filmes anteriores, caracterizava as personagens recorrendo a facilitismos (o futebol, a música pimba), aqui Canijo defende-se com a câmara nas mãos, a registar o que não é encenado: uma cena de cinco minutos demonstra que sim, estas pessoas (e um terço da sala, que cantou em uníssono) realmente ouvem aquelas músicas que costumam pontuar os seus filmes. A curiosidade etnológica não passa de curiosidade pelo exotismo, e poderia haver algum interesse no retrato de uma comunidade fechada e tão singular, mas a personagem escolhida é uma excepção devido à sua condição económica. Tal como ela encomenda uma produção de um vídeo musical em que se substitui à cantora, aqui parece dirigir o filme segundo a sua agenda. Entretanto, a comunidade das Caxinas continua fechada: há muito mais histórias por contar nos olhares reprimidos das outras mulheres que aparecem nas margens do filme, essas sim sob o efeito de uma obrigação maior.

julho 24, 2012

A Torinói ló (O Cavalo de Turim)


A Torinói ló (O Cavalo de Turim) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, Hungria 2011, 9/10

primeiro: tendo visto recentemente Werckmeister Harmonies (2000), filme anterior de Bela Tarr, é difícil não ver uma ligação com O Cavalo de Turim a partir daí. Werckmeister Harmonies é um filme muito mais expansivo, quase operático, e mesmo que tratando os mesmos temas (o eclipse da humanidade, a escuridão), declama o que tem a dizer de forma muito mais abrangente do que o minimalismo deste filme. As sinfonias de planos sequências enquadram-se num esquema narrativo mais amplo, e a tela onde Tarr trabalha apresenta mais possibilidades do que neste O Cavalo de Turim, onde tudo se reduz no plano visual (mas não temático). Tarr trabalha como se procurasse agora abreviar a forma ao básico, para tentar passar a mensagem de forma clara, por uma última vez. Em O Cavalo de Turim as alegorias são menos elaboradas, mas por serem mais directas, mais sufocantes. 

segundo: é inevitável ver na rotina fatigante do filme uma metáfora, uma redução da vida moderna e do ser humano a um estado básico, quase animalesco: acordar, trabalhar, comer, dormir. O quotidiano repetido, quando despido de artifícios e reduzido ao essencial, pode ser irremediavelmente negro. Por mais que tentemos preencher os dias com distracções, estes acabam sempre por ceder à marca do tempo, como numa contagem decrescente, com esse peso insuportável por cima. Da mesma forma que criamos gaiolas para domesticar animais, acabamos por criar as próprias gaiolas onde nos sentimos confortáveis, onde conseguimos isolar-nos do resto do mundo que nos lembra o desconhecido e a passagem do tempo. Nas gaiolas - e uma delas ocupa proeminentemente um dos vários enquadramentos repetidos - podemos fechar as janelas, tentar esquecer o vento que sopra lá fora. Amanhã tentamos outra vez, talvez (das últimas palavras do filme). Mas o que o filme pretende discutir não se reduz ao minimalismo daquela casa, é muito mais abrangente do que o que é ali representado. 

terceiro: Nietzsche é referido logo no inicio do filme, logo será importante analisar o filme à luz da sua matriz de pensamento. Várias teses da sua doutrina podem ser encontradas no filme, mas três em específico ganham maior relevância, dada a sua inter-relação. A noção da excepcionalidade do Homem, inerente a um aperfeiçoamento constante, opõe-se à estagnação que é recriada no filme: ao fechar-se a novas ideias e a conformar-se com o presente, o Homem está a negar o seu melhoramento pessoal, a condenar-se ao declínio. O conflito Apolo(racional)/Dionísio(impulsivo) é outra das linhas que sustentam o filme: se o racional dominar e o Homem se mantiver apenas apoiado nas estruturas que lhe permitem tolerar a rotina, acabará limitado apenas ao que conhece; apenas cedendo ao instinto impulsivo alcançará a transcendência que lhe permitirá atingir novas experiências e investigar o desconhecido, de forma a escapar da gaiola. Este parece ser o papel da personagem que entra na casa a meio do filme, para agitar o status quo. Finalmente, é possível também associar o conceito de niilismo passivo às personagens daquela casa: uma perda completa de esperança, uma resignação e negação à vida - os ciganos que visitam a casa constituirão, por oposição e pelo seu comportamento, um exemplo de niilistas activos. Apesar da estética militante, o filme funciona porque cria uma percepção geral de que algo vai mal, sendo necessário uma ideologia nova para superar o que está errado. E aí será possível ao espectador colocar a ideologia que lhe está mais próxima como solução. Um antídoto a este filme será Stellet Lichte (Luz Silenciosa, 2007) de Carlos Reygadas: é um filme inundado por luz. Um retrato de uma comunidade rural de ritmo igualmente hipnótico, oferece como alternativa a contemplação e a aceitação pacífica da condição humana, onde O Cavalo de Turim apresenta inquietude e tenebrosidade. 

quarto: é inevitável, este é um texto estruturado. Que, passe o paradoxo, tenta racionalizar uma experiência primariamente sensorial. A tal personagem que aparece a meio do filme, uma espécie de fantasma de Nietzsche, fala por ele, que estaria entretanto incapacitado. O que terá visto Nietzsche naquele cavalo que o levou a intervir, que significado terá encontrado naquela cena miserável em que o pior do comportamento humano foi exposto? Terá tido perdido a esperança, momentos antes de cair num estupor, tido um vislumbre do que seria a humanidade se ignorasse os seus avisos, a confirmação de que o seu trabalho teria sido em vão? O cavalo seria então a única coisa que valia a pena salvar? Béla Tarr parece acreditar que sim, se na recusa do cavalo em trabalhar e em alimentar-se encontrar-mos uma aniquilação incontornável, inelutável. Tal como na escuridão, tal como no silêncio. Assim é a sua despedida, uma elegia.

junho 28, 2012

Dare mo shiranai / Nobody Knows

Dare mo shiranai / Nobody Knows de Hirokazu Koreeda, Japão 2004, 10/10
 

"I don't think the film has a grammar. I don't think film has but one form. If a good film results, then that film has created its own grammar." Yasujiro Ozu

Hirokazu Koreeda começou a sua carreira a filmar documentários, depois de trabalhar como assistente de realização na televisão. Depois de três documentários, em 1995 realizou o seu primeiro filme de ficção, Maborosi, a que se seguiram After Life (1998) e Distance (2001), antes de Dare mo shiranai (2004).

O filme de Koreeda é um gendaigeki moderno, o sub-género japonês sobre as pessoas comuns, sobre a sua integração na sociedade contemporânea. Faz parte de um conjunto de obras que obtiveram reconhecimento junto do público ocidental e em festivais internacionais, no fim da década de 90. Filmes como A Enguia (1997) de Imamura, Hana-Bi (1997) de Kitano ou Kairo (2001) de Kiyoshi Kurosawa, são obras que procuraram uma renovação da tradição do gendaigeki. É uma nova internacionalização, por oposição à primeira exportação do cinema japonês para o ocidente, que surgiu durante os anos 50, no período dourado do jidaigeki, os filmes de época e samurais (Rashomon, Gate of Hell, Ugetsu).

Dare mo shiranai é baseado em eventos verídicos que aconteceram em Tóquio em 1988, quando quatro crianças foram abandonadas pela sua mãe durante nove meses à sua sorte sem que ninguém interviesse. Desde logo é possível compreender o interesse de Koreeda na história: um humanismo cáustico e amargo e a possibilidade de, partindo de uma história verídica, explorar os limites da fronteira entre o documentário e a ficção, e confundir um género com o outro. Não é desprovido de significado que Koreeda tenha decidido filmar segundo a ordem cronológica da história, num processo que demorou um ano, uma história para o qual ele já tinha desenvolvido um argumento quinze anos antes, quando teve contacto com o acontecimento pela primeira vez.

O resultado é um drama sombrio em que por vezes sobressaem alguns raios de luz. O humanismo com que Koreeda trata o material, longe de assumir um carácter miserabilista, é compassivo e desenvolve uma empatia delicada para com as personagens que apresenta. À medida que o abandono pela mãe exacerba as dificuldades da vida quotidiana e por entre consecutivos contratempos, surgem elementos surpreendentes da união entre irmãos que resultam em pequenos gestos mas cheios de significado e intenção. Especialmente comovente é o retrato do irmão mais velho, a quem cabe involuntariamente assumir o papel de figura parental, ora mostrando maturidade surpreendente para a sua idade, ora desespero perante a incapacidade de tomar conta dos seus irmãos mais novos. É uma interpretação de Yûya Yagira, que valeu-lhe o prémio de melhor actor em Cannes em 2004. É através do seu olhar subjectivo, que o filme apropria, que Koreeda vai compondo a narrativa à volta do dia-a-dia deste bando abandonado à sua sorte. Os acontecimentos vão sucedendo-se, expondo a fragilidade da sua situação e anunciando a tragédia final: desde a chegada clandestina ao novo apartamento, às aparições cada vez mais furtivas e desconcertantes da mãe, as conversas com outros adultos (um dos pais da criança?), até à escassez de comida e aos conflitos fraternais e a inevitável desilusão. O filme nunca assume explicitamente os eventos que retrata, antes procurando um retrato naturalista, servindo-se muitas vezes de pistas subtis e encenações menos óbvias para aludir ao que está a acontecer. O recurso a elipses ou outros elementos reveladores da passagem do tempo são exemplos que denotam a sensibilidade de Koreeda, um dos seus traços autorais.

Outros traços visíveis nas escolhas estilísticas confluem para dotar o filme de um aspecto próximo de um certo tipo de documentário. O objectivo de Koreeda será aproximar-se da noção que algum cinema documental procura veracidade através de um registo meramente presencial, em que a câmara é neutra, no sentido de uma observação invisível e não de manipulação ou interferência. A veracidade que esse estilo infere, apelando ao legado de Albert Maysles ou Frederick Wiseman (pioneiros do direct cinema), é confirmado pelo naturalismo com que Koreeda filma. Recursos como planos estáticos filmados com alguma distância, alternados com grandes planos aproximados de detalhe a mãos ou olhos que denotam uma câmara em movimento, são alguns dos artifícios utilizados, por serem comuns a esse tipo de cinema documental. A profundidade de campo obtida através da manipulação do foco da imagem é outro exemplo através do qual Koreeda dirige a nossa atenção de forma subtil, quase sem nos apercebermos.

Koreeda não cria uma gramática própria, como por exemplo o fez Yasujiro Ozu, que através de relações intrínsecas entre planos e composições procurou criar normas que definissem uma linguagem cinematográfica, uma codificação única. Ozu procurou o naturalismo através da normalização da linguagem utilizada, da repetição das mesmas escolhas. Koreeda no entanto, além de inspirar-se no estilo de Ozu, apropria-se de várias influências, com vista a aproximar-se de um híbrido documentário-ficção. É impossível não pensar em Les quatre cents coups e do papel da nouvelle vague ao ver o filme, quer pela inocência dos protagonistas, quer pela fluidez com que a acção decorre e a sua aproximação a um realismo lírico. Também as preocupações sociais dos filmes dos belgas Dardenne (especialmente no filme Rosetta), conjugadas com a subjectividade visual e obsessão em seguir as personagens de perto desse cinema, encontra paralelos com Dare mo shiranai.

O papel central da família foi sempre um tema fulcral na cultura japonesa e também no seu cinema. A evolução dessa estrutura nuclear, a sua configuração e flutuação como organismo definidor de relações sociais foi abordado de infinitésimas formas. Se Koreeda utiliza as crianças como representativo de futuros comportamentos adultos, ninguém mais que Ozu, na história do cinema japonês, explorou o tema da família recorrendo várias vezes aos olhares subjectivos das crianças. Em filmes como I Was Born, But... (1932) e Ohayo (1959), as crianças servem como mandatários para examinar o mundo adulto. O mesmo acontece em Dare mo shiranai, onde Koreeda recupera a tradição de ceder o protagonismo aos mais jovens, cujo comportamento pode ser contraposto à passividade dos adultos. É possível desvendar no tratamento do autor em relação à história de abandono destas crianças um comentário ao declínio da estrutura familiar como base de segurança, e um exemplo da confirmação da desagregação familiar.

As sequências finais do filme e a revelação da tragédia antecipada, confirmam a subjugação à efemeridade, o conceito que David Bordwell* escolheu para caracterizar a obra de Ozu. O sentimento de evanescência, de que tudo é efémero e de pouca duração, é uma percepção única e um destino inescapável integral à cultura japonesa. Se todos os filmes japoneses são sobre o passado, são também um olhar para o futuro. Nesse contexto, Dare mo shiranai é memorável.

* Ozu and the Poetics of Cinema, David Bordwell

maio 03, 2012

We need to talk about Kevin

We need to talk about Kevin, de Lynne Ramsay, GB/EUA 2011, 7/10


“I think that what remains in our memory is not construction but destruction. Making things is not what counts. The power that destroys them is.” - Seijun Suzuki

Lynne Ramsay utiliza estilos distintos para marcar a diferença entre o presente e o passado recordado, carregando tanto nos tons impressionistas com que pinta o passado, que acaba por contagiar a recriação do presente com essas memórias tortuosas. São várias as técnicas utilizadas para dotar as memórias de um tom surreal, para criar incerteza sobre a sua veracidade: desde a abertura, num longo slow-motion, com a Mãe (Tilda Swinton) de Kevin a ser afogada pelo vermelho de uma tonatina, ao primeiro beijo entre a Mãe e o futuro marido e pai de Kevin, desfocado entre tons nocturnos, que dissolve-se no primeiro encontro do casal, num quarto iluminado pelos neons vermelhos da rua, até ao parto filmado através de um reflexo que distorce tudo monstruosamente. Ramsay não se poupa a esforços nem no vermelho. Se a overdose sensorial pode ser desconcertante, o vermelho é inescapável, permeia tudo o que se encontra à sua volta, mancha o presente com arrependimentos. No fundo, mais do que o vermelho, é o passado que é incontornável, é inevitável que deturpe e suje a visão actual, sobretudo a visão presente do passado. E a representação do presente acaba por ser afectada pelos mesmos tons surreais, pelo mesmo vermelho que contagia, fragilizando a fronteira entre presente e passado, como se a personagem habitasse os dois mundos temporais ao mesmo tempo. Talvez por isso, Ramsay investe também em construir planos narrativos paralelos: o sentimento de culpa da Mãe em relação à tragédia que aconteceu vs o sentimento de falhanço na educação e responsabilização pela alienação de Kevin; as viagens para longe num inatingível mapa fantasia e sobre as quais escreve vs o emprego numa agência de viagens que a colocam ainda mais longe das tais viagens; o isolamento derivado da maternidade (especialmente em relação ao marido) vs o isolamento em relação ao resto da sociedade depois do evento catártico do filme.

 Esse tal evento final funciona para evidenciar como todo o filme é contado a partir do fim, numa narrativa quebrada que anuncia a tragédia a um ritmo letárgico. Através de um efeito retardatário, o vermelho vai-se espalhando como uma infecção - é a palavra usada por Lionel Shriver, a autora do livro que o filme adapta, para descrever a maternidade. A anestesia emocional e o estado de choque inesgotável que afectam constantemente a personagem da Mãe, constituem a distância e modo de defesa que lhe permitem atravessar os dois planos paralelos - a infância de Kevin e a vida depois da tragédia. É algo que Ramsay resgata do seu filme anterior, "Movern Callar", que era também a história indolente de uma rapariga a lidar com uma perda (o suicídio do namorado), onde Ramsay não era subtil na encenação, mas que em "We Need to Talk About Kevin" atinge proporções maiores na construção de um presente emocional catatónico. Tal como acontecia frequentemente nos filmes de Suzuki (Gate of Flesh, Story of a Prostitute), isso reflecte-se num filme emocionalmente instável, quase doloroso, onde a reacção à angústia é uma distopia sentimental. Suzuki recorria também ao uso abrasivo de cores para mapear estados de espírito - neste caso é o vermelho, que Suzuki associava a "erupções repentinas e o medo". A herança de Suzuki sente-se também no poder da destruição na construção de uma história, destruição encarnada na personagem de Kevin (interpretado por Ezra Miller, que depois do "vilão" em Afterschool volta a arrepiar). O mais problemático no filme pode mesmo assim ser a relutância em justificar o niilismo que evidencia ou responder às perguntas que coloca. Ou o filme não tem respostas definitivas, ou assume que não há resposta, que é tudo um vazio, e nesse caso fica evidente que a falta de respostas também magoa.

março 01, 2012

Oscar 2012


Hollywood ou Bollywood?
Em ano de recessão, Hollywood escolhe recompensar filmes que respiram fantasia, que funcionam como uma fuga à realidade. Há alguns anos, aquando da vitória de Slumdog Billionaire, discutia-se como o filme era demasiado real para os padrões de Bollywood (i.e., mostrava demasiada pobreza), e ao mesmo tempo era demasiado fantasioso para as audiências ocidentais, pouco acostumadas ao nível de hiper-fantasia geralmente produzida em Bollywood. A Índia, país onde sobrevivem 650 milhões de pessoas abaixo do limiar de pobreza, tem uma vibrante indústria cinematográfica que se distingue pelo escape fantasista, que permite pelo menos servir dois propósitos: para o estrato com menores dificuldades, ajudará a esquecer essa pobreza; para a população mais pobre servirá para esquecer o sofrimento e solidão da vida real e nem que seja por momentos sonhar com uma vida diferente, acreditar que algo mais é possível - e essa será a função do cinema para alguns, para funcionar como um veículo ilusório. Numa altura em que o desemprego continua a atingir níveis recorde, pode-se constatar pelo grupo de nomeados a melhor filme que a resposta de Hollywood parece ser substituir-se a Bollywood e providenciar filmes que funcionem como substituto à realidade contemporânea, enquanto os filmes que mostram desespero e questionam o estado actual ou são negligenciados ou nem sequer são feitos, o que ajuda a esquecer a existência do problema.

O principal candidato, The Artist, é uma fantasia saudosista de outros tempos, em que o cinema ainda era o mais importante, e que tal como Hugo, outro dos favoritos, aproveita para ser também uma auto-celebração do tal poder da magia do cinema. War Horse é fantasia adocicada que utiliza a 1ª Guerra Mundial como pano de fundo para celebrar uma história de amizade entre um rapaz e um cavalo; a moral é que o sofrimento e trabalho árduo acabam por ser recompensados no fim, mesmo que dependam do altruísmo de um terceiro. The Help, que mostra uma América sulista imaginada, é a fantasia de que complexos conflitos raciais podem ser simplificados e resolvidos de forma inócua, mais uma vez com o altruísmo de alguém de fora. The Descendants é um filme numa longínqua ilha de fantasia, de vivendas com piscina e constantemente em férias, onde um dos temas é a fantasia de o dinheiro já não ser um factor decisivo nas escolhas. Extremely Loud and Incredibly Close ocupa-se de um rapaz que vive no seu mundo próprio de fantasia como forma de ultrapassar a realidade e o passado recente. Midnight in Paris é a derradeira fantasia, em que até uma das personagens se apercebe da ilusão nociva dessa situação. Moneyball ocupa-se de uma das fantasias escapistas preferidas que é o desporto. A excepção é Tree of Life, que recusa uma abordagem simplista, que na sua celebração quase obituário da vida humana, arrisca incutir uma identidade visual própria que lhe confere um estatuto marginal, mesmo dentro desta selecção de nomeados. Outra excepção será A Separation, filme que lida com uma realidade marginal de uma forma muito própria, e que além da nomeação para melhor filme estrangeiro, foi apenas premiado com uma nomeação para argumento original.

favorito pessoal / provável vencedor
melhor filme: Tree of Life / The Artist
melhor realizador: Terrence Malick / Michel Hazanavicius
melhor actor: Brad Pitt / Jean Dujardin
melhor actriz: - / Viola Davis
melhor actor secundário: Max von Sydow / Christopher Plummer
melhor actriz secundária: Berenice Bejo / Octavia Spencer
melhor argumento original: A Separation / Midnight in Paris
melhor argumento adaptado: Moneyball / The Descendants
melhor documentário: Pina / Paradise Lost 3: Purgatory
melhor filme estrangeiro: A Separation / A Separation
melhor fotografia: Tree of Life / Hugo
melhor montagem: Moneyball / The Artist
melhor filme de animação: - / Rango
melhor banda-sonora: The Artist / The Artist
melhor música: - / The Muppets
melhor maquilhagem: - / The Iron Lady
melhor guarda-roupa: - / Jane Eyre
melhor direcção artística: Midnight in Paris / Hugo
melhor efeitos visuais: - / Rise of the Planet of the Apes
melhor som (edição): - / Hugo
melhor som (mistura): Moneyball / Hugo
melhor curta-metragem: - / Tuba Atlantic
melhor curta (documentário): - / The Tsunami and the Cherry Blossom
melhor curta (animação): - / The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore

nomeados para melhor filme:
Tree of Life 10/10
Midnight in Paris 7/10
The Artist 7/10
Moneyball 6/10
The Descendants 5/10
The Help 3/10
Hugo 3/10
Extremely Loud & Incredible Close 2/10
War Horse 2/10

fevereiro 23, 2012

If a Tree Falls

If a Tree Falls: A Story of the Earth Liberation Front
de Marshall Curry e Sam Cullman, EUA 2011, 7/10
nomeado para Oscar de Melhor Documentário


Numa altura em que a corrida contra alterações climatéricas irreversíveis parece cada vez mais perdida, a actualidade define a relevância deste documentário. Os indicadores são cada vez mais negros: mantendo o actual nível de emissões de CO2, a temperatura média aumentará 3ºC até ao fim do século, com consequências fatais para países africanos e ilhas do pacífico; o protocolo de Quioto expira em 2012 e  repetem-se os falhanços em conseguir um novo acordo vinculativo entre países; os desastres ambientais sucedem-se a escalas cada vez maiores (Fukushima, Golfo do México); a dependência de energias fosseis cresce a níveis exponenciais enquanto surgem novas formas de extracção ainda mais perniciosas (Gasland, tar sands). Ao mesmo tempo, as manifestações a exigir acção antes que seja tarde demais expandem-se a um nível global: em 2009 durante a cimeira de Copenhaga, dezenas de milhares de pessoas de diferentes países desfilaram pelas ruas (e centenas foram presas); o último Earth Day teve a participação de 175 países. No entanto, dada a escassez de resultados das acções de protesto, é fácil encontrar um paralelo com o contexto em que surgiu a Earth Liberation Front (ELF), o tema deste documentário.

Formado no final da década de 90 por um grupo de activistas ambientais radicados no estado de Oregon dedicados a salvar a floresta local, a ELF surge como uma alternativa às organizações ecológicas tradicionais. Apesar da enorme força de vontade da comunidade local de activistas em fincar a sua posição de defesa do património natural da região, apesar dos seus protestos incensáveis e da denúncia das práticas da indústria madeireira, as florestas continuavam a ser dizimadas e o assunto persistia em ser ignorado pelos media. Os protestos pacíficos eram alvo de reacções cada vez mais violentas por parte da polícia, e as imagens de arquivo que mostram os protestantes a serem atacados indiscriminadamente com gás de pimenta ecoam as imagens que até há pouco tempo chegavam de Occupy Wall Street, numa premonição de abuso. Frustrados com o somatório de protestos infrutíferos e como resposta a ver os seus companheiros de acção pacífica serem violentamente atacados, um pequeno núcleo de activistas decide formar a Earth Liberation Front (ELF). Segundo este pequeno grupo era necessário outro modelo de resposta à agressão da polícia e da indústria madeireira, outra forma de combate mais adequada que substituísse as palavras de ordem. Nos anos seguintes, a ELF, com intervenções de crescente impacto e espectacularidade, através de acções directas que destroem propriedade privada de entidades julgadas culpadas de crimes ambientais, vai deixar a sua marca e vai também abalar o mundo activista.

Esta é a história das origens do eco-terrorismo, de uma radicalização do protesto, mas é também a história de um dos seus membros originários, Daniel McGowanMcGowan foi capturado pelo FBI em 2005 e encontra-se em prisão domiciliária no início do filme, a aguardar julgamento por crimes de terrorismo, pelos quais poderá ser condenado a prisão perpétua. Através dos seus depoimentos descobrimos que foi denunciado por outro membro da ELF e que a sua pena poderá ser reduzida se aceitar fazer o mesmo, o que lhe coloca um dilema moral. Utilizando recriações das situações mais dramáticas, o documentário consegue criar um forte sentimento de suspense, com foco na perseguição aos membros pelas forças policiais, que a partir de certo ponto se vêm forçados à clandestinidade, considerados pelo FBI como a maior ameaça à segurança nacional. Recorrendo a depoimentos de outros membros, de investigadores e de vítimas dos ataques, o filme demonstra como as acções da ELF tornaram-se cada vez mais perigosas e ambíguas nos seus objectivos, descarrilando em tensões entre os seus membros sobre qual o rumo a seguir. Uma das últimas acções da ELF foi a participação nos protestos da cimeira WTO de Seattle em 1999, onde integrando o blac bloc (anarquistas), lançaram o caos num protesto até aí pacífico. A violência que rodeou esse evento e a consequente cobertura mediática dessa violência levou a um descrédito geral dos protestos anti-globalização, marcados pelo estigma do vandalismo e pela vigilância paranóica pós 9/11. Se a ELF tinha inicialmente conseguido superar a falta de resultados dos protestos pacíficos com acções com resultados directos, o crescente ambiente de violência e a contaminação do movimento anti-globalização levou a que este se tornasse demasiado marginalizado para ser levado a sério, afectando negativamente  esforços das organizações ecológicas tradicionais em garantir apoio junto de um público maior. Isso é evidente em algumas declarações de McGowan, que marcado pessoalmente pelas consequências dos seus actos, revela contrição em relação à mudança de direcção do movimento, desviado dos seus objectivos iniciais.

O filme não apresenta imagens com a alta definição de "Hell and Back Again", nem os atributos de uma grande produção como em "The Cove", aproximando-se mais de uma linha jornalística de investigação semelhante a "Gasland" ou "Food Inc". O aspecto mais amador do filme é no entanto compensado pela exposição eficiente da complexa história do movimento eco-terrorista, pelos depoimentos que apresenta e  pelas extraordinárias imagens de arquivo. Especialmente relevante são as questões que levanta relacionadas com o activismo ecológico e sobre a forma como este ainda é encarado na América. É ainda um assunto politicamente fracturante, o que é visível na desproporcionalidade da pena, uma brutalidade para um crime de destruição de propriedade alheia só possível por se equivaler o crime a um acto de terrorismo. Só o facto de ainda se continuar a equiparar a terrorismo é revelador da pouca simpatia que o assunto recolhe por parte da população em geral, e é revelador da falta de consciência que existe na própria apropriação da palavra terrorismo - não será mais nociva toda a agressão ecológica praticada por inúmeras empresas na sua produção, não será antes isso eco-terrorismo? No fundo, o documentário que relata eventos da década de 90, mostra como é possível ler nas repercussões desses eventos muito sobre o estado actual da América.


fevereiro 19, 2012

Hell and Back Again

Hell and Back Again, de Danfung Dennis, EUA 2011, 5/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2012




O título do filme refere-se a uma expressão utilizada por uma das personagens para descrever a sua situação, mas serve também para enunciar o principal artifício do filme. Alternando entre duas realidades distintas, acompanhamos o dia-a-dia paralelo de um soldado numa campanha militar no Afeganistão e no seu regresso a casa. O documentário pretende sugerir com o título e com a edição alternada entre as duas realidades que estamos sempre a regressar ao inferno afegão, do mesmo modo que as memórias do soldado se intrometem no seu dia para assombrar o seu presente. O soldado que vai servir de guia ao documentário é um sargento a cumprir a sua terceira missão, que será ferido gravemente perto do fim da missão, fracturando a anca e a perna direita e assim marcando o início do seu tormento. A verdade é que nunca saímos do inferno mesmo quando o filme regressa à América, porque o presente não é tão pacífico como se desejaria, nem o pior já terá passado. Algures entre os vales afegãos perdeu-se o jovem impetuoso, que acreditava estar a fazer algo importante, substituído por um outro, amargurado pelo seu destino. O que parece angustia-lo não é tanto o sofrimento causado pelo seu ferimento, apesar das náuseas constantes provocadas pelos medicamentos, mas o regresso a uma normalidade que representa uma perda de independência. Não é fácil aceitar ter de lidar com trivialidades quotidianas ou passar o tempo à espera da recuperação física a depender de outros, depois de desafiar a insegurança permanente e as balas perdidas do Afeganistão. Um sentimento de incapacidade vai afectá-lo constantemente e abrir fissuras no relacionamento com as pessoas à sua volta. Daí que não seja surpreendente que a sua motivação seja sempre regressar ao combate, para voltar a sentir-se útil, porque é a solução que consegue imaginar para voltar a ser quem já foi. Quem acaba por sofrer por proximidade é a sua mulher, que profere a tal expressão que dá o nome ao filme, porque parece não considerar a possibilidade do regresso do seu marido ao combate, não percebe que é nisso que reside a esperança dele. Totalmente absorvida na recuperação do marido, não reconhece o vício do soldado na adrenalina do combate, mesmo que partilhe a cama com a arma que ele mantém carregada no seu lado do colchão. Esse vício é sublinhado de maneira óbvia quando vemos o soldado a jogar um videojogo que recria cenários de guerra, uma das vinhetas que pretendem estabelecer um quotidiano de isolamento e inadaptação à vida civil, mas que provocam pouca empatia para com a sua alienação. Ao mesmo tempo, as imagens paralelas filmadas no Afeganistão pouco contribuem para revelar a personalidade deste soldado que se confunde com outros tantos militares, cópias autómatas e sem definição. A certa altura, este sargento revela que a sua motivação para entrar para o exército foi a sua vontade de matar para ajudar o seu país e o retrato fica mais transparente. Entre situações surreais como tiroteios contra inimigos invisíveis e reuniões absurdas com habitantes locais, vislumbra-se que nem os próprios soldados reconhecem que entraram por um caminho sem regresso possível.

"Hell and Back Again" é um documentário muito estilizado, quer através da edição, quer através do som, factores que revelam constantemente uma visão subjectiva, uma narrativa que interfere com as imagens objectivas. A câmara que tanto procura tornar-se invisível para capturar o natural, acaba por ser anulada pelo tratamento do material captado. É importante considerar uma comparação com "Restrepo", outro documentário sobre o mesmo tema nomeado para o Oscar em 2011, para perceber onde "Hell and Back Again" apresenta as suas debilidades. "Restrepo" é um retrato cru e inescapavel, que questiona a futilidade da missão americana no Afeganistão, contrapondo as dificuldades vividas no terreno com os escassos resultados obtidos. Essa visão crítica, que resulta de uma aproximação íntima à psicologia dos homens no terreno e à apropriação do isolamento na guerra, por oposição ao isolamento apenas ao regressar a casa, nunca acontece com "Hell and Back Again". O foco de "Restrepo" nos soldados e nas condições que enfrentam é algo que falta neste documentário, satisfeito em contrapor o quotidiano no Afeganistão com a vida em casa. Sem esse foco, que permite uma ligação a uma realidade tangível, "Hell and Back Again" assemelha-se mais a uma colecção de imagens violentas e desligadas, como um videojogo. Ao mesmo tempo que explora um patriotismo barato através da celebração do esforço das tropas, mostra o seu abandono no regresso a casa perante a indiferença à guerra, como se fosse possível um comentário apolítico, apesar das suas escolhas objectivas. Ao tentar identificar-se com um dos soldados que não consegue ter uma opinião crítica nem perceber que ao querer voltar ao mesmo, fica viciado num ciclo condenado, o filme acaba por se tornar ele próprio autómato.


janeiro 31, 2012

Sangue do meu Sangue


Sangue do meu sangue de João Canijo, 2011 Portugal, 8/10
Trabalho de actriz, trabalho de actor de João Canijo, 2011 Portugal, 9/10

"Sangue do meu sangue" é uma continuação linear na filmografia de Canijo depois da anormalidade não ficcional que foi Fantasia Lusitana. Este é um filme decorrente dos seus precedentes, mas vem com um objecto estranho apenso. Já tínhamos visto como temas: os limites de um amor incondicional e uma família a ruir, em "Ganhar a Vida", "Noite Escura" e "Mal Nascida", mas mulheres como fortalezas a tentar reparar  brechas de estragos emocionais ainda comove. O novo filme de Canijo continua a tradição do impacto visceral dos seus últimos filmes, pela forma íntima como nos coloca perto do seu centro de acção, a família nuclear em desintegração. O cenário é um bairro pobre na periferia de Lisboa e a história é suportada pelos habitantes de uma casa, reféns dos seus comportamentos. As duas figuras centrais dividem a família no que concerne a afectos e às consequências que daí advêm: a mãe, Márcia, por Rita Blanco, é próxima da filha, tenta  protegê-la de repetir o seu passado; a irmã de Márcia, por Anabela Moreira, é próxima e cúmplice do seu sobrinho, um delinquente intranquilo, a única coisa a que ela ainda dá importância. 

Os três filmes anteriores de Canijo eram adaptações de tragédias gregas, ancoradas em textos clássicos, e isso contagiava a estrutura do filme com um fatalismo vertiginoso, transpiravam tragédia. Este "Sangue do Meu Sangue" continua a ser fatalista, mesmo sendo uma tragédia portuguesa, e esse fatalismo bastante português. A estrutura mantém-se: primeiro, um cenário isolado do ambiente circundante, como uma pequena amostra ampliada de um todo, como a comunidade portuguesa em Paris, o bar de alterne no norte, a aldeia no interior do país e agora a periferia urbana - cenários semelhantes quanto à sua marginalidade, mas onde se projecta todo o país. Depois, assistimos ao desfiar de um drama de relações amorosas e familiares distorcidas com ligações que se confundem entre si, e aos sacrifícios necessários para pagar os pecados cometidos entretanto, na procura de uma redenção pírrica e sem esperança. Ainda que a construção da história tenha pontos em comum com os filmes anteriores, e o palco se mantenha parecido, é através de uma cuidadosa e ardente encenação que Canijo nos mostra o domínio do seu método de expiação comunitária. As cenas hipnóticas das refeições em família, e as inquietações antes de adormecer são coreografadas de forma a manobrar a geografia do espaço, até esta se tornar a geografia da família, enclausurada também pelas conversas que se ouvem sem querer. 

Num filme que tanto pertence também aos actores o elenco é algo desequilibrado. Beatriz Batarda é tão distante que é inexistente, Marcello Urgeghe é uma caricatura incapaz de expressão e Cleia Almeida continua presa ao sotaque e maneirismos infantis de "Noite Escura", perdida noutro filme. Por outro lado, Nuno Lopes é eficaz na economia de palavras, Rita Blanco é irrepreensível e segura com subtileza, mas Ana Almeida  faz esquecer tudo o resto com uma intimidade e entrega feroz. Este desequilíbrio entre os actores reflecte-se nas próprias personagens que revelam diferentes níveis de complexidade, talvez produto da liberdade concedida aos actores para as desenvolverem. Com cada um a partir numa direcção diferente, na procura de uma ideia autêntica, a multiplicidade de autores confunde e sente-se a falta de uma voz unificadora. Através do documentário "Trabalho de actriz, trabalho de actor" temos acesso ao  método de criação e preparação para este filme. É uma janela corajosa que permite observar o crescimento das personagens nos vários ensaios, ao sabor dos próprios actores, e o papel destes na recriação da realidade. O documentário mostra o processo de imaginação e idealização de uma certa realidade portuguesa marginal a outras pessoas, expondo assim outros atributos de uma identidade nacional, pela pesquisa efectuada e escolhas  dos actores para chegar à ideia do que é um português de periferia.

Há um interesse antropológico no cinema de Canijo que pode passar por perverso. O cinismo advém da observação repetida de personagens socialmente marginais em dificuldades e a consequente desumanização dessas personagens, através da sua redução a um animalismo comportamental do qual não conseguem escapar. Como Canijo não filma o real, mas um ideal recriado da realidade, uma ideia imaginada do que é um português de classe baixa, há o perigo desta caracterização parecer condescendente. O filme recorre a atalhos para caracterizar as personagens, como se fosse possível reduzir essa classe a um ideal de alguém brejeiro que ouve música pimba, bebe cerveja, procura sexo em todo o lugar, diz palavrões e vive do futebol. Esta caracterização recorre a facilitismos que correspondem a concessões para salvar o lado comercial do filme, que por exemplo Mike Leigh não tem de o fazer, mas que Canijo, ocupando um espaço próprio no cinema português na fronteira entre o autor e o comercial, tem de considerar. Lembremos a indiferença crítica e o falhanço comercial de "Mal Nascida", o último filme da trilogia grega, uma fábula negra e amarga como um soco impenitente no estômago, mas também um filme esquecido. Por ser o filme em que Canijo se preocupou menos em ser acessível, talvez tenha ido longe demais no seu cinema de autor, na sua alienação. À luz dessa experiência anterior, "Sangue do meu Sangue" apresenta-se como uma narrativa mais convencional, que tenta preencher os espaços vazios ao espectador para a mensagem ser mais imediata. Porém, o que resgata estes filmes da condescendência e do cinismo é o facto de, repetidamente, Canijo procurar dentro das suas personagens a excepção positiva, a prova da capacidade extraordinária, através de acções que deixam marcas profundas. Há uma paixão pelos erros dessas personagens, pela humanidade que contêm. É o sacrifício como exemplo positivo, como prova do tal amor inabalável, como ode à personagem que sobressai e consegue sobreviver no meio da lama.

Kiewlowksi começou por filmar documentários mas abandonou esse formato em detrimento da ficção, porque o documentário, apesar de ter essa pretensão, não é a realidade, é a realidade controlada, encenada e auto-censurada. A ficção permitia-lhe criar a sua representação da realidade e depois aproxima-la tanto quanto possível à Vida através de pequenos símbolos que apelam ao nosso subconsciente, através da nossa construção da realidade, sentindo-nos assim mais próximos do que vemos. Cedemos, então, à ilusão do filme, por tanto nos identificamos com o que estamos a ver, que acreditamos tratar-se da realidade*. Paradoxalmente, com "Fantasia Lusitana" e "Trabalho de actriz, trabalho de actor", Canijo chega mais perto de um retrato original, como uma realidade tangível. O documentário que acompanha o filme acaba por ser um documento ainda mais relevante que o próprio filme, revelador do que significa ser português e onde o cinema português consegue chegar. "Sangue do meu Sangue" não é a realidade encenada de Kiewlowski para substituir a realidade, mas Canijo não propõe distanciamento em relação ao que estamos a ver: o objectivo é entrarmos naquele campo, habitarmos o mesmo espaço que aquelas personagens, mesmo que seja por pouco tempo. "Trabalho de actriz, trabalho de actor" vai ainda mais longe ao permitir-nos habitar o processo de construção dessa realidade, perceber as limitações e escolhas da representação da realidade.

Slavoj Zizek in Lacrimae Rerum

janeiro 19, 2012

Beginners

Beginners de Mike Mills, EUA 2010, 6/10


Beginners é um drama que antes de ser romântico tem consciência das complexidades do romance. Ao ser sobre a fragilidade que entrar numa relação supõe, ao deter-se sobre essa vulnerabilidade íntima que assombra qualquer início, diferencia-se de outros filmes deste género. Ao assumir um derrotismo indiferente,  prepara-nos para um final infeliz. É um pessimismo assumido desde o início que fica bem à personagem principal Oliver, interpretada por Ewan McGregor. Oliver é um designer gráfico com problemas de integração (na sociedade) e falta de interesse (na sociedade). Já se envolveu em algumas relações mas acabou sempre com elas por iniciativa própria ao fim de alguns meses, por isso se tornar o mais natural, por ser a defesa contra a desilusão. Ela é Melanie (por Marrio Cotillard), uma actriz perdida entre cidades, que tem o mesmo historial romântico de relações abandonadas. Se calhar porque não sabem fazer mais nada do que as abandonar, têm medo em prosseguir. A felicidade extrema e as borboletas do início são assombradas pelo terror de ter algo e depois o perder, o sofrimento de estar sujeito a sofrimento ensombra o êxtase das possibilidades. Talvez por isso é que o estado inicial da relação é o ideal, arrasta-se durante algum tempo. Como não há diálogo, não há lugar a desinteresse, logo adia-se a descoberta que afinal são mais que a superfície e o interior pode não ser compatível. É algo de que os dois estão bem conscientes e não sabem bem como o dizer ao outro.

A verdade é que Oliver não se encontra num momento bom e não é só por causa do vazio no seu coração. Como iremos descobrir lentamente durante o filme, o seu pai acabou de morrer quando o encontramos pela primeira vez. Pequenos episódios da história do seu pai (Christopher Plummer a espreitar um Oscar), da sua luta com uma doença prolongada, acompanham o progresso de Oliver no dia-a-dia presente, interferindo com a linearidade do filme. Como não sabemos disso logo no início, é necessário procurar contexto nas acções de Oliver, perceber a depressão e letargia permanente que parecem afectá-lo. Mas à medida que aprendemos mais sobre o seu pai e sobre como este depois da morte da mãe de Oliver se assumiu como homossexual, Oliver vai perdendo o medo e a apatia, mostrando eficientemente a ligação com a coragem do pai, como ele funciona como inspiração para Oliver. A história do pai de Oliver é acima de tudo sobre descobrir a liberdade aos setenta e largos anos, perder o medo a essa idade. Uma parábola que ele conta sobre o jogo de expectativas vs o perigo de esperar demasiado tempo ajudam a explicar como, apesar de tudo, está contente: era bom encontrar o leão, mas se for tarde demais temos que nos contentar com a girafa. E funciona como um alerta para Oliver: ao contrário do seu pai ainda estará a tempo de encontrar o seu leão (e seria terrível deixá-lo escapar). A jovialidade e vontade de viver do seu pai perto do fim representam arrependimentos que são derradeiras lições de vida, numa ligação pouco original. Mas é a perspectiva da mortalidade do pai reflectida na sua própria que ajuda Oliver a ultrapassar a sua philophobia.

É desta forma que Beginners é também um amadurecimento da geração indie, um compromisso adulto. Thumbsucker, o filme anterior de Mike Mills inseria-se perfeitamente no tal movimento indie, com as suas personagens renegadas, situações bizarras e sentimentos adolescentes confrangedores. São filmes visualmente semelhantes a "Me and You and Everyone We Know" (2005, de Miranda July), "Juno" (2007, de Jason Reitman) e "Les Amours Imaginaires" (2010, de Xavier Dolan). Com os seus momentos videoclip e silêncios desajeitados de geeks, são construções simétricas de personagens que não interessam à sociedade e não se interessam pela sociedade. Beginners acaba por ser a mesma experiência mas com um distanciamento cáustico, como se observássemos a personagem de "500 Days of Summer" anos mais tarde, amargurado pela passagem do tempo. O filme é uma colagem de várias gags visuais que pretendem mostrar a inspiração visual e a singularidade inteligente da visão do realizador. Essas sequências, como a montagem "History of Sadness" ou os graffiti corrosivos, revelam um sentido estético aprimorado, bom gosto. Mas revelam também a necessidade de mostrar bom gosto e de mostrar trabalho óbvio, como forma de celebrar a sua inteligência, de criar ideias que se tornem consensuais. É algo característico deste tipo de filme, que parece ter uma necessidade de preencher o vazio de acção e de caracterização das personagens compensando com identidade visual, que acaba por se tornar esquizofrénica.  Há até espaço para algumas concessões convencionais, como o pequeno desvio formular da separação temporária na relação antes do último acto, que o filme tem quase vergonha em assumir. O resultado final provoca uma perspectiva cínica e sedada. É essa perspectiva que não ajuda ao envolvimento emocional com as personagens, como não ajuda o facto de serem gente bonita num local distante idealizado e pós-burguês, fechado sobre si mesmo, inalcançável. Beginners pode realmente representar o crescimento desta geração, mas continua sem encontrar o que dizer.